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Judaísmo em Suspensão: O Judaísmo de Flávio Josefo.

Inclina-te da tua morada santa, do céu, e abençoa o teu povo Israel, como também o solo que nos deste, conforme juraste aos nossos pais, uma terra onde corre leite e mel (Dt, 26: 15).

A nação ou o reino que recusar servir a Nabucodonosor, rei da Babilônia e não entregar o seu pescoço ao jugo do rei da Babilônia, eu castigarei essa nação pela espada, pela fome e pela peste – oráculo de Iahweh – até que eu a consuma por sua mão (Jr, 27: 8).

Não discutirei com os críticos severos a respeito da emoção: que atribuam os fatos à História e as lágrimas ao historiador (BJ, I: 12).

Após a destruição de Jerusalém, Flávio Josefo passou a residir em Roma. Lá permaneceu até seu falecimento, em algum momento entre os séculos I e II. Apesar de todos os seus esforços na promoção e reflexão sobre aspectos do Judaísmo, seus conterrâneos de fé progressivamente o esqueceram: a época das polêmicas com Justo, da correspondência trocada com Agripa II e dos embates com adversários palestinos extinguiu-se, sobrevivendo os escritos de Josefo como lembrança única. Única? Neste capítulo vamos observar Flávio Josefo e seus escritos imersos dentro de um universo literário judaico radical e profícuo; particularmente suas observações em torno do Judaísmo expressadas no Contra Apionem nos auxiliaram a compreendê-lo dentro deste movimento literário complexo e, em relação a isto, suas feições originais. Aproximamo- nos das reflexões propostas por Jan Assmann em torno do conceito de memória cultural para interpretarmos sua leitura do Judaísmo atrelada ao complexo do Templo de Jerusalém, visto que Josefo sempre afirmou sua origem e formação sacerdotal. Em síntese, sua compreensão do universo judaico revelou-se mais interessante quando nos remetemos ao contexto literário mosaico do período e ao “pensamento do Templo” desenvolvido em torno desta instituição.

O fato é que desde os trabalhos pioneiros de Heinrich Grätz (SCHMIDT, 1998, p. 47) consolidou-se uma interpretação história do Judaísmo que articulou diretamente a catástrofe nacional de 66/70 (com o “adendo” de 132/135) com o desenvolvimento de um movimento intelectual e religioso caracterizado pela construção de uma “Literatura

Rabínica207”. O próprio Grätz acentuou esta relação ao identificar em Yohanan ben Zakkai208 “o artífice desse renascimento” (SCHMIDT, 1998, p. 47-48), pois o antigo sacerdote trânsfuga converteu-se no primeiro grande sábio do círculo intelectual de Yavné, demarcando claramente uma interpretação que percebeu os doutores e sábios da Lei – os soferim – como os verdadeiros membros de uma intelligentsia que sucedeu os profetas bíblicos clássicos. Ainda verificamos esta linha interpretativa no grande livro de Yosef Hayim Yerushalmi, Zakhor; notadamente Yerushalmi esforçou-se em observar que o programa intelectual e religioso desenvolvido por judeus helenizados como Filo e Josefo foi suplantado pelos soferim, concluindo que “dentro do Judaísmo o futuro pertencia aos rabinos, não a Josefo”. Esta ruptura não ficou restrita ao abandono de estilos literários orientados pelas influências helenas (como a História de Josefo e os métodos alegóricos de análises empregados por Filo), mas caracterizou-se pelo radical lugar central que as Escrituras Sagradas passaram a ocupar dentro do Judaísmo Rabínico. Para Yosef Yerushalmi:

Durante o intervalo [grifo nosso] entre a destruição e a redenção, a principal tarefa judaica era responder final e completamente ao desafio bíblico de se tornar um povo sagrado. E para eles isso significava o estudo e o cumprimento da lei escrita e oral, o estabelecimento de uma sociedade judaica baseada totalmente em seus preceitos e ideais, e, no tocante ao futuro, confiança, paciência e orações (YERUSHALMI, 1992, p. 43).

Entendemos que esta interpretação traz um vício de origem que precisa ser observado: perceber a Literatura Rabínica como o único caminho, única resposta ou direção óbvia e possível para o futuro judaico é uma generalização perigosa em dois aspectos: em primeiro lugar, tal percepção acentua uma formulação teleológica da História Judaica, conferindo ao télos do Rabinismo uma orientação formal de um processo bastante complexo; em um segundo ponto, esta leitura esvazia ou minimiza outras possibilidades de “futuros alternativos” (GUARINELLO, 2004, p. 26) que estavam presentes neste intervalo experimentado entre a destruição do Templo e o desenvolvimento dos Talmudim. Assim, uma rápida leitura pela tradição rabínica pode nos levar ao equívoco de compreender este importante momento da História do Judaísmo orientado em uma direção única, impressão reforçada pela própria Literatura

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Um exemplo desta linha interpretativa pode ser encontrado em, SCARDELAI, 2008, p. 129-168.

