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2 PROBLEMA E PANORAMA

3.2 A BELLE ÉPOQUE

3.2.3 Jornais

Até então representado em sua maioria por romances, o regionalismo, a partir de 1890, encontrou na contística um meio que lhe foi afeito, possibilitando um novo tipo de enfoque — a preocupação com tipos particulares. A razão para isso ter ocorrido provém de mudanças no modo de produção: se tomarmos os autores que iniciaram suas carreiras na década de 1890 ou posteriormente, eles possuíam uma estrutura editorial diversa daquela de seus predecessores. Embora os ficcionistas antecessores também possuíssem ligações fortes com os jornais, era através de uma imprensa restrita, formada menos por empresas do que por particulares. Com o passar dos anos, certos aspectos da evolução tecnológica que ocorria permitiu a existência da imprensa em massa, um espaço mais adequado para crônicas, contos

e, ao mesmo tempo, experimentações.

Falando de forma sucinta, com a República e as reformas de Rui Barbosa, os estados passaram a controlar melhor suas economias, e muitos deles decidiram utilizar esses novos recursos para fazer a alfabetização em massa. Isso, somado à vinda de imigrantes (proporcionalmente mais alfabetizados que os brasileiros nativos daquela época), aumentou o público para obras escritas. Os jornais tendiam até então ao partidarismo e à pouca especialização em suas funções, visto o custo de sua produção; com invenções, por exemplo, como a imprensa rotativa e o telégrafo, foi possível que empresários, agora com mais espaço e liberdade para seus negócios, seguissem algo já em prática no exterior: a produção de jornais em grande escala. As tiragens aos milhares e o preço menor aumentaram sua possibilidade de compra por pessoas com poucos recursos. Um jornal feito em massa custava um sexto de um jornal partidário. Mais que isso, jornais possuíam melhor distribuição: eram também vendidos nas ruas, com os vendedores comprando antecipadamente lotes e revendendo, buscando uma margem de lucro — antes, o próprio jornal precisava distribuir suas cópias ou vendê-las na própria sede. Aumentando o público possível, a imprensa pôde produzir uma mídia mais ampla, que interessasse a um grande grupo de consumidores, ao invés de um seleto público de nicho (CALDEIRA, 2017, cap. 45).

Novos jornais surgiram; mais assuntos passaram a ser tratados; vendas maiores permitiam mais empregados — isso possibilitou a existência de um tipo de escritor adequado aos limites do meio:

Em vez de escrever para adeptos, os jornalistas passaram a escrever para pessoas dispostas a se informar muito pagando pouco. E, nesse tipo de jornal da primeira década republicana, a figura que marcou a passagem de um modelo a outro foi a do cronista, que anda pela cidade, observa o comportamento de indivíduos ou grupos e relata o que lhe chama a atenção. (CALDEIRA, 2017, p. 369).

Essa é uma diferença importante entre Arinos, Coelho Neto, Silveira e outros em relação aos regionalistas prévios. A “escola” deles, podemos dizer, foi o trabalho em grandes jornais. Ali, o foco era outro, os temas poderiam ser mais variados — e, claro, os próprios textos desses escritores, pela qualidade, ajudaram a vender ainda mais jornais, inclusive alterando visões reinantes até então. Mencionando Lima Barreto, Silveira e Lopes Neto, Caldeira aponta que esse novo profissional foi capaz de “descrever com simpatia figuras populares, a narrar por escrito culturas tradicionais que até então não haviam merecido registro escrito no Brasil” (CALDEIRA, 2017, p. 369) — o que se aplica à crônica e que também se estende às obras ficcionais desses e outros autores.

A ligação entre conto e crônica pode ser melhor compreendida se considerarmos a simbiose existente então entre literatura e jornalismo. Se, por um lado, os escritores, dependiam da imprensa para fazer seus trabalhos chegarem ao público, não havia ainda estrutura comercial para que houvesse o profissional que hoje chamamos de “jornalista”. A isso Nelson Sodré chama de “geração curiosa”, em que havia uma dependência mútua, “uma fase em que imprensa e literatura se confundiam tanto — e isso, só por si, mostra como a imprensa engatinhava, não tendo criado, aqui, ainda, a sua própria linguagem e definido seu papel específico” (SODRÉ, 1999, p. 135).

