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1. ESTUDO DE CASOS

1.1. O caso CNPE 03/2013

1.1.4. Judicialização do tema CNPE 03/2013

A possibilidade de advento de período hidrológico desfavorável e a consequente necessidade de acionamento de usinas térmicas é fato previsível e assentido entre os agentes do SEB, mas não estava na previsão e na estrutura de negócio dos geradores e dos comercializadores, naquele momento, a alteração do mecanismo de custeio e de responsabilidade pelo ESS por segurança energética (custo adicional), imposto pela CNPE 03/2013.

Contra este ônus adicional e atípico, geradores e comercializadores, diretamente ou por intermédio de suas associações, questionaram a aplicabilidade da referida resolução, especialmente no âmbito da Audiência Pública AP 030/201375.

processado por meio do mecanismo auxiliar de cálculo da CCEE até que a metodologia para internalização de mecanismos de aversão a risco esteja incorporada nos programas computacionais para estudos energéticos e formação de preço, ou que as alterações nas Regras de Comercialização decorridas da presente aprovação sejam incorporadas no Sistema de Contabilização e Liquidação Financeira — SCL, certificadas pelo auditor do Processo de Contabilização e Liquidação e homologados pela ANEEL, o que vier antes. In Nota Técnica

061/2013–SEM/SRG/ANEEL, de 02.05.2013. Disponível em:

<http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2013/030/resultado/nt_061_2013_regras_cnpe.pdf> . Acesso em: 16 set. 2017.

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O Aviso da Audiência Pública, AP 030/2013, ANEEL, teve como objeto “obter subsídios e informações adicionais para o regulamento que aprova as Regras de Comercialização (REGRAS) de Energia Elétrica para atendimento ao disposto na Resolução CNPE n° 003/2013”. Disponível em:

<http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2013/030/documento/integra_aviso_interc%C3%A 2mbio_ap_030_2013.pdf>. Acesso em: 27 ago. 2017.

Embora a Agência, por intermédio da SEM – Superintendência de Estudo de Mercado, na Nota Técnica nº 061/2013–SEM/SRG/ANEEL, de 02.05.2013, tenha reconhecido, especialmente no que se refere à operacionalização e às negociações já realizadas, que a introdução do novo regramento pela CNPE 03/2013 afeta os agentes76, a mesma SEM manifestou-se no sentido de que “por se tratar de comando do CNPE, portanto fora de escopo de discricionariedade por parte da SEM, as contribuições foram destacadas nesta seção, mas não foram consideradas pela área técnica.”77

Assim, os agentes geradores e comercializadores, não encontrando espaço para a solução regulatória do tema, e não estando dispostos a suportar o peso financeiro decorrente da intervenção regulatória, submeteram a discussão à apreciação do Poder Judiciário, com vistas à obtenção da declaração de suspensão ou anulação dos efeitos da referida CNPE 03/2013.

Com efeito, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica (APINE), a Associação Brasileira de Geradoras de Energia Limpa (ABRAGEL),78a Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (ABRACEEL)79e a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEÓLICA)80 indicavam, a partir da CNPE 03/2013, violação aos princípios da segurança jurídica, do ato jurídico perfeito, da não-surpresa, da proteção da boa-fé, da confiança e da proibição de aplicação retroativa de nova interpretação81.

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No item 17 da Nota Técnica nº 061/2013–SEM/SRG/ANEEL, de 02.05.2013, há a indicação expressa que “Entende-se que a argumentação exposta pelos agentes é procedente, e tem coerência com o procedimento normalmente adotado pela ANEEL quando da introdução de novas regras que afetam os agentes setoriais, sendo importante registrar a concordância com o mérito das justificativas apresentadas, principalmente considerando que diversos conceitos necessários à operacionalização da Resolução CNPE 03/2013 estão sendo definidos no âmbito desta audiência. De fato, as definições da ANEEL aqui discutidas impactam os

agentes e as negociações já realizadas”. Disponível em:

<http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2013/030/resultado/nt_061_2013_regras_cnpe.pdf> . Acesso em: 27 ago. 2017.