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Para uma excelente interpretação da figura de Yohanan ben Zakkai como o personagem modelar deste momento de rotura e construção, consultar: NEUSNER, 1975, p. 21-94.

Rabínica que tende a apresentar-se como homogênea e produzida por Rabbis, membros seletos das comunidades judaicas que pretendiam possuir uma “educação, vocabulário, valores e cultura comuns” (COHEN, 1989, p. 214).

Curiosamente, os marcos cronológicos que balizaram este “Período Rabínico” (iniciado em 70 e encerrado no século VI) em linhas gerais acompanharam a cronologia estabelecida dentro da interpretação da Antiguidade Tardia, que soube revalorizar, sobretudo, elementos culturais das sociedades do Antigo Mundo Romano (WARD- PERKINS, 2007, p. 250) em detrimento de uma leitura pejorativa do período. Este “momento” da Literatura Rabínica igualmente revalorizou um tempo difícil da História do Judaísmo, acertando em evidenciar a imensa criatividade religiosa do período, mas generalizando demais quando aceitou a explicação histórica fornecida pelos textos rabínicos. Esta tradição literária consolidada durante séculos procurou amenizar seus impasses, passando rapidamente dos tumultuados movimentos de 66/70 – 132/135 para a comunidade acadêmica de Yavné, escamoteando outras possibilidades e interpretações em jogo no período (como as produzidas por Josefo, por Pseudo-Filo e pelos Apocalipses de Abraão, IV Esdras e II Baruc). Neste sentido seguimos o alerta de Shaye J. D. Cohen:

But these facts do not mean that rabbinic literature really is seamless or that all rabbis of antiquity thought and behaved in identical fashion. The homogeneity of the rabbinic corpus is offset to some extent by geographical, chronological, and literary diversity. Works produced in the land of Israel have certain distinctive characteristics missing from works of Babylonian provenance, and vice versa. Every generation of rabbis had its own interests. In particular, the rabbis of the second century, known as tannaim (literally, "repeaters," or "teachers"), who produced the Mishnah and other tannaitic works, must be distinguished from the rabbis of the third to fifth centuries, known as

amoraim (literally, "speakers"), who produced the two Talmudim and

other amoraic works. Each document within the rabbinic "canon" has its own characteristic methods, themes, and message (COHEN, 1989, p. 215).

Esta complexidade apontada por Shaye Cohen dentro do “cânon rabínico” também precisa ser observada em outras criações literárias do período que destoam desta orientação ao Rabinismo. Considerá-las aumenta nossa compreensão dos impasses e da vitalidade experimentados pelos judeus, como também auxilia em leituras sobre o Judaísmo de Flávio Josefo.

A resposta tradicional que o pensamento rabínico construiu para o desastre de 70 retomava o livro do profeta Oséias na seguinte observação: “Porque é o amor que eu

quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os, 6: 6).

Esta citação bíblica funcionou como um ponto de consolação e orientação dentro da Literatura Rabínica, que atribui ao pioneiro Yohanan ben Zakkai o início desta nova interpretação (NEUSNER, 2004b, p. 65). A destruição do Templo e a interrupção de seu rito de sangue ameaçou a ação expiatória do antigo sacrifício mosaico; retomando o excerto de Oséias, os judeus pios poderiam encontrar um novo nexo com YHWH radicalizando em seus relacionamentos com as Sagradas Escrituras, tomando-as como a base para uma remodelação da História da Aliança e do povo judeu. Os pensadores crentes no Judaísmo remetiam este desenvolvimento histórico ao patamar de uma saga

eterna, visto que a Aliança era irrevogável. Todavia, esta História se dava dentro de um

mundo concreto, habitado por outros povos, nações e impérios que ameaçavam Canaã e a execução das regras de pureza mosaicas. Em linhas gerais entendemos que estes impasses provocados pela destruição do Santuário (como também da instituição sacerdotal que o circundava) e pela relação complexa construída com os goyim fomentaram reações e respostas intelectuais variadas, que foram além da Literatura Rabínica.

A produção literária após 70: Reflexão e Reconstrução.

