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4.4 A JORNADA DO HÉROI E A JORNADA DO LOUCO

4.4.2 A Jornada do Louco

Banzhaf identifica conexão direta com entre a jornada humana, e a narrativa do herói, que demonstra também estar presente no tarô. Este, tendo os seus Arcanos Maiores interpretados contextualizadamente, revela-se como instrumento de desvelamento da jornada de crescimento espiritual que deveríamos realizar ao longo da vida86.

Banzhaf afirma que, apesar de suas inúmeras aparições nas narrativas humanas, a jornada do herói jamais atingiu forma tão perfeita quanto aquela representada pelos 22 Arcanos Maiores do tarô, que tornam acessíveis não apenas o acontecimento arquetípico, mas também as diversas ramificações deste, sendo, deste modo, um guia de ação singularmente direto, e consequentemente singularmente útil87.

O baralho dos Arcanos Maiores se inicia com O Louco, única das cartas que não é numerada, o que indica, juntamente com a sua ilustração, o indivíduo com a trouxa às costas, os pés na estrada, que é O Louco que vai percorrer o caminho disposto pelos outros 21 Arcanos88.

Embora a estrutura narrativa exposta por Campbell e Banzhaf seja a mesma, este a apresenta de modo ligeiramente diverso daquele, dividindo-a em não três, mas quatro etapas: a infância, a partida, com o amadurecimento e desenvolvimento da personalidade; a iniciação, que abarca a conquista de percepções mais profundas sobre o si mesmo e os desafios desencadeados por esta nova e complexa consciência; e o objetivo, a consciência plena da unidade total e maturidade alcançada com esta89. A etapa do retorno acaba por ser dividida em dois

estágios, um voltado ao processo de abertura transpessoal e outro focado no objetivo conquistado, a unidade abrangente, sinalizando a preocupação do autor em tratar com maior detalhamento as complexidades do processo narrado.

Conquanto o tarô não seja uma narrativa no sentido literário do termo, a estrutura da jornada do herói é visível em seu bojo. O baralho se inicia com O Louco, ou O Bobo, o arquétipo da criança, carta não numerada e exatamente por

86 BANZHAF, Hajo. Tarô e a Viagem do Herói. São Paulo: Pensamento, 2013. 87 Ibidem, p. 26.

88 COUSTÉ, Alberto. Tarô ou a máquina de imaginar. Rio de Janeiro: Labor, 1977. 89 Ibidem, p. 61.

isso o protagonista da jornada. Enquanto os demais arcanos são colocados em uma posição fixa, representando um caminho imutável, o louco não é preso a um ponto específico, transita livremente pelo caminho desenhado pelos outros Arcanos Maiores90. Sua não numeração confere-lhe, ainda, uma característica cíclica,

permitindo-lhe ser o início e o fim, dando à sua jornada um caráter contínuo. É relacionado simbolicamente com a experiência de ultrapassar limites, e à impulsividade necessária ao início da jornada. Também se conecta à alienação, despreocupação e inocência, próprias de um momento anterior à colheita de conhecimento.

Os Arcanos Maiores seguintes são O Mago e A Papisa, arquétipos do criador e da rainha do céu, respectivamente, representantes, para Banzhaf91, dos pais

celestiais do herói. A dualidade parental, terreno e celestial, é clássica na mitologia92,

devendo ser frisado o fato de que o caráter divino de um dos pais não é necessariamente literal, podendo ser representação de sua importância. Estas cartas representam a dualidade da realidade e das formas de enfrenta-la: o Mago está conectado com o poder, domínio, impulso criador, sendo voltado à ação; a Papisa, por sua vez, evoca a sabedoria, paciência, reflexão; enquanto o Mago vai de encontro, a Papisa se deixa encontrar93. São indicativos de qualidades que o herói

precisa alcançar a fim de que possa prosseguir com sua jornada, ou seja, alinham- se com o segundo momento da estrutura narrativa da jornada do herói, a separação, ou preparação. Também nesta fase se encontram os Arcanos da Imperatriz e Imperador, os pais terrenos94, arquétipos da mãe e do pai, que são também duais

em seu simbolismo; enquanto a Imperatriz é conectada com a Mãe Natureza, com a fecundidade e a plenitude, o Imperador se liga à força produtora, à civilização, ao governo, autoridade e concretização95. O caminho representado pelo tarô é duplo, O

Mago, Arcano I, inicia o caminho masculino, da conscientização. A Sacerdotisa, Arcano II, por sua vez, dá início ao caminho feminino, que vai a busca do contato com o inconsciente, com o misterioso. A denominação masculino e feminino não possui natureza indicativa daqueles que se devem se dedicar a cada um dos

90 NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô: Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1997. 91 BANZHAF, op. cit. p. 36.