Embora não tenhamos certeza de que a imprensa possui um “papel específico” que, supostamente, teria alcançado em algum momento de nossa história, o importante é que as barreiras eram mais tênues do que são hoje. Na Belle Époque, os jornais tinham muita literatura — e, também, a literatura tinha muito do jornalístico (disso, provavelmente Os

sertões de Euclides da Cunha seja o melhor exemplo). Com o passar dos anos, essa união foi

se afastando; no nosso período de estudo, os campos literários e jornalísticos se confundiam mais do que se repeliam, e isso permite entender a aproximação entre a crônica e a contística. E não é apenas por uma questão de afinidade entre os gêneros literários: ambas fazem parte de um grupo amplo de atividades que o literato da época realizava. Ele era, por assim dizer, “pena pra toda obra” — além de crônicas e contos, escrevia artigos, críticas, resenhas, alguns faziam textos, versos e slogans para propagandas de produtos, e até mesmo obituários (SODRÉ, 1999, p. 281–283). O limite era: ser adequado para as páginas do periódico.

Enfim, um novo campo se abriu (ou, melhor, um campo antigo se viu alterado pela modernização), e com isso novas possibilidades técnicas literárias puderam surgir. Entendamos isso com um exemplo. Valdomiro Silveira é um autor que divide com Arinos e Coelho Neto a primazia do conto regionalista. Manteve-se, em sua carreira literária, focado em descrever a cultura do interior paulista, incluindo a utilização do dialeto pelo sertanejo. O autor dizia frequentar as festas caipiras e mantinha anotações do linguajar interiorano (FREDERICO, 2007, p. IX-X). Não foi da noite para o dia que ele desenvolveu sua técnica, porém; para representar os caboclos, pôde testar métodos narrativos diversos em seus contos, todos publicados em jornais, com muitos deles jamais sendo compilados em livro. Alguns experimentos foram reunidos em um arquivo do autor sob o título Mucufos, obra nunca publicada.16 A coletânea chama a atenção pela diversidade — além dos contos com transcrição ortográfica, pelo qual ele se tornaria conhecido, há um conto sem discurso direto algum, algo

16 Hoje temos acesso a ela (BARBOSA, 2007, p. 42–232). Em cada conto apresentado nessa dissertação está indicado o jornal e a data em que ele foi publicado.

raro em sua obra (“Primeira Queda”); outros em norma culta (“Rabicho”, “Mutirão”, “À hora da prisão”, “Quebrante”); alguns com raras transcrições ortográficas e ocasionais contrações de palavras (“Castigo do céu”, “Amaldiçoada”, “Bocó-de-mola”, “Jurando falso”), e inclusive um no estilo castiço (“Seo doutor”).

Tudo indica que Silveira deu preferência, nos livros que publicou em vida, em selecionar contos em que seu estilo já estivesse definido. As histórias de seu primeiro livro,

Os caboclos, coletadas em livro em 1920, haviam sido escritas e publicadas entre 1897 e 1906

em jornais diversos. Elas possuem, quase todas, um narrador culto e personagens falando em transcrição ortográfica. Mais que isso, Os caboclos possui uma unidade interna forte, da qual seus contos inéditos em livro destoariam. Em suma, para alcançar o estilo pelo qual ficou mais conhecido, o autor levou alguns anos de prática, de tentativas e “erros”, por assim dizer, em um meio adequado a experiências, ao mesmo tempo em que era lido e recebia por isso.

Os periódicos permitiam mais experimentos, o que também era adequado para representar novos grupos de pessoas. Em jornais de maior circulação e com temáticas amplas, um conto, uma crônica específica sobre um assunto, sobre um tipo particular, ou que tenta utilizar ferramentas literárias diversas, é algo adequado, ao contrário do que aconteceria em um jornal restrito e caro, ou mesmo em um livro impresso. De acordo com Caldeira, “assim começava o processo de amalgamento de culturas antes inteiramente separadas nas letras” (CALDEIRA, 2017, p. 369).