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Juramento de Hipócrates – conflito entre autonomia do médico e autonomia do paciente nos casos de eutanásia

2 ALGUNS DESDOBRAMENTOS PRÁTICOS: A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE, A BIOÉTICA E O DIREITO

2.4 Juramento de Hipócrates – conflito entre autonomia do médico e autonomia do paciente nos casos de eutanásia

Por fim, elegeu-se falar do Juramento de Hipócrates, mormente da passagem que proíbe ao médico conceder a alguém remédio mortal. Por mais que já se tenha citado o tema, acredita-se na necessidade de aprofundamento do mesmo, uma vez que a ética médica não pode ser ignorada e ficar à margem da autonomia dos pacientes.

Consta no juramento que:

[…] aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva […].

Percebe-se, naquele que é o principal juramento da profissão médica, a incompatibilidade do ato de dar a alguém remédio mortal com a ética profissional. Segundo essa visão, a eutanásia é um mal inequívoco, que vem sendo rejeitado pelos médicos desde o século V a.C., quando começaram a jurá-lo.364

Nos EUA, a maioria dos médicos, de modo favorável ao juramento, consideravam a eutanásia uma prática desconexa com a ética de sua profissão.365 Porém, esse ethos, ou essa deontologia médica passou a ser revista, principalmente após a publicação de uma carta anônima por um médico residente, intitulada It’s over Debbie,366 em 1988, quando auxiliou ativamente uma paciente a morrer.

364 SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 185. 365 American Medical Association (AMA).

366 IT’S OVER, DEBBIE. Disponível em: <http://www.mclean.k12.ky.us/docs/Its%20Over%20Debbie.pdf>.

De qualquer sorte, a própria formação médica, como defende Gawande, promove o entendimento de que a morte é um erro, uma falha, e que qualquer auxílio ao suicídio, independentemente da motivação, é um crime. Nesse sentido, salienta Brocks que

[…] alguns autores dão especial importância moral às intenções dos médicos quando atuam. Eles argumentam que o assassinato intencional de seres humanos inocentes está moralmente errado, enquanto as ações das quais a morte de uma pessoa está prevista, embora não pretendidas, às vezes podem ser moralmente permitidas.367

Cundiff, contrário à eutanásia, entende que, além do fato de a vida ser um bem absoluto, a ética médica, a partir do Juramento de Hipócrates, também proíbe essa conduta:

A ajuda na morte seria uma violação do juramento de Hipócrates, que obriga o médico a tentar ajudar o seu paciente e a não lhe provocar danos. Embora este juramento tenha fundamentalmente interesse histórico, continua a ser outro fator dissuasor presente no espírito do médico.368

Por mais que o presente trabalho entenda a possibilidade jurídica, desde que com pressupostos bem definidos, das mais variadas formas de eutanásia, não há qualquer pretensão de se excluir do debate a ética médica, bem como a autonomia individual do médico.

No mesmo sentido em que se defende a autonomia do paciente para conduzir suas decisões vitais, deve a autonomia do médico ser igualmente respeitada em casos de pacientes que solicitam o suicídio, principalmente pelo fato de que a própria ética médica diverge quanto à moralidade do ato médico em auxiliar um paciente a cometer suicídio.

Evidente que o médico, como qualquer outro profissional, terá obrigações específicas, sendo algumas de cunho principiológico, como: tratar todos os pacientes de maneira igualitária, sem qualquer forma de distinção; e outras de cunho normativo como: o dever de socorrer alguém que esteja precisando de auxílio médico, mesmo que fora de seu ambiente de trabalho. Concordou-se ao longo do trabalho que a ortotanásia, vinculada à ideia de cuidados paliativos, encontra respaldo na deontologia médica, uma vez que não há qualquer ação direta cujo resultado seja a morte. Durante os cuidados paliativos, o médico estará em pleno acordo com sua deontologia, agindo conforme a vontade do paciente e retirando-lhe o máximo possível

367 “[…] some commentators give special moral importance to physicians’ intentions when they act. They argue

that the intentional killing of innocent human beings is morally wrong, while actions from which a person’s death is foreseen though not intended may sometimes be morally permissible.” (BROCKS, Dan W. Life and

death: philosophical essays in biomedical ethics. New York: Cambridge University Press, 1993, p. 83)

de dor e sofrimento, proporcionando-lhe uma morte tranquila.

A tensão, mais uma vez, surge nos casos de eutanásia ativa e passiva. Iniciar-se-á a análise proposta a partir da eutanásia passiva.

Neste modelo de eutanásia, não há uma conduta direta para o resultado morte. A ausência de tratamento é que resultará no fim da vida do paciente.

Como exemplo, utilizou-se os casos de pacientes Testemunhas de Jeová. Porém, se a autonomia do paciente vinculada à sua religião lhe dá o direito à recusa do tratamento, poderá o médico, em razão de sua autonomia e da ética médica, se recusar, igualmente, a realizar uma cirurgia eletiva, sabendo que, em caso de necessidade, não poderá realizar transfusão de sangue, podendo esse não-procedimento levar o paciente a óbito, quedando o médico obrigatoriamente numa atitude passiva frente à situação?