92 Podemos apontar como exemplos Hércules, Perseu, Jesus Cristo, Taliesin e o Rei Arthur como

exemplos.

93 BANZHAF, op. cit. p. 38. 94 Ibidem, p. 42.

caminhos, na verdade sinalizam o resultado final destes. Após percorrerem ambos os caminhos os homens e as mulheres tornam-se inteiros96. Este protagonismo da

necessidade de harmonia, e reconhecimento da composição do mundo pelo material e imaterial, pelo consciente e inconsciente, se conecta diretamente com os objetivos propostos pela ideia de gaia ciência.

O estágio da iniciação também abarca Os Arcanos do Papa, ou Hierofante, arquétipo do santo, que é a figura do despertar da consciência, da busca de sentido, do ensino, dever, moralidade e iniciação97; dos Amantes, arquétipo da encruzilhada,

que evoca não apenas os temas afetivos da união, ligação e sentimentos, como também o livre arbítrio, escolhas, maioridades e provações98. A iniciação finda com o

Carro, arquétipo da partida, que simboliza o adentrar em um mundo polar, com as suas possibilidades diversas que, embora tenham o poder de dilacerar podem ser dominadas e gerar grandes avanços, é o caminho do inconsciente para o si mesmo e por isso relaciona-se com a contemplação ativa, triunfo, sacerdócio e realização.

O Arcano VIII, A Justiça, arquétipo da esperteza, sinaliza o princípio da etapa da iniciação, desencadeada em Banzhaf pelo Carro99. Representa, no contexto do

herói, a necessidade deste de aprender as leis do mundo, a sua submissão às consequências de suas próprias ações, o que indica a responsabilidade de um ego maduro, assim, evoca a estabilidade, ordem, lei, lógica, disciplina, obediência100. É

seguida pelo Eremita, arquétipo do velho sábio, que representa a sabedoria, iluminação, estudo e autoconhecimento101. Este é ligado à reavaliação da vida e dos

objetivos, conectando-se, assim, ao momento em que o herói aprende seu verdadeiro nome, com a toda a magia que este conhecimento nuclear implica102.

O que segue o autoconhecimento primordial alcançado com o Eremita é a busca da tarefa, as experiências pelas quais temos de passar durante a vida a fim de nos tornarmos inteiros, trazida à frente pela Roda da Fortuna, arquétipo da previsão oracular, que indica os ciclos sucessivos da natureza, ascensões e declínios103. O Arcano da Força é o seguinte. Arquétipo da domesticação do animal,

evoca coragem, força moral, autodisciplina e controle. É indicador do equilíbrio entre

96 Ibidem, p. 31. 97 Ibidem, p. 48. 98 Ibidem, p. 51-52. 99 Ibidem, p. 53.

100 NICHOLS, op. cit. p. 159. 101 Ibidem, p. 169.

102 BANZHAF, op. cit. p. 69. 103 Ibidem, p. 76.

o consciente e o inconsciente104, a ser buscado na viagem realizada, viagem que, no

Enforcado, Arcano seguinte, encontra percalços. O Enforcado, arquétipo da prova, significa simbolicamente um desafio, retificação do conhecimento, a aceitação do destino ou de um sacrifício; é um momento de crise em que devemos perceber a intensidade de nossa natureza simultaneamente material e imaterial105, sendo

adequadamente seguido da Morte, arquétipo da morte, símbolo de grandes transmutações, de renascimento, criação e destruição, de fins necessários106. Em

conjunto com o Enforcado traz o fim de uma era a partir da compreensão daquilo que ela exigia de nós, uma completude verdadeira e plena. É interessante notar que é a partir da Morte que iniciamos uma jornada por Arcanos com iconografia noturna, que não se estendem, porém, ao final do baralho, que volta a trazer o sol, dando uma natureza cíclica à sua narrativa.

