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JOSÉ SARAMAGO E A REINVENÇÃO CRÍTICA DA HISTÓRIA

No documento felipedossantosmatias (páginas 101-137)

Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os fatos da História, pois essa nunca poderia ser a tarefa do romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido.

José Saramago, História e ficção205 Se, como afirma David Carr, “o passado pode ter variadas interpretações”206, pode-se pensar que a construção discursiva de qualquer sujeito

para explicá-lo estará sempre condicionada pela influência sócio-político-cultural de uma determinada época, tornando-se, assim, a História não uma ciência absoluta, mas uma seleção e interpretação207, com toda a carga semântica e subjetiva que

os termos evidenciam. Conforme foi desenvolvido no primeiro capítulo desta tese, essa ideia serviu de base aos pressupostos teóricos fundadores da Nova História, assentados no relativismo que procede da noção de que a realidade é social, política e culturalmente construída.

Para o crítico literário norte-americano Frederic Jameson, a Literatura é um “ato socialmente simbólico”208. Dessa forma, percebe-se que o texto literário possui

um papel significativo em relação aos acontecimentos histórico-sociais, representando-os e transfigurando-os esteticamente. Por pertencer ao universo

205 SARAMAGO, José. História e ficção. Jornal de Letras, Artes e Idéias (JL), Lisboa, n. 400, março de 1990, p. 19.

206 CARR, David. Time, Narrative and History. Bloomington: Indiana University Press, 1991, p. 171. (Tradução minha).

207 Nessa direção, Saramago, em entrevista ao jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, afirma que “A História não é uma ciência. É ficção. Vou mais longe: como na ficção, há uma tentativa de reconstruir a realidade através de um processo de seleção de materiais. Os historiadores apresentam uma realidade cronológica, linear, lógica. Mas a verdade é que se trata de uma montagem, fundada sobre um ponto de vista. [...] Enfim, há uma História dos que têm voz e outra, não contada, dos que não a têm”. (grifos meus). In: SILVA, Juremir Machado da. Vim do povo e sei como ele vive e pensa. Zero Hora (Segundo Caderno), Porto Alegre, 26 de abril de 1989, p. 21.

artístico-cultural e por não ter compromisso com o factual, a obra ficcional retrata a sociedade e a história de forma ideologicamente mais evidente209.

De acordo com Antonio Candido, na obra literária há a fusão de “texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”210. Nessa mesma esteira de

pensamento pode-se dizer, a partir das ideias de Gerson Roani211, que a

interpenetração entre texto e contexto corresponde à vinculação da obra literária às coordenadas histórico-sociais em que ela foi produzida. As relações entre ficção/realidade/sociedade parecem constituir-se como um dado inalienável do fazer artístico, correspondendo à configuração estética do mundo. As correlações entre a ficção e a sociedade são múltiplas, sendo que as mudanças sociais, políticas, econômicas e históricas incidem sobre o âmbito literário, afetando as estruturas formais, imagéticas e temáticas dos diferentes gêneros literários. Através do discurso ficcional, o escritor cria um sistema simbólico de representação da realidade, considerando a história da sociedade como meio de realização da palavra literária.

O Estado Novo em Portugal212, governado pelo ditador Oliveira Salazar, teve

início em 1933, com uma nova Constituição, que sancionou o nascimento oficial do regime totalitário. O salazarismo propiciou o renascimento de uma antiga aliança entre o poder político e a Igreja Católica, que voltou a ter papel central no País, como nos séculos de Inquisição.

A Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal na data de 25 de abril de 1974, representa, depois da instalação da República em 1910, o segundo acontecimento mais importante da História portuguesa do século XX e, talvez, um dos mais importantes de todo o processo histórico luso, por causa dos desdobramentos e caminhos que ela suscitou e tem, ainda hoje, originado. De

209 Nessa direção, Jean-Paul Sartre afirma que “a Literatura é por essência uma tomada de posição”. In: SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? São Paulo: Ática, 2006, p. 204.

210 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 44.