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Item 18 da Nota Técnica nº 061/2013–SEM/SRG/ANEEL, de 02.05.2013. Disponível em:

<http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2013/030/resultado/nt_061_2013_regras_cnpe.pdf> .

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Ação ordinária com pedido de antecipação de tutela nº 27834-41.2013.4.01.3400. Autoras Apine e Abragel. Distribuída em 28.07.2015. 4ª. Vara federal. Desembargador Federal José Amilcar Machado.

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Ação ordinária 020000-84.2013.4.01.3400. Autora Abraceel. Distribuída em 10.02.2015. 22ª. Vara Federal. Desembargador Federal Maria do Carmo Cardoso.

80

Ação ordinária 0033415-37.2013.4.01.3400. Autora Abeeólica. Distribuída em 17.08.2016. 8ª. Vara federal. Desembargador Federal Marcos Augusto de Sousa.

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Também questionavam a competência do CNPE para disciplinar o tema de política tarifária; nulidade do rito procedimental de aprovação da resolução, e ofensa ao princípio da proporcionalidade82.

Outros argumentos estavam relacionados à violação do princípio da reserva legal, instituição de subsídio sem que tenha sido prevista a necessária compensação econômica- financeira aos agentes para os quais foram transferidos os ônus; violação dos princípios da proporcionalidade, da racionalidade e da segurança jurídica; além de imposição de desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados.83A imposição do rateio da CNPE 03/2013 estaria afetando diretamente a estrutura tarifária e provoca desequilíbrio dos contratos vigentes.84

Alegações relativas à contradição entre a tentativa do governo de reduzir a tarifa do consumidor e o período de elevação do preço da energia também foram apresentadas pelos geradores, conforme indica a petição inicial da ação ordinária com pedido de tutela antecipada da ABEEÓLICA:

O Poder Concedente anunciou seu objetivo, público e notório, de reduzir as tarifas de energia elétrica do consumidor final no patamar médio de 20% (especificamente prometido pela Exma. Sra. Presidente da República em cadeia nacional de rádio e televisão).

Esse objetivo político foi, paradoxalmente, promovido em um período de elevação drástica (e igualmente pública e notória) dos preços de energia em decorrência do esvaziamento dos reservatórios das usinas hidrelétricas e da necessidade dramática do uso de caríssima energia termelétrica para evitar um racionamento.

Para fazer frente a essa contradição de pretender a redução de tarifas em um contexto de elevação dos custos da energia decorrente de aquisição adicional de energia termelétrica e mais cara, o poder concedente produziu uma medida artificial e ilegítima par sonegar o aumento tarifário que deveria, jurídica e factualmente, decorrer dessa elevação de custos até então devidos “pelos agentes com medição de CONSUMO” (“proporcionalmente ao CONSUMO”) para “todos os agentes de mercado (“proporcionalmente à ENERGIA COMERCIALIZADA”), sem fazê-lo por lei e sem prever qualquer compensação econômica-financeira “simultânea” para os agentes aos quais custos foram transferidos. 85

82 Petição inicial da ação da Apine e Abragel. Processo nº 27834-41.2013.4.01.3400. 83 Petição inicial da ação da Abraget. Processo nº 30460-33.2013.4.01.3400.

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Nesta linha de argumentação, a obrigação do ESS aos geradores exigiria a revisão da respectiva tarifa, na forma do parágrafo 3º, do art. 9º, da Lei 8.987/95 que prevê: “§ 3º. Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.”