A Morte abre o terceiro estágio da jornada em Banzhaf, a abertura transpessoal, e é seguida pela Temperança, arquétipo do condutor de almas, adequadamente evocadora da renovação da vida e da abertura às influências celestes107. É representativa da adaptação, flexibilidade, harmonia e equilíbrio, sendo

significativa sua posição entre a Morte, que, simbolizando o fim, traz consigo a ideia de nada, e o Diabo, arquétipo do adversário, que é relacionado à ganância. A Temperança é a medida certa, o equilíbrio adequado entre extremos.

O Diabo não é um Arcano associado apenas à ganância, traz em si a ideia de novas provações, especificamente ligadas a tentações e seduções. Traz magia, desordem, luxúria, dependência e mistério; do ponto de vista psicológico estes mistérios envolvidos em novas provações são os nossos demônios interiores, aquelas partes de nossa consciência108 que reprimimos, relegando-as à negligência

e subdesenvolvimento, mas que ainda fazem parte de nós e manifestam-se, usualmente de forma indesejável, sendo a aceitação e trabalho destas partes essenciais à conquista do equilíbrio, que culmina com o Arcano da Torre, arquétipo da libertação, representante simbólica dos desafios de um momento de transição, do rompimento de formas aprisionadoras, da dualidade de pensamento, a liberação

104 NICHOLS, op. cit. p. 203. 105 BANZHAF, op. cit. p. 98-101. 106 Ibidem, p. 118.

107 NICHOLS, op. cit. p. 248.

para um novo início109, o que nos leva à Estrela, arquétipo da sabedoria, portadora

simbólica da esperança, plenitude, e compreensão da sabedoria do cosmos110.

A fase da abertura transpessoal, ou da Iniciação para Campbell, é encerrada pela Lua, que corresponde simultaneamente aos arquétipos da noite e da alvorada, marcando o início da etapa do retorno para Campbell. Indicadora da inteligência instintiva, das expressões simbólicas e analogias, abarca também aparências e ilusões. Relaciona-se aos ciclos vitais e emocionais, levando, portanto, a uma necessidade de reavaliação e de retorno à fonte, sendo, desta forma, o último desafio do herói, o seu caminho de volta, a vitória sobre os aspectos sombrios de nossa composição111, que apenas pode ocorrer se não nos deixarmos seduzir por

seus traços claros, daí seu posicionamento no final da jornada, quando nossa natureza total já foi alcançada.

O retorno, ou a libertação-totalidade, última etapa da jornada, iniciada na Lua em Campbell, porquanto o retorno representa o desafio final e culminação das lições apreendidas112, é marcado pelo Sol por Banzhaf113. Enquanto Campbell amalgama a

superação derradeira e as recompensas geradas por esta na mesma etapa, Banzhaf114 destaca a enormidade da tarefa conquistada, bem como sua

complexidade, ao conceder-lhe estágio separado. O Arcano do Sol, arquétipo do dia, é portador da clareza, da razão, da ressureição diária ao final da noite, sentido no qual indica uma vitória, a conciliação real entre os polos opostos que constituem o homem.

A constatação da conciliação, contudo, não finda a jornada, e não apenas porque esta é cíclica, uma vez que a consciência superior conquistada permite ao homem a percepção de novas questões a serem enfrentadas, mas também porque após as provações passadas um exame de consciência precisa acontecer, a percepção da renovação atingida e uma avaliação dos rumos da existência se dão, desencadeando uma transformação profunda.

109 NICHOLS, op. cit. p. 285. 110 BANZHAF, op. cit. p. 161. 111 Ibidem, p. 164.

112 Ibidem, p. 166. 113 Ibidem, p. 177. 114 Ibidem, p. 61.

O baralho encerra com o Mundo, arquétipo da transformação, que, adequadamente, simboliza a finalização, realização, apoteose. É o equilíbrio inspirado, o encontro do próprio lugar no mundo115.

A jornada é visualizada no tarô através da seguinte ilustração idealizada por Banzhaf:

Figura 5: A Jornada do herói representada no tarô

Fonte: BANZHAF, Hajo. Tarô e a Viagem do Herói. São Paulo: Pensamento, 2013, p. 61.

4.5 A EUDAIMONIA: OBJETIVO DA JORNADA DO HERÓI, PROPOSTA DA GAIA

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