211 ROANI, Gerson Luiz. A História comanda o espetáculo do mundo: ficção, história e intertexto em ‘O ano da morte de Ricardo Reis’, de José Saramago. Tese (Doutorado em Literatura Comparada)-UFRGS, Porto Alegre, 2001, p. 82.

212 De acordo com o historiador português contemporâneo Fernando Rosas, o Estado Novo em Portugal fundou-se “em quatro linhas orientadoras: a recusa de uma democracia de cariz liberal, o nacionalismo corporativo, o estado forte e o intervencionismo econômico e social”. In: ROSAS, Fernando. Portugal e o Estado Novo (1930-1960). Lisboa: Editorial Presença, 1992, p.100.

acordo com o historiador português António Borges Coelho, a Revolução dos Cravos foi realizada após a

consciencialização político-social de um punhado de capitães, que, perante o espetáculo diário da morte inútil e criminosa, superaram a visão estreita da sua própria classe – a da média e pequena burguesia.

Verificaram na sua carne que os soldados portugueses queimados em três longas guerras africanas, não passavam de gendarmes, de carne para canhão sacrificada pela burguesia portuguesa aos seus corruptos interesses, aos interesses do imperialismo e do racismo na África Austral. Esta experiência africana permitiu-lhes igualmente ler a verdade no solo pátrio: também o povo português, como os seus irmãos de África, estava sujeito a uma feroz colonização que culminava nesta guerra imposta e na exportação maciça de mão-de-obra barata para os mercados “livres” do capitalismo europeu.

A experiência deste ano de revolução mostrou-lhes ainda que, no horizonte social, já os trabalhadores e alguns intelectuais viam há muito o que eles viram. Mostrou-lhe que a sua luta no 25 de Abril coincidia afinal com a luta antiga dos trabalhadores portugueses pela sua libertação. A libertação do homem pelo homem era, afinal, o desafio que se levantava213. (grifos do autor)

A derrocada do regime salazarista em abril de 1974 propiciou a Portugal um momento de ruptura em relação a um regime totalitário, dominado pela figura de Oliveira Salazar. Foi este momento e os acontecimentos subsequentes que propiciaram ao povo português, através da renovação do discurso intelectual (propiciada pela recuperação das liberdades individuais e coletivas), um novo olhar sobre a realidade do país. A abordagem da produção literária portuguesa destes últimos quarenta anos não pode prescindir de sondar o modo como a Revolução influenciou a atividade escritural dos autores do Portugal contemporâneo.

Segundo Gerson Roani, a anulação das amarras ditatoriais impostas à atividade artística “implicou em uma nova organização editorial, no apoio das entidades públicas à produção artística, na implantação de prêmios literários e, principalmente, na livre manifestação dos autores, anteriormente silenciados pelo antigo regime salazarista”214. Acerca dessas transformações da Literatura

213 COELHO, António Borges. O 25 de Abril e o problema da Independência Nacional. Lisboa: Seara Nova, 1975, p. 47-48.

214 ROANI, Gerson Luiz. Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis. São Paulo: Scortecci, 2006, p. 24.

Portuguesa nas décadas de setenta e oitenta do século XX, Carlos Reis diz o seguinte:

O olhar que hoje podemos lançar sobre a ficção portuguesa posterior a 1974 há de ter em conta necessariamente a projeção sobre essa ficção de tudo o que uma brusca mutação política implica e, no seu contexto, as consequências arrastadas pela supressão dos mecanismos repressivos que impediam a criação literária215.

O crítico literário português aborda a ligação existente entre as transformações político-sociais ocorridas em Portugal, a partir do ano de 1974, e a ficção lusa das décadas subsequentes. Obviamente, poder-se-ia estabelecer uma relação de cumplicidade entre o novo cenário político e as obras que surgiram posteriormente, sob o influxo revolucionário. Todavia, o estabelecimento dessa relação imediata traz no seu núcleo a exclusão de outros fatores, inclusive anteriores à Revolução, responsáveis pela pluralidade de vias ficcionais assumidas pelo romance português pós-Revolução.

