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O desenvolvimento de uma análise sobre o aspecto social do ressentimento na Genealogia da Moral adquire tamanha envergadura, que consente a Nietzsche assinalar e distinguir fenômenos que estejam marcados ou não pelo ressentimento. No caso do direito, por exemplo, há registros de determinadas teorias, como a de Eugen Dühring que fundamenta sua concepção de justiça134 a partir do desejo de vingança, do ressentimento. Uma análise sucinta, porém imanente do § 11 da segunda dissertação dessa obra, reveste-se de um caráter prático para esta afirmação.

Nele, Nietzsche acusa Dühring de fundar a sua concepção de justiça na necessidade universal da reação. Para o filósofo e economista político alemão,135 o sofrimento de uma agressão correlaciona-se a uma reação automaticamente necessária. O direito, portanto, seria restabelecido pelo sentimento de vingança, pelo ressentimento.

133 GM I, 39.

134 A justiça é, em sua realidade, um tema paradigmático dentro da genealogia. De fato, é em contraposição basicamente aos genealogistas ingleses, a Schopenhauer, aos contratualistas e a Dühring que o olhar nietzscheano se volta. Porém, é somente o foco sobre a concepção de justiça de Dühring, que nos fornecerá os pilares para compreensão da justiça no pensamento de Nietzsche neste momento.

Nietzsche rejeita a necessidade da reação, pois para ele o ressentimento não é uma mera reação, nem tem origem fundamentalmente a partir de uma ofensa. Assim, como ele acusa a ciência em geral, e em particular, a história da moral de explicar toda a conduta humana a partir dos organismos reativos, negando com isso a primazia das forças ativas, ele denunciará também o “direito” de perseguir seus objetivos através desse sentimento. “Apenas isto a dizer contra essa tendência em geral; mas quanto à afirmação específica de Dühring, de que a nascente da justiça se acha no terreno do sentimento reativo, é preciso, em prol da verdade, contrapor-lhe a firmação inversa: o último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo”!136 Nos homens fortes e ativos, se o ressentimento aparece, se é que ele aparece, é de forma temporária.137 Para Nietzsche não é a reação que é necessária, mas a ação. Isso fica bem claro no homem forte quando ele age, quando ele expande e descarrega sua força.

Ao colocar a origem da justiça no ressentimento, diz o filósofo, Dühring “tenta sacralizar a vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido”.138 Como se a justiça decorresse do desenvolvimento de um sentimento reativo, próprio daquele que foi prejudicado e que espera por uma compensação.

Nietzsche observa que, nesse caso, o ressentimento não deve ser tomado como uma descrição do homem que não reage, e que motiva o desejo de vingança, mas como a própria atividade desse desejo de vingança gerada pela vontade de poder. Atuante, essa vontade procura sobrepujar e estabelecer-se sobre as outras por meio da astúcia de se auto-intitular a própria justiça. O mesmo que ocorre com o cristianismo que, enquanto uma moral radicada no ressentimento, termina por se apresentar como a única e verdadeira moral.

Para Nietzsche, o que interessa é deixar claro que o último espírito alcançado pela idéia de justiça é o que corresponde ao provocado pelo desregramento do sentimento reativo, haja vista que ser justo é uma atitude caracteristicamente positiva, pois quando o homem do tipo forte julga, ele julga com imparcialidade.

“Quando realmente acontece de o homem justo ser justo até mesmo com os que o prejudicam (e não apenas frio, comedido, distante, diferente: ser

136 GM II, 63.

137 “Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação

imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, nos inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos.” GM I, 31.

justo é sempre uma atitude positiva), quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer sob o assalto da injúria pessoal, da derrisão e da calúnia, isto é sinal de perfeição e suprema mestria.”139

Logo, para Nietzsche, a justiça não pode ter sua origem atrelada a sentimentos reativos como o ressentimento. Ela é, antes de tudo, produzida pelo o homem forte, que a idealiza para determinar as regras para o relacionamento daqueles que são iguais a ele e para estabelecer um modelo de conduta para o fraco.140 Para aquele que não consegue sustentar sua palavra e cumprir suas promessas. Assim como, para reprimir o pathos reativo do fraco que se manifesta, acima de tudo, pelo seu desejo de vingança.

Historicamente considerado, o direito representa – seja dito para o desgosto do já mencionado agitador (o qual faz ele mesmo esta confissão: ‘ a doutrina da vingança atravessa, como um fio vermelho de justiça, todos os meus trabalhos e maus esforços’) – justamente a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo e impor um acordo. Em toda parte onde se exerce e se mantém a justiça, vemos um poder mais forte que busca meios de pôr fim, entre os mais fracos a eles subordinados (grupos ou indivíduos), ao insensato influxo do ressentimento, seja retirando das mãos da vingança o objeto do ressentimento, seja colocando em lugar da vingança a luta contra os inimigos da paz e da ordem, seja imaginando, sugerindo ou mesmo forçando compromissos, seja elevando certos equivalentes de prejuízos à categoria de norma, a qual de uma vez por todas passa a ser dirigido o ressentimento.141

A instituição do direito, ao contrário do que Dühring pensa, não diz respeito à espécie do homem reativo, mas a dos ativos, dos fortes, dos espontâneos e agressivos. O direito representa o combate contra os sentimentos reativos, fazendo com que os fortes encontrem meios de por fim à força do ressentimento a eles direcionado pelos mais fracos. Nesta medida, a justiça é mantida pela lei do mais forte. Da autoridade que vai estabelecer, determinar, instituir a lei. A lei instituída será a responsável pela consideração do que é justo ou impróprio. O justo e o injusto, serão determinados,

139 GM II, 62.

140 “Justiça é boa vontade, entre homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de

‘entender-se‘ mediante um compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si”. Idem, 60.

portanto, a partir da imposição da lei – pelos mais fortes e poderosos – e não a partir dos atos arbitrários e agressivos daqueles que se dizem ofendidos.

Mas o decisivo do que a autoridade faz e impõe contra a vigência do sentimento de reação e rancor – o que faz sempre