85 Processo no. 64613-24.2015.4.01. 3400. Autor: Associação Brasileira de Energia Eólica - Abeeólica. Réus:

Doutrinariamente os apontamentos também indicavam que a CNPE 03/2013 configurava ofensa a princípios da motivação, separação dos poderes, legalidade, segurança jurídica e proteção da boa-fé:

Diversos são os princípios afetados pela Resolução do CNPE, tais como: (i) princípio da motivação, pela ausência de fundamentação do ato na exposição de motivos; (ii) princípio da separação de poderes, em decorrência do excesso do poder regulamentar do Poder Executivo ao instituir encargo sem previsão/autorização legislativa; (iii) princípio da legalidade, em decorrência da ausência de legitimidade do CNPE para instituir encargo; (iv) princípio da segurança jurídica, em decorrência dos efeitos retroativos que não respeitaram o ato jurídico perfeito e o direito adquirido; (v) princípio da proteção à boa-fé e confiança que deve nortear as relações contratuais: de um lado o Poder Concedente, e de outro, concessionários e autorizados. Por outro lado, favoravelmente às medidas implantadas pela Resolução do CNPE, há o (vi) princípio da modicidade tarifária.86

A apreciação dos argumentos e aspectos jurídicos apresentados ao Poder Judiciário resultou decisões judiciais que, em regra, suspendiam a aplicabilidade da CNPE 03/2013 e a exigibilidade do ESS aos membros das Associações autoras das ações judiciais, inclusive por identificar violação ao princípio da reserva legal e ao princípio da razoabilidade.87

A Tabela 1 – CNPE 03 - ações judiciais –associações indica o entendimento preponderante do Judiciário ao dar provimento ao pedido das Associações, para afastar a aplicabilidade dos artigos 2º e 3º da resolução CNPE 03/2013 ou declarar a inexigibilidade do Encargo de Serviços do Sistema por razão de segurança energética (ESS).

Assim, ao analisar e confrontar os argumentos e fundamentos apresentados pelos geradores e comercializadores, que buscavam a preservação das condições contratuais e econômicas que entenderam violadas com a escolha regulatória da CNPE 03/2013, o Judiciário proferiu decisões liminares que, em sua maioria, isentaram referidos agentes do rateio do ESS.

Ocorre que essas decisões, proferidas no âmbito de discussões bilaterais, terminaram por impactar de maneira relevante toda a lógica sistêmica de contabilização e

86 GIRARDI, Claudio; TISI, Yuri Schimitke A. Belchior. Inconstitucionalidade da Resolução n. 3/2013 do

CNPE e seus efeitos jurídico-regulatório. In: Temas Relevantes no Direito de Energia Elétrica. Coordenado por Fábio Amorim da Rocha. Tomo II. Rio de Janeiro: Synergia Editora, 2013. p. 166.

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Na decisão proferida na ação ordinária proposta pela Abraget, o juiz manifesta-se como “completamente equivocada a edição da Resolução CNPE 03/2013, pois viola o princípio da reserva legal; afronta o princípio da razoabilidade, pois onera quem proporciona o benefício e não quem dele se aproveita; e institui um encargo sem a necessária compensação financeira, infringindo o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão celebrados.” Processo nº 30460-33.2013.4.01.3400. Ação Ordinária proposta pela ABRAGET contra a União Federal, Juiz Federal José Márcio da Silveira e Silva, em auxílio da 7ª. Vara

Federal/SJ DF, sentença de 29.01.2014. Disponível em:

liquidação realizada pela CCEE, que não considera inadimplência, ou a pressupõe muito baixa.88

Disso resulta que em outubro de 2016 havia 133 liminares vigentes, fixando a isenção do pagamento do ESS, que, em conjunto com outras liminares, somavam 4,2 bilhões pendentes de contabilização.89

Após continuadas decisões judiciais no sentido de retirar o efeito e a aplicação da mencionada CNPE 03/2013, por entendê-la inadequada e contrária ao regramento vigente, e por identificar incompetência da CNPE para emitir o pretendido regramento90, a Administração Federal editou a Lei 13.360, de 17.11.2016, que expressamente restringiu o rateio do ESS aos consumidores. Segundo a nova redação do parágrafo 10, inciso I, do art. 1º. da Lei nº 10.848/2004, introduzido pela referida Lei 13.360/2016, a geração, independentemente da ordem de mérito, por restrições de transmissão ou por razões de segurança energética, será alocada nos consumidores. 91