O excerto de Carlos Reis menciona a produção literária portuguesa a partir da Revolução dos Cravos. No entanto, isso não reduz a Literatura Portuguesa contemporânea como apenas uma consequência das mudanças políticas ocorridas sob a atmosfera libertária do processo revolucionário. Deve-se ter em mente que, se a Literatura Portuguesa atual vive um período de efervescência, tal processo é tributário das tentativas de muitos romancistas lusos de todo o século XX, os quais pretenderam alcançar na prosa de ficção uma expressão originalmente portuguesa, e não apenas uma cópia das demais literaturas europeias. Esse esforço orientou a produção ficcional e crítica dos autores do Neo-Realismo e de alguns escritores das décadas de cinquenta e sessenta, como José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Alves Redol, José Régio, Vergílio Ferreira e Agustina Bessa- Luís. Entretanto, é inegável que esse esforço foi intensificado, tanto qualitativa, quanto quantitativamente, com a eliminação dos mecanismos repressores que coibiam a produção artística lusitana.

215 REIS, Carlos. Romance e história depois da Revolução – a ficção portuguesa contemporânea.

Atas do XVI Encontro de Professores Universitários de Literatura Portuguesa. Porto Alegre:

A Revolução dos Cravos foi narrada por inúmeros tipos de textos que se configuram como testemunhos dos desdobramentos do acontecimento de abril de 1974. De acordo com Gerson Roani, “jornais, revistas, livros de testemunhos e obras historiográficas procuraram descrever e, também, entender a dinâmica do processo libertário que desalojou do poder uma ditadura de quatro décadas, promovendo a abertura democrática”216.

Em meio a essa ampla gama de textos sobre tal acontecimento histórico, a Literatura, sob as formas da lírica, do romance e da dramaturgia, transfigurou, na plenitude de suas modalidades discursivas, esse importante momento da recente história portuguesa, não se limitando a realizar a mera representação da Revolução como evento transformador dessa sociedade. O universo literário português captou, no advento desse novo tempo, a necessidade de repensar os caminhos da expressão literária, sobre a qual havia pairado, durante quase meio século, o crivo de uma censura impiedosa e limitadora da livre manifestação artística.

Durante o regime salazarista, como em toda ditadura, os artistas e escritores colocavam diante de si, imaginariamente, o censor que condicionava e coibia a liberdade criativa. Esse procedimento angustiante sintomatiza o temor não do que a censura proibia, mas do que ela poderia proibir, quando a obra fosse submetida ao obrigatório julgamento prévio. A patrulha ditatorial intimidava os intelectuais e a sociedade, disseminando o medo sobre as possíveis consequências de qualquer ato contrário à política oficial. Era o recurso ao medo, do qual falou com ironia o escritor José Régio:

O medo é que guarda a vinha diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a atual situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquista o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar todo o horizonte217.

José Régio afirma que “o medo é que guarda a vinha”, evidenciando a apreensão que cercava a produção escritural portuguesa durante o salazarismo.

216 ROANI, Gerson Luiz. Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis. São Paulo: Scortecci, 2006, p. 25.

217 RÉGIO, José apud AZEVEDO, Cândido de. Mutiladas e proibidas: para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo. Lisboa: Caminho, 1997, p. 14.

Os escritores não sabiam quando uma obra podia ser proibida, ou mesmo destruída pela censura, sob os mais diversos e banais pretextos. A publicação de obras e de representações teatrais deveria ter o aval dos censores. Uma prática corrente era a apreensão e destruição de livros, assim como ocorreu durante a Inquisição, vitimando os autores e as editoras. Esta realidade marcou quase meio século do panorama artístico português, causando sérios e profundos danos aos diferentes âmbitos envolvidos.

Durante o regime totalitário português, escrever significava predispor-se a enfrentar condições muito penosas. A ação da censura aprofundou o isolamento dos intelectuais, chegando ao ponto de agir sobre o escritor, enquanto indivíduo, e não sobre o texto produzido. A instituição censorial e o regime político que garantia a sua sustentação recorreram, muitas vezes, às medidas repressivas extremas, como a prisão de escritores, críticos literários, jornalistas, professores e universitários.