Os acontecimentos catastróficos ocorridos na Judeia romana na segunda metade do século I a.C. impactaram os judeus palestinos com uma violência maior que a perseguição promovida dois séculos antes pelo rei Antíoco IV Epífanes (COHEN, 1989, p. 215). A sabedoria de Jeremias confirmou-se mais uma vez com pesada exatidão: a rebelião armada não libertou os judeus do jugo gentio (NICKELSBURG, 2011, p. 491; GURTNER, 2008, p. 1-2). Onde estava YHWH? Quais foram os seus propósitos? Embalados por impasses como estes, os judeus palestinos experimentaram a dura tarefa de reconstruir o Judaísmo “sobre uma fundação muito nova” (NEUSNER, 1975b, p. 34), sem a instituição sacerdotal e a prática de sacrifícios animais. Nesta ação fomentaram uma incrível consciência e reflexão sobre seu lugar na História, pondo ênfase na santificação do povo – a Shechiná que agora reside entre os judeus – e na

ordenação correta (em seus graus de pureza) de todas as coisas. Nas palavras de Jacob Neusner:

A crise da destruição centralizara a atenção naquilo que tinha resistido, persistido para além do fim: o povo, a própria comunidade de Israel. Já se estabelecera a convicção de que Israel era especial e o que lhe ocorria representava a vontade divina. Devido à sua espetacular experiência de perda e restauração, morte e ressurreição, Israel adquirira (em sua própria imagem) uma autoconsciência formidável (NEUSNER, 2004b, p. 73).

O fim dos sacrifícios sangrentos e da sociedade sacerdotal trouxe o problema central para o Judaísmo Antigo da expiração, visto que os Holocaustos promovidos no Santuário consagravam vítimas na esperança de modificar e conferir um estado religioso profundo aos ofertantes (que no caso representavam todo Israel). Com o arrasamento do Templo de Jerusalém, os sacrifícios hattât (expiatórios) e shelamin (de graças e alianças) não poderiam ser praticados, assim como todos os rituais preparatórios que visavam afastar o crente de uma condição profana, retirando-o da vida corriqueira para introduzi-lo em um universo sagrado (MALANGA, 2005, p. 204). A figura do sacerdote, tão copiosamente zelado no código Levítico, colapsou-se juntamente com a extinção de seus elementos simbólicos e religiosos209. Neste quadro tão depressivo e angustiante os textos judaicos concentraram-se em recuperar personagens das sagas bíblicas que militaram pela resignação e consolação, como Jeremias, Baruc e Esdras. Em Antiquitates Judaicae, por exemplo, Josefo cultivou um apreço especial pelos profetas da Queda Jeremiais e Daniel, afastando-se de Isaías, e por Saul, o triste monarca judeu derrotado (RODRIGUES, 2000, p. 34). Seu Moisés é o legislador de uma Constituição Sagrada superior, mas que prontamente se acomoda na governança goy (MOMIGLIANO, 1990, p. 107-108), assim como este líder fundante converteu-se em uma espécie de “primeiro rabino” (NEUSNER, 1975b, p. 63) dentro da Literatura Rabínica. Neste sentido, nenhum personagem representou melhor este quadro do que Rabban Yohanan ben Zakkai: este lendário sábio era um antigo sacerdote que, fugitivo da Jerusalém sitiada, conquistou de Vespasiano o direito de fundar uma

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Concordamos com a definição clássica proposta por Marcel Mauss e Henri Hubert sobre a função sacerdotal dentro de instituições religiosas promotoras de sacrifícios: “O sacerdote é por um lado o mandatário do sacrificante, de quem compartilha o estado e apresenta as faltas. Mas por outro lado ele é marcado por um selo divino: traz o nome, o título ou as vestes de seu deus; é seu ministro, sua encarnação mesma, ou pelo menos o depositário de seu poder; é o agente visível da consagração no sacrifício. Em suma, ele está no limiar do mundo sagrado e do mundo profano e os representa simultaneamente: os dois se reúnem nele” (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 29).

academia exegética em Yavné210. Cheio de esperanças futuras, o mítico fundador do Rabinismo acreditou ser mais prudente acomodar-se entre os legados romanos no presente. E em tais bases consolidou-se uma tradição literária surpreendente.