As reiteradas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, portanto, neste caso, conduziram à alteração do regramento previsto na CNPE 03/2013, retomando ao conceito de que são os consumidores os responsáveis pelo custeio do ESS. Uma vez reconhecida a inadequação da aplicação da resolução pelo Judiciário, e dado o impacto direto no MRE e CCEE, provocado pelas muitas e continuadas decisões judiciais isentando os agentes da aplicação da Resolução CNPE 03/2013, reguladores e o Governo foram incentivados a agir

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A lógica da liquidação realizada no âmbito da CCEE é a da liquidação das diferenças entre volumes de energia contratados e a energia efetivamente gerada. Ao crédito obtido na apuração de diferenças será gerado necessariamente um débito corresponde, de modo que se estabelece o chamado conceito “soma zero”.

89 A apresentação realizada pelo representante da CCEE, no Simpósio Jurídico da Associação Brasileira das

Concessionárias de Energia Elétrica – ABCE, em outubro de 2016. Disponível em: <http://www.abceonline.com.br/XXIIsimposiojuridico/palestras/ApresentacaoABCEPedroDante.pdf>. Acesso em: 25 maio 2017.

90A título de exemplo, o apreciar a Apelação/reexame necessário n. 0020000-84.2013.4.01.3400/DF, da

Abraceel, a 8ª.Turma do TRF da 1ª Região, entendeu que a CNPE não tem competência para matéria: “No que diz respeito às proposições do Conselho Nacional de Política Energética - CNPE, relacionadas ao suprimento de insumos energéticos, o inciso II do art. 2º da Lei 9.478/1997 exige que as medidas específicas propostas sejam submetidas ao Congresso Nacional quando implicarem a criação de subsídios. Tal exigência, contudo, não foi atendida para a criação do Encargo de Serviço do Sistema – ESS.3. Os Encargos de Serviço do Sistema – ESS, por constituírem espécie de preço público, visam a custear a geração extraordinária de energia elétrica e a garantir a estabilidade e a segurança do Sistema Interligado Nacional – SIN.4. Nos termos do art. 175, III, da Constituição Federal, é possível a fixação, por lei, de sobretarifa com natureza de tarifa, sujeita à política tarifária, a fim de criar metas de consumo e de um regime especial de tarifação para gestão da crise de energia elétrica e dar continuidade da prestação do serviço, o que não ocorreu no presente caso, com a edição da Resolução 3/2013 pelo CNPE”.

91 Art. 10 da Lei nº 13.360, de 17.11.2016, que altera e atribui nova redação ao parágrafo 10, inciso I, do art.

com vistas a ajustar o comando e viabilizar a liquidação e contabilização da CCEE, configurando uma espécie de controle judicial positivo indireto.92

Contudo, apesar de o tema ter sido objeto de lei específica, em julho de 2017, questionada a CCEE acerca de decisões judiciais que impactaram a última liquidação93, foi apresentada lista com 12 (doze) ações, cujas decisões ainda vigem e continuam impactando a liquidação. Tabela 2 - CNPE 03/2013 –CCEE.

Deste modo, pela análise realizada, é possível asseverar que a CNPE 03/2013 deixou de observar a dinâmica e os critérios técnicos vigentes e previstos para o rateio do ESS, subvertendo a estrutura regulatória já consolidada, caracterizando desalinhamento entre a escolha regulatória e o próprio marco regulatório, ao tempo em que impôs impacto financeiro não previsto a agentes de geração e comercialização.

A busca pela interferência do Poder Judiciário, no caso, embora sua atuação tenha causado impacto na atuação da CCEE, foi o mecanismo e a medida que os agentes geradores e comercializares se valeram para perseguir a desoneração do ônus financeiro adicional que lhes foi imposto pela alteração da metodologia de rateio fixada pela CNPE 03/2013, contrária à lógica econômica que fundamenta a dinâmica regulatória corrente.

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