Os regimes ditatoriais exercem uma influência avassaladora sobre as pessoas, fazendo com que elas passem a ignorar os seus interesses e as suas vontades pessoais, se anulem diante do que é dito ser o bem comum, transfiram forçadamente para o governante o poder de decisão e a responsabilidade de guiar o Estado. Nas ditaduras, muitas vezes há a união do Estado com o poder religioso, aliança que representa um fortalecimento dos poderes, um controle ideológico mais amplo, que dá grande sustentação ao regime autoritário. Isso ocorreu durante o regime salazarista em Portugal, visto que a Igreja apoiou e defendeu o ditador Oliveira Salazar (essa mesma aliança entre os poderes estatal e religioso ocorreu durante a Inquisição em Portugal, com a união entre o Absolutismo e a Igreja). A respeito dessa aliança entre o Estado e a Igreja, de suas características e consequências, Maria Elena Pinheiro Maia afirma o seguinte:

De um lado o Estado oferece a imagem de um homem austero, conservador, solitário; por sua vez a Igreja o vê como um messias, propagador da fé cristã, mitificando-o, fornecendo assim ao povo elementos para que se crie no inconsciente coletivo a imagem de Pai protetor, de Salvador. Esse mecanismo – Deus – Pátria – Família – reforça a base ideológica de todo o regime autoritário. A Igreja e o Estado, portanto, mutuamente se auxiliam, pois aquela vê neste a possibilidade de aumentar e assegurar o seu rebanho e este a vê como instrumento controlador daquilo que escapa às demais formas de controle social, impedindo as pessoas de

adquirirem consciência de suas reais condições de vida, incutindo- lhes a resignação e a obediência218(grifos da autora).

Além do auxílio da Igreja para se sustentar enquanto ditador de Portugal, Salazar foi apoiado também pelos fascistas espanhóis e os defendeu como retribuição, visto que via com receio e desconfiança as possíveis consequências de um regime democrático no vizinho ibérico. Aproximou-se igualmente da Itália fascista de Mussolini e da Alemanha nazista de Hitler. Salazar tinha com os dois ditadores afinidades ideológicas e admiração pela prática política, vendo-os como líderes ideais.

Durante o Estado Novo, Salazar instaurou em Portugal um regime forte e interventor. Por meio da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), um dos mecanismos de defesa do seu governo totalitário, ele garantia os seus interesses, visto que calava e exterminava qualquer indício de oposição. Com isso, observou- se em Portugal durante o salazarismo a consolidação de uma ideologia fascista, a qual foi garantida por um regime altamente repressor. A respeito da PVDE, o historiador Fernando Rosas pontua:

A Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, fator primeiro da organização onipresente do medo, da delação e da perseguição como elemento pesante e constante do quotidiano [...] constituiu-se no elemento central de um sistema repressivo que M. Braga da Cruz classifica como de “justiça política”. Nele se articulavam, com a polícia política, as prisões especiais, os tribunais especiais, as medidas de segurança e o saneamento político, constituindo um vasto aparelho de intervenção repressiva, cujos poderes e métodos de atuação permitem falar do Estado Novo como um regime de natureza claramente policial219.

A partir do que Fernando Rosas exprime no trecho acima, pode-se depreender que a PVDE, assim como a Inquisição ao longo de séculos, representava o “medo” e a “perseguição”, pela razão de que esse mecanismo repressor podia deter quem entendesse, sem nenhuma acusação e sem mandado ou fiscalização judicial.

218 MAIA, Maria Elena Pinheiro. O regime salazarista revisto por Saramago em O ano da morte de Ricardo Reis. Revista do Centro de Estudos Portugueses, Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, v. 22, n. 30, jan-jul de 2002, p. 251.

O autor, na sua originalidade, na profundidade da sua percepção da realidade, na sua visão privilegiada enquanto sujeito pensante, cria um texto ficcional que pode levar o leitor a intuir a significação de um momento histórico. Essa face da atividade do escritor e do seu produto, o texto literário, fica mais evidente num regime de força, no qual a censura e o medo pairam ameaçadores sobre o processo livre da comunicação.