Em linhas gerais a Literatura Rabínica211 construída até o século IV preocupou- se em debater três grandes questões:

1. Revisar e comentar as Sagradas Escrituras, consolidando cânones e fixando textos em hebraico (texto consonântico), aramaico (tradição em torno da Guemará) e grego (com as revisões da Septuaginta empreendidas por Áquila, Símaco e Teodocião);

2. Desenvolver e investigar atributos da Lei através de ponderações sobre questões jurídicas e normas de conduta (halachá) necessárias diante dos novos desafios (ausências do Templo e da estrutura política de Jerusalém, como também a adequação ao mundo gentio);

3. Desenvolver e investigar ensinamentos preocupados com o folclore, as lendas e a exegese teológica e ética do Tanach (hagadá), igualmente necessárias no ambiente pós-70.

Este profundo trabalho intelectual de adaptação, construção e mudança produziu os textos colossais da Mixná, Tosefta e os Talmudim, mesclando em suas reflexões elementos da halachá e da hagadá. Tal ação também evidenciou a necessidade de consolidar por escrito as tradições orais memorizadas, que acabaram por ganhar o status sagrado de uma Torah Oral (Torah she-be-al-peh), igualmente transmitida por Moisés (NEUSNER, 1994, p. 5-7). O primeiro grande fruto deste esforço foi a Mixná, um código escrito em hebraico pós-bíblico (ou mixnáico) fechado por volta do ano 200. A palavra hebraica MSHNH, centrada na raiz SHNH, inicialmente significava “repetir” (deuteroûn), trazendo posteriormente as noções de “ensinar ou aprender pela repetição e memorização” a Torah Oral (SCHÜRER, 1985 II, p. 104-105). No entendimento de Jacob Neusner, este grande empreendimento intelectual:

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Para uma interpretação da figura de Yohanan bem Zakkai dentro da teologia judaica, consultar: STEINSALTZ, 1989, p. 35-36. Para uma leitura proposta pela investigação histórica, ver: NEUSNER, 1975.

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[...] reagiu apoiando-se nos recursos posteriores à Escritura e sustentando a resistência da santidade da vida de “Israel, o povo”, uma santidade antes centrada no Templo. A santidade de Israel, então, transcendeu a destruição física da construção e a interrupção dos sacrifícios. “Israel, o povo” era sagrado, era o meio e o instrumento da santificação de Deus (NEUSNER, 2004b, p. 72).

Na era após a catástrofe, o desafio é reorganizar um mundo sem rumo e à deriva, reorientar-se agora que o sol desponta após a noite e a névoa. A Mishná é um documento de imaginação e fantasia, descrevendo como as coisas “são” a partir dos destroços e resquícios da realidade, mas, em maior escala, construindo um ser social a partir de raios de esperança. A Mishná conta-nos um pouco sobre como as coisas eram, mas conta-nos tudo sobre como um pequeno grupo de rabinos eruditos queria que as coisas fossem. O documento é ordenado, repetitivo e cauteloso tanto na linguagem quanto na mensagem. É mesquinho, trivial, óbvio, tedioso e rotineiro: tudo o que sua época não era. Com sua mensagem de feitos medíocres e modestas esperanças, a Mishná contrasta com o mundo a qual se dirige. Ela desafia um mundo de grandes distúrbios e exigências imodestas. Os herdeiros dos heróis construíram uma comunidade não heroica na era nova e banal. A mensagem da Mishná afirma que o desejo do indivíduo é relevante e importante, mas tal afirmação é feita a um mundo israelita que pode resolver seus assuntos sem grandeza e dirige-se a pessoas que de jeito nenhum desejam que as coisas permaneçam como estão. Na prática, portanto, a Mishná faz um julgamento favorável à imaginação e à vontade de redefinir a realidade, de recuperar um sistema e de restabelecer aquela ordem sobre a qual se pode erigir uma existência confiável (NEUSNER, 2004b, p. 75)

Curiosamente, neste “esforço de imaginação” construído pelos rabinos

mixnáicos, seções ou ordens inteiras do livro descreveram minuciosamente a condução

correta por parte dos sacerdotes dos sacrifícios oficializados no Templo. Aparentemente, como veremos em Flávio Josefo, os escritores da Mixná também preservavam esperanças na reedificação do Santuário, recuperando o Levítico. Dividido em seis “ordens” (SDRYM – séder, plural sédarim) com subdivisões internas (massechet – tratado), pelo menos quatro de suas seções fazem referências diretas ao Judaísmo orientado pelo Templo:

• Zera´im (sementes) – o primeiro séder. Esta ordem descreve as oferendas e deveres sacerdotais (Terumot), as oferendas em farinha entregues aos sacerdotes (Hallah) e os dízimos destinados aos levitas e sacerdotes de Jerusalém (Ma´asrot; Ma´aser sheni).

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