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cidade, comprometendo a sua remodelação. Esses sujeitos eram componentes das classes pobres, as quais eram vistas como um perigo.

Entretanto, apesar de todos os discursos e de todas as ações repressivas, no interior da ilha mantiveram-se, ainda por muito tempo, as noções tradicionais de trabalho. Como esclarece Maria Bemardete Flores, em seu estudo sobre a farra do boi:

Os pobres, no afã da subsistência, se viravam como

podiam o ano todo, com uma diversidade imensa de atividades. Ora na apanha do café, ora na farinhada, ora na pesca, dependendo da ocasião. Durante o dia, a lavrar um pedacinho de terra para subsistência; no cair da noite, a pescaria de tarrafa para trazer os peixes para o caldo da ceia53

Em suma, pode-se dizer que apesar dos incessantes discursos de uma noção de trabalho pautada pelo regime capitalista, alguns homens e mulheres ainda trabalhavam regidos pelo “tempo da natureza”. O “tempo da natureza” começava a ser substituído pela mediação do “relógio”, uma das muitas mudanças advindas com o redimensionamento da noção de trabalho.

53 FLORES, Maria Bemardete R. A Farra do boi. Palavras, sentidos, ficções.FPOLIS, ED:UFSC,1997 p 159

2.3. Outras práticas de trabalho: as mulheres trabalhadoras

Considero necessário destacar, nessa parte do estudo, as atividades exercidas pelas trabalhadoras, já que grande parcela dessas mulheres raramente são mencionadas, e quando ganham destaque são tratadas de forma pejorativa, folclórica. Nesse sentido, entendendo que tanto os trabalhadores quanto as trabalhadoras merecem visibilidade por suas atividades desenvolvidas na cidade, entrevistei algumas mulheres que exerciam as atividades de costureiras, vendedoras, lavadeiras. A partir de suas narrativas foi possível perceber as dificuldades enfrentadas nas relações de trabalho, os laços de solidariedade entre as mulheres, enfim, foi possível perceber que o cotidiano das mulheres apresentava uma jornada de trabalho ainda mais extenuante do que a dos homens. Pois, em suas narrativas, argumentavam que se dividiam entre o trabalho de casa e o fora dela.

Desta forma, é necessário trazer, além das questões imersas no cotidiano dos trabalhadores, as vivências das trabalhadoras, os conflitos, as resistências, as dificuldades, enfim, suscitando a heterogeneidade das formas de viver e trabalhar, isso sob vários aspectos, sobretudo no que se refere ao conteúdo e significação ou à importância de nossos tipos de atividades54

Deste modo, através do cotidiano tenta-se recompor como os trabalhadores e trabalhadoras mantinham ou modificavam seus elementos culturais em meio às transformações ocorridas na cidade, mas sobretudo como, através do cotidiano, compunham suas experiências de vida e trabalho. O cotidiano se configura, então, como espaço de lutas, conflitos, pois, através do esmiuçar das mediações sociais, possibilita a inserção de sujeitos históricos concretos, homens e mulheres, no contexto mais amplo

da sociedade em que viveram55. Deste modo, emergem no cotidiano múltiplas ações e relações, continuidades e rupturas, os quais mostram a heterogeneidade dos modos de trabalhar, de viver, tanto de homens, como das mulheres.

Neste sentido, as pistas que procurei para vislumbrar o cotidiano dos trabalhadores apontaram para algumas questões, com certas evidências que mostram que as experiências dos homens faziam-se presentes na cidade. Entretanto, o mesmo não acontece com o trabalho das mulheres, pois, mesmo inseridas no cotidiano da cidade, na relação direta seja com outros sujeitos, ou mesmo no desempenho de suas atividades, sequer aparecem nos discursos documentados nos jornais e relatórios. Apenas raramente tem-se algum indício oficial deste trabalho, como ocorria , por exemplo, por ocasião da prisão de uma mulher.

Os relatórios do chefe de polícia, de 1916, mencionam as mulheres presas, algumas sem profissão, como Maria Manoela, sem instrução e presa por desordem, ou Anna Maria, que era cozinheira e foi presa como “vagabunda”. Em suma, essa mulheres, umas cozinheiras, outras lavadeiras, domésticas, na sua maioria sem instrução, muitas vezes eram presas por embriaguez, desordem, ou até mesmo por serem qualificadas como “ vagabundas”.

Essas qualificações, ou melhor desqualificações, relacionadas às mulheres fazem parte de uma série de discursos que viam as “ boas mulheres” como restritas ao espaço doméstico. Mas o que percebi diante das lembranças de mulheres que trabalhavam na cidade, e mesmo daquelas que não trabalhavam fora do âmbito doméstico, é que estas circulavam pelo espaço urbano, tendo domínio de suas ações, bem como mantinham muitas vezes o sustento da família. Como é o caso de D. Hercília, a qual reafirma várias vezes, que, gostasse ou não gostasse, tinha que trabalhar, porque titíha que ajudar a

dar estudos para as filhas. Eu não escolhi nada, porque a minha profissão era aquela56.

A memoria de D Hercília sobre o seu trabalho, o de lavadeira, que durante muito tempo manteve o sustento de seus filhos, bem como a manutenção de sua casa, denota a importância de se recuperar as experiências de trabalho das mulheres em Florianópolis nas décadas iniciais do século XX. D. Hercília lembra que não teve oportunidade de escolher em que trabalhar e, aos poucos, nos familiariza com suas palavras, seu cotidiano de vida e de trabalho, de forma que se pode perceber que a escolha, no caso das mulheres das camadas populares, era algo distante de sua realidade. O que marcava suas experiências era a busca pela sobrevivência:

Eu não tinha tempo de notar a cidade, ia buscar a roupa.(...) Eles mandavam a roupa com sabão, eu tinha uma que me ajudava a passar, porque eu não gostava de passar. Eu tinha que lavar, passar, mas era muita roupa.

Naquele tempo tinha marido trabalhando, tinha que cuidar dos filhos, estudando, tudo isso a gente precisava cuidar. Sabendo trabalhar, dava tudo certo. Pegava só a quantidade que pudesse trabalhar. Eu sozinha, mais Deus. Pagavam bem não, já viu lavadeira ganhar bem. Eu dizia para minhas filhas, Deus há de ajudar vocês, que essa cruz há de sair, porque assim que vocês se f ormarem, a gente para com isso.57.

55 SILVA, Maria Odila L. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea In: Projeto