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3.4 A PERFORMANCE DOS SAMBAS DE UMBIGADA

3.4.1 JONGO

“Sarava jongueiro velho Que veio pra ensinar Que Deus dê proteção pra jongueiro novo Pro jongo não se acabar.” (Jefinho – Jongo de Tamandaré/ Guaratinquetá)

Jongo daqueles que Seu Firmino viu e aprendeu no Vale do Paraíba não se vê por aqui. O jongo de seu sogro. De jongueiro velho com feitiço na palavra, que desatava qualquer nó e amarrava ponto que era difícil de desatar. Jongo feito em noite de festa comunitária, de baixo do céu, o lado da fogueira e molhado à cachaça. O fogo que iluminava o caminho dos ancestrais, aquecia o corpo e afinava os tambores. A cachaça que também aquecia o corpo servia como uma espécie de proteção para o jongueiro e ainda de oferenda para os ancestrais. Seu Firmino não se esquece da mão negra de seu sogro deslizando a pinga sobre o couro do tambu e de toda aquela gente em circulo fazendo reverência, como quem se benze aos pés dos tambores.

46 O jongo foi observado principalmente no Revelando São Paulo em atividades de Associação Cultural Cachuera! e em festas particulares.

“O jongo, também conhecido pelos nomes de tambu, tambor e caxambu nas comunidades afro-brasileiras que o praticam, envolve canto, dança e percussão de tambores; por seu intermédio, atualizam-se crenças nos ancestrais e nos poderes da palavra. O jongo formou-se basicamente a partir da herança cultural dos negros de língua banto, habitantes do vasto território do antigo Reino do Congo. Trazidos para o Brasil para trabalhar, como escravos, nas fazendas de café e cana-de-açúcar do Vale do Rio Paraíba (Região Sudeste), desenvolveram uma forma própria de comunicação. O canto baseado em provérbios, imagens metafóricas e mensagens cifradas permitia fazer a crônica do cotidiano e reverenciar os antepassados...”

No entanto, Seu Firmino não há de negar que o jongo chegou em São Paulo. As pessoas aprenderam a tocar, dançar e cantar. E é só juntar um punhado de batuqueiro pro jongo começar, por vezes, dispensam até tambu e candongueiro e os substituem por djembés ou congas. O que importa mesmo é a brincadeira.

Diferentemente da capoeira, do samba de roda e do tambor de crioula, trazidos pelas pessoas que vivenciavam tais manifestações em seus estados de origem e que migraram para São Paulo; o jongo foi introduzido por outra vertente, através do trabalho de pesquisadores, como é o caso da Associação Cultural Cachuera! que citei anteriormente.

O jongo é uma prática que se encontra entre o lazer e a crença, estando diretamente relacionada ao culto da Umbanda. Nesse processo de ressignificação do jongo na cidade de São Paulo muitos de seus elementos mito-poéticos se perderam podendo ser visto em sua totalidade em suas cidades de origem e parcialmente, quando comunidades jongueiras realizam o jongo na cidade em virtude de eventos, como é o caso do “Revelando São Paulo” e de encontros organizados pelo Cachuera e outros núcleos. No geral, o jongo que aqui se faz, ou melhor, se refaz, mais do que o caráter ritualístico está presente o caráter lúdico.

Uma grande roda se abre a partir dos tambores, que, a caráter, são:

candongueiro e o tambu, e mais raramente a puíta. As pessoas mais envolvidas com o

ritual do jongo circulam no sentido anti-horário e fazem uma saudação aos tambores, num gesto singelo de respeito e oração. O jongo já pode começar.

Eu vou abrir meu cango ê Eu vou abri meu cango a Primeiro peço minha licença

Pra rainha lá do mar Pra saudar a povaria Eu vou abri cango ê

Ao som de pergunta e reposta entre puxador e coro, palmas e da percussão o primeiro casal ocupa o centro da roda. E executam a dança de passo marcado, ambos começando com a perna direita, (com transferência de peso para o centro) como se fosse encontrar com o quadril do outro (menção da umbigada); depois giro completo pra direita; pisa com a esquerda (com transferência de peso para o centro), cruzando com a do companheiro e começa novamente. O passo completo em 8 tempos.

Outra possibilidade comum de passo do Jongo de Guaratinguetá47 é: avança com direita (com transferência do peso para o centro) como se fosse encontrar com o quadril com quadril (menção da umbigada), giro pra direita, pisa com a direita e já retorna para o começo do passo. O passo completo em 6 tempos.

Depois de uma breve evolução do casal um dos dois é substituído, o jogo é comprado por outro. A rigor, o homem tira o outro homem para poder dançar com a mulher e vice e versa. No entanto, não é raro os homens estarem em minoria e se ver na roda mulher dançando com mulher.

Inúmeras improvisações são possíveis de acontecer a partir dessa base de passo de dança, pequenos saltos, pausas, agachamentos e movimentos com os braços ou não. Cada qual desenvolve seu estilo buscando sempre a complementaridade no movimento do outro. A movimentação do homem por vezes representa um cortejo à mulher. Estando presente nesta dança, embora que de maneira muito sutil um jogo de sedução. A movimentação acontece em um espaço direito, com peso firme e fluência que tende para livre. Os pés são plantados no chão e na coluna, ligeira ou acentuada inclinação para frente.

Tradicionalmente, os pontos de jongo são um denso arsenal mito-poético, com os pontos de visaria, demanda e de saudação ao tambor. Os pontos de visaria são para louvar aos participantes da roda, saudar visitantes e saravá os jongueiros velhos, os

47 O passo de dança do jongo de Tamandaré (Guaratinguetá) é o que mais se popularizou na cidade de São Paulo

pontos de demanda ou gurumenta são aqueles em que se estabelece o desafio, o encante e os enigmas a serem decifrados. Esses últimos, não se vêem na capital paulista, artimanhas de jongueiros que além de experiência apresentam profundo contato com a tradição, mesmo a arte de improvisação no jongo é pouco freqüente. No entanto, pode constatar em seu conteúdo uma forma de comunicação desenvolvida no contexto da escravidão e recém pós-escravidão, que servia também de estratégia de sobrevivência e de trâmite de informações sobre os fatos acontecidos entre os negros, são pontos de natureza jocosa, sarcasmo e reclamação, sobre os maus tratos e excesso de trabalho.

Vovó não quer Casca de coco

No terreiro Porque lhe faz lembrar Faz lembrar dos tempos de cativeiro

As relações de jogo no jongo se dão no diálogo entre os tambores; no canto de pergunta e resposta, na interação entre os tambores e as palmas e, também, no jogo coreográfico, essencialmente de complementação. O passo de dança de um brincante se completa no passo do outro, existe esse compromisso com a dança e ainda com o ritmo, que o passo de dança deve acompanhar.

Pelo que pude observar e experimentar, a dança do jongo não tem um nível elevado de dificuldade, embora exija coordenação motora e raciocínio, tem uma estrutura clara de ser compreendida. Pessoas que nunca viram o jongo ficam do lado de fora da roda tentando aprender o passo e com um empurrãozinho o novato até é capaz de entrar na roda e executar o passo apreendido. No entanto, ao meu ver o desafio do jongo está em tornar o passo executado mecanicamente em algo mais orgânico e confortável com o que se pode brincar e improvisar. Isto é, em assimilar a estrutura. Nessa perspectiva parece-me que no jongo o ludus projeta-se sobre a paidia.