A quebra das amarras colocadas pela censura do regime salazarista ao labor escritural de gerações de artistas ocasionou o empenho dos escritores portugueses, quando da derrocada do sistema repressivo, na realização de um compromisso revolucionário, atingindo as formas discursivas, os temas e as novas perspectivas de confecção ficcional descortinadas pela eliminação dos entraves impostos pela ditadura à atividade artística.

O ingresso em um novo tempo da História Portuguesa não significa de forma alguma, no caso da Literatura, um rompimento abrupto e definitivo com as produções literárias passadas, as quais fomentam um fecundo diálogo intertextual220 com as obras da contemporaneidade. A fronteira temporal não é

inexpugnável, mas sim maleável, no que tange às trocas e reflexões sobre a produção ficcional portuguesa no período anterior e na fase pós-Revolução dos Cravos. Segundo Roxana Eminescu, o novo cenário literário português estabelece em relação ao passado uma fronteira temporal que funciona como um

nexo, pois o novo nasce do velho, o que tomou hoje a forma dum núcleo, ontem, ou anteontem ainda não passava duma sombra. Os escritores de hoje não nasceram ex-nihilo, vêm de longe, dos anos passados, do tempo remoto de toda a literatura. Assim, referidas ou aludidas, obras anteriores a esse ano constituem o pano de fundo obrigatório do discurso sobre o romance português atual. [...] Reatar o fio a partir de 1974 significa, de fato, que vai tratar-se dos elementos estruturais da narrativa portuguesa que tomaram relevo, que se tornaram privilegiados, nos últimos anos, aproximadamente221.

220De acordo com Linda Hutcheon, o diálogo intertextual é “uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também um desejo de re-situar o passado dentro de um novo contexto”. In: HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991, p.157. 221 EMINESCU, Roxana. Novas coordenadas no romance português. Lisboa: ICALP, 1983, p. 12-13.

O fragmento do texto crítico de Eminescu destaca a ideia de continuidade, a fim de caracterizar a ficção portuguesa contemporânea em um processo de diálogo com a tradição literária portuguesa. Lendo dessa forma, o fluxo criador instaurado pós-Revolução não anula os projetos literários do passado recente, além de declarar que as circunstâncias e sendas políticas não foram as únicas responsáveis pelo novo cenário literário português. No caso do romance, por exemplo, há o aproveitamento por parte dos romancistas contemporâneos (como José Saramago, José Cardoso Pires, Antonio Lobo Antunes, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Agustina Bessa-Luís, Almeida Faria, Mário Cláudio e Miguel Sousa Tavares), no plano da forma literária, das características narrativas modernas (fluxo de consciência, tempo psicológico, fragmentação, metalinguagem, fusão entre prosa e poesia, diálogo com o leitor, imersão e adensamento psicológico na configuração das personagens, multiperspectivismo) das obras de autores como José Régio, Fernando Namora, Alves Redol, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira e Augusto Abelaira.

As criações literárias lusas pós-Revolução passam a explorar as angústias das situações experienciadas ao longo do salazarismo, como a censura, a repressão, as guerras africanas, o exílio e a imigração forçada. Como se vê, os temas veiculados pelo trabalho artístico espelham e reconstituem os interditos vividos pelos escritores e pela população portuguesa, cuja livre expressão era impensável no período ditatorial. Esses novos artifícios ficcionais suprem a falta de um tipo de exercício escritural que, durante a ditadura, era inviável ou era empreendido sob o signo do hermetismo e da linguagem alegórica. A respeito desse novo panorama literário, o filósofo português Eduardo Lourenço faz o seguinte comentário:

A importância do momento revolucionário, após o vazio imaginante natural dos começos, foi a de descobrir diante de todos – velhos ou novos autores, um espaço, aberto um horizonte efetivamente liberto, com a sua angústia necessária, com o seu desafio em termos não codificados como os do jogo conhecido da antiga atmosfera222.

222 LOURENÇO, Eduardo. O canto do signo – existência e literatura (1957-1993). Lisboa:

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