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3. O PROJETO DE LEI 8045/2010 (NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL)

3.1 Juiz das garantias

O juiz das garantias será o juiz responsável por conhecer da fase pré-processual, ou seja, da investigação criminal preliminar, atuando com exclusividade nesta. Certamente este é um dos temas mais polêmicos da proposta, causador de inúmeros debates, a principal

discussão gira em torno da imparcialidade do juiz do processo, que no atual modelo poderia ser afetada diante de seu envolvimento, ainda que indireto, na fase da ICP.

O pilar mestre sobre o qual repousa a figura do juiz das garantias é justamente este, a imparcialidade. Defendem os que apoiam sua criação que o atual modelo não está em consonância com o sistema processual adotado por nosso código – o acusatório. Por outro lado, os que criticam a criação afirmam que a imparcialidade do juiz em nosso atual modelo em nada resta prejudicada pela participação do juiz durante a fase pré-processual.

O modelo acusatório de processo penal possui origem que remonta ao Direito grego, caracteriza-se pela nítida divisão das funções de acusar, defender e julgar, cabendo estas a atores distintos. Foi o modelo por nós adotado quando da constituição de 1988, atribuindo-se privativamente ao MP a titularidade da ação penal. Os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo, e a apreciação das provas pelo juiz segue a regra do livre convencimento motivado. “Nota-se que o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão de prova, não sendo mais o juiz, por excelência, o seu gestor” (Távora e Alencar, 2017, p. 55).

O CPP atual (de 1941) traz características que o relacionam intimamente com o modelo inquisitivo de processo penal, em que pese a separação entre acusação e julgamento, já existente naquela época, pois ao juiz é dado poderes instrutórios não condizentes com o modelo acusatório de processo, como, por exemplo, a previsão, ainda em vigor, do artigo 156, I: ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida (BRASIL, 1941). Com base nesta crítica entendem alguns autores que o nosso modelo de processo penal é o misto, com traços característicos dos dois modelos, e não apenas o acusatório.

É pela existência destes resquícios de inquisitorialidade, não condizentes, segundo alguns, com o modelo acusatório de processo penal, que a figura do juiz das garantias ganhou notoriedade e espaço nas discussões do novo código, surgindo como uma real necessidade para a efetivação de direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Maior. Analisemos, pois, a seguinte pergunta: a participação do juiz na fase da ICP é capaz de torná-lo parcial frente a ação penal dela decorrente?

O estudo sobre a imparcialidade é por demais complexo não sendo pretensão nossa, nem de longe, esgotá-lo nestas poucas linhas, sua análise antes de jurídica é filosófica.

Na visão filosófica da corrente racionalista a imparcialidade, em tese, seria possível, uma vez que a razão como a fonte de todo o conhecimento, obstaria o julgador de influências exógenas em sua decisão, pautando-a, exclusivamente, pela razão. Para os empiristas, no entanto, a imparcialidade é uma abstração que jamais será realizada, tendo em vista que todo o conhecimento é fruto da experiência vivida anteriormente, e esta experiência, em tese, seria capaz de afetar a imparcialidade do julgador.

A imparcialidade judicial é imaginada no plano jurídico como a equidistância do juiz em relação as partes, as quais cabem agir positivamente para trazer ao processo os elementos necessários a comprovar suas alegações, sejam de acusação ou defesa. Em outras palavras, não se deve atribuir ao juiz a gestão da prova, sua missão é avaliar a legalidade destas, jamais atuar para produzi-las, daí porque defendemos a inconstitucionalidade do artigo 156, I do CPP.

Admitia-se e ainda hoje, se admite, em nosso ordenamento jurídico, sob o argumento de que o juiz deve zelar pela busca da verdade real, a iniciativa probatória deste ente estatal, todavia a verdade real é uma abstração tão longe de ser efetivada quanto a imparcialidade nos moldes da filosofia racionalista, a este respeito esclarece Renato Brasileiro:

No âmbito processual penal, hodiemamente, admite-se que é impossível que se atinja uma verdade absoluta. A prova produzida em juízo, por mais robusta e contundente que seja, é incapaz de dar ao magistrado um juízo de certeza absoluta. O que vai haver é uma aproximação, maior ou menor, da certeza dos fatos. Há de se buscar, por conseguinte, a maior exatidão possível na reconstituição do fato controverso, mas jamais com a pretensão de que se possa atingir uma verdade real, mas sim uma aproximação da realidade, que tenda a refletir ao máximo a verdade. Enfim, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, porém inatingível. (Brasileiro, 2017, p. 67 e 68)