Esse foi o caso do julgamento na Apelação Cível 70071994727, no Tribunal de Justiça no Rio Grande do Sul, onde se discutiu o conflito entre liberdade profissional do médico e a liberdade religiosa do paciente, ambos com fulcro na autonomia e dignidade.

Segundo o relator da recente decisão, que versava exatamente sobre esse conflito:

Conforme o art. 5º, inciso VI, da CF, o aspecto individual da liberdade religiosa, um direito fundamental, assegura àquele que professa a sua fé, escolhas e medidas que guardem e respeitem sua crença, inclusive com relação a atos ligados ao seu bem-estar e até mesmo à sua condição de saúde, circunstâncias estas que agasalham a decisão de recusa de tratamento por hemotransfusão.369

Ao médico, assegura-se o direito/dever de exercer a profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente, bem como ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional. O médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao profissional que lhe suceder. Exegese do inciso VII, Capítulo I e do §1º do art. 36 do Código de Ética da Medicina.370

369 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 70071994727. Relator: Des. Tulio de Oliveira

Martins. Julgado em: 09 maio 2017. Disponível em:

<http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a &versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70071994727&num_proce sso=70071994727&codEmenta=7256902&temIntTeor=true>. Acesso em: 4 out. 2017.

370 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 70071994727. Relator: Des. Tulio de Oliveira

Martins. Julgado em: 09 maio 2017. Disponível em:

<http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a &versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70071994727&num_proce sso=70071994727&codEmenta=7256902&temIntTeor=true>. Acesso em: 4 out. 2017.

Diante do conflito entre as liberdades de consciência dos envolvidos, tem-se que a recusa do médico não evidencia ato ilícito a ensejar reparação. Diálogo entre ambas as condutas e manifestações filosóficas.371

A Santa Casa referiu que “[…] em cirurgias eletivas, como a dos autos, se é dado ao paciente recusar-se a determinado tipo de tratamento, com hemocomponentes, ao médico também é dado o direito de recusa à realização do procedimento cirúrgico.”372

A sentença prolatada levou em consideração, principalmente, a norma elencada no inciso VII do Capítulo I do Código de Ética Médica:

O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

Acredita-se que da mesma forma que um médico pode recusar a auxiliar um tratamento em razão de negativa de paciente quanto a uma possível transfusão de sangue, ele também poderá negar o auxílio direto ao suicídio, vide ressalva da lei de eutanásia belga e holandesa, que preveem a possibilidade de recusa do médico em auxiliar o paciente cometer suicídio, seja de modo direto ou indireto.

Levando em consideração os direitos fundamentais que logicamente também protegem os direitos dos médicos e todos envolvidos na equipe hospitalar, Putz e Steldinger defendem que “[…] a liberdade de consciência dos responsáveis pelos cuidados, não é, portanto, afetada […]”,373[tradução nossa] ou seja, deve ser igualmente respeitada, desde que não seja caso iminente de morte e que o paciente consiga encontrar outro profissional apto a realizar o tratamento.

Dessarte, ressalta-se que, por mais que o presente trabalho compreenda existir um direito à morte, não há qualquer tentativa argumentativa de se estabelecer uma relação

371 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 70071994727. Relator: Des. Tulio de Oliveira

Martins. Julgado em: 09 maio 2017. Disponível em:

<http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a &versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70071994727&num_proce sso=70071994727&codEmenta=7256902&temIntTeor=true>. Acesso em: 4 out. 2017.

372 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 70071994727. Relator: Des. Tulio de Oliveira

Martins. Julgado em: 09 maio 2017. Disponível em:

<http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a &versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70071994727&num_proce sso=70071994727&codEmenta=7256902&temIntTeor=true>. Acesso em: 4 out. 2017.

373 „Der Gewissenfreiheit der Pfleger ist also nicht berührt.“ (PUTZ, Wolfgang; STELDINGER, Beate.

obrigacional entre o direito de morrer e o dever do médico de auxiliar.

O direito à morte não implica, de forma alguma, uma obrigação médica. Em um contexto, no qual a autodeterminação individual desempenha um grande papel, há de se levar em consideração os valores subjetivos do médico, bem como as condutas éticas de sua profissão, de modo que, ao negar o auxílio, ele não estará a violar seu dever enquanto profissional.

Entende-se que o juramento de Hipócrates pode ser quebrado por compaixão, por razões humanitárias,374 de modo a encerrar um sofrimento ou evitar a obstinação irrazoável e,

acima de tudo, permitir que o paciente tenha uma morte digna.

374 Segundo o autor: para los defensores del suicidio asistido, la justicia se limita a “blanquear” (legalizar), una

práctica que mucho profesionales llevan a cabo silenciosamente y llenos de temor. Sostienes que el juramento hipocrático de no matar, base de la ética médica, puede romperse por compasión, por razones humanitarias, para terminar el sufrimiento, para evitar la sobretensión compulsiva y permitir que el enfermo tenga una muerte digna. (KRAUT, Jorge Alfredo. Los derechos de los pacientes. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 122).