O STF já teve oportunidade de se manifestar acerca da impossibilidade do juiz agir como investigador, atuando positivamente, inclusive pessoalmente, na colheita de provas relacionadas a crimes cometidos por organizações criminosas, previsão contida no art. 3º da já revogada Lei 9.034/1995, julgado inconstitucional pelo STF quando do julgamento da ADI 1570/DF em 2004, valendo a pena transcrever parte do voto do Min. Maurício Corrêa, relator: O dispositivo em questão parece ter criado a figura do juiz de instrução, que nunca existiu na legislação brasileira, tendo-se notícia de que em alguns países da Europa este modelo obsoleto tende a extinguir-se. Não se trata, como sustentam as informações do Ministério da Justiça submetidas ao Advogado-Geral da União (fl.104), de simples participação do juiz na coleta da prova, tal como ocorre na inspeção judicial (CPC, artigos 440 e 443). Nessa última hipótese, as partes têm o

direito de assistir a inspeção, prestando esclarecimentos que reputem de interesse para a causa (CPC, artigo 442, parágrafo único). Já no caso em exame, as partes têm acesso somente ao auto de diligência, já formado sem sua interferência. (STF, ADI 1570 DF, 2004)

No mesmo julgado, ao tratar sobre a imparcialidade do julgamento, o Ministro afirma ser muito difícil evitar a relação de causa e efeito existente entre as provas coligidas contra suposto autor de um crime e a decisão a ser proferida pelo juiz. “Ninguém pode negar que o Magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique psicologicamente envolvido com a causa, contaminando sua imparcialidade” (STF, ADI 1570 DF, 2004).

O juiz de garantias tem o propósito de afastar do processo penal quaisquer dúvidas acerca da imparcialidade do órgão julgador, tendo em vista que estará garantida a não participação do juiz das garantias no processo penal, estando ele restrito a fase pré-processual. “Sua função é garantir a legalidade dos atos praticados e/ou requeridos pela autoridade investigante ou pelo Ministério Público no curso daquela primeira fase da persecução penal” (Andrade, 2011, p.3).

O nosso juiz de garantias segundo Andrade (2011) teria surgido como uma tentativa de se copiar o modelo italiano do giudice per le indagini preliminari, figura equivalente existente do Direito Processual Penal de lá. Um fator favorável ao surgimento desta figura no mundo jurídico foi o posicionamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante, TEDH), o qual, ainda na década de oitenta do século passado, posicionou-se pela perda indeclinável da imparcialidade dos juízes que haviam atuado na fase de investigação, estando, assim, impedidos de participar da fase de julgamento (Andrade, 2011, p.3 e 4).

A atuação do juiz das garantias, nos termos do projeto de lei 8045/2010, consistirá em:

I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5o da Constituição da república; II – receber o auto da prisão em flagrante, para  efeito do disposto no art. 555; III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença; IV – ser informado da abertura de qualquer inquérito policial; V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar; VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las; VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa; VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo; IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fun-damento razoável para sua instauração ou prosseguimento; X – requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação; XI – decidir sobre os pedidos de: a) interceptação telefônica ou do fluxo de 

comunicações em sistemas de informática e telemática; b) quebra dos sigilos  fiscal, bancário e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado. XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; XIII – determinar a realização de exame médico de sanidade mental, nos termos do art. 452, §1º; XVII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. (art. 14 do PL 8045/2010)

Uma novidade que pode ser extraída desde logo destes dispositivos diz respeito a desnecessidade de autorização judicial para a prorrogação do inquérito policial em caso de investigado solto. Tal entendimento pode ser extraído através da interpretação a contrario

sensu do inciso VIII do citado artigo. Tal mudança implica na legalização do que hoje ainda é

bastante polêmico – a tramitação direta do inquérito entre polícia e MP, assunto brevemente abordado no item 2.4, mas que será retomado adiante.

Outro ponto de mudança diz respeito as atribuições que hoje são exercidas pelas Varas de Audiências de Custódia, que passarão a ser do juiz das garantias, atribuições estas constantes dos incisos I e II do citado artigo. Merece reflexão a norma do inciso IV que traz a obrigatoriedade de comunicação da abertura de qualquer inquérito policial, proposição que, com o devido respeito, deveria ser suprimida, por uma razão simples, a investigação criminal não se destina ao juiz, mas ao MP, titular da ação penal.

Razão igual assiste a proposição do inciso X, onde se atribui ao juiz das garantias a possibilidade de requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação, norma que vai de encontro a própria ideia de modelo acusatório de processo adotada pela proposta. No inciso IX há até a possibilidade de trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento, não seria isto atribuição do titular da ação penal? Neste viés vale a pena a transcrição dos comentários feitos pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG):

Isso porque os incisos elencados violam as atribuições constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público e o sistema acusatório adotado pela legislação pátria, além de confundir as funções do juiz de garantias com as do juiz de instrução, o que destoa com a interpretação sistêmica do Projeto. Com efeito, consoante o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, o Ministério Público é o titular da ação penal e destinatário da prova produzida na fase inquisitorial, a quem cabe exercer a “opinio delicti”, ajuizando a ação penal ou promovendo seu arquivamento, ou, ainda, requisitando, se necessário, a realização de diligências complementares para elucidação do fato.

[…]

Contrariam, também, o sistema acusatório brasileiro, fundado na imparcialidade do julgador, na medida em que violam o princípio da inércia, segundo o qual o juiz só age mediante provocação da parte, sob pena de comprometimento de sua imparcialidade (artigos 5º, incisos LIII, LV, 92 e 126 da Constituição Federal), garantia de um processo justo.

Ademais, os dispositivos referidos, ao confundirem as funções do juiz de garantias com as do juiz de instrução, fragilizam a sua função essencial, que é a de garantidor dos direitos fundamentais do sujeito passivo, devendo intervir para salvaguardar os direitos constitucionais do investigado. (CNPG, 2011, p. 21 e 22)

Uma outra questão que foge a análise normativa diz respeito a viabilidade de implementação do projeto, tendo em vista o já conhecido deficit de juízes no Poder Judiciário. Levantamento feito pelo CNJ em 2010, atestou que cerca de 40% das Comarcas das Justiças Estaduais estão compostas somente por um magistrado. A regra de suspeição imposta ao juiz das garantias exigiria um mínimo de dois juízes por Comarca, o que provocaria segundo Andrade (2011) um choque orçamentário sem precedentes no Poder Judiciário. Em parecer elaborado junto à Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (AMPRGS), Andrade vai mais além:

Logo, a regra de impedimento, proposta ao juiz das garantias, irá provocar um efeito contrário à intenção de otimização e agilização da persecução penal, pois outro juiz, de uma comarca distante, deverá ser provocado para atuar em lugar do juiz que se dará por impedido. O principal ente atingido não é o Poder Judiciário, senão a própria polícia judiciária, tão carente de recursos, e a quem o projeto não se ocupou, em momento algum, de melhorar suas conhecidas e precárias condições de trabalho, com falta de viaturas e até mesmo combustível para procurar o juiz competente para a análise de seus pedidos de ordem cautelar. (Parecer 01/2011, AMPRGS)

Como observa-se, as discussões acerca da implantação do juiz das garantias é bem mais complexa do que se imagina, estando longe de se esgotar apenas nos aspectos jurídicos. O fundamento de sua implantação, a ausência de imparcialidade dos julgadores em nosso atual modelo de processo, não é uma verdade inconteste, pelo contrário, temos um modelo condizente com um Estado Democrático de Direito, com instrumentos eficazes para se combater eventuais desvios de conduta, como a arguição de impedimentos e suspeições, bem como o direito ao duplo grau de jurisdição.

Há de se observar sobretudo o princípio da proporcionalidade, em suas três facetas – necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito –, para se buscar a melhor alternativa para o nosso processo penal, instituir um juiz das garantias ou corrigir falhas pontuais em nosso atual modelo? Implementa-se o modelo nos grandes centros, fornecendo uma justiça de qualidade para alguns, e ignora-se a realidade das localidades onde se tem apenas um juiz, fornecendo, assim, uma justiça de segunda qualidade para outros? Corrobora com isso a previsão contida no inciso I, do artigo 748 do projeto, a qual deixa claro que o juiz das garantias não será implementado de uma só vez em todas as Comarcas do país, deixando a cargo de uma outra futura e incerta lei (lei de organização judiciária) a criação do cargo ou formas de substituição.

A relevância do tema é tamanha que tramita no Senado Federal um projeto de lei de autoria do Senador Cid Gomes (PL 4981/2019) cujo único objetivo é instituir em nosso Processo Penal atual a figura do juiz das garantias, o que será feito, caso aprovado, nos mesmos moldes do PL 8045/2019, entenda-se literalmente.

Por fim, tem-se que a competência do juiz das garantias abrangerá todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, cessando com a propositura da ação penal. Suas decisões não vinculam o juiz do processo, que a qualquer tempo, no decorrer daquele, poderá revê-las, inclusive no que se refere a eventuais medidas cautelares em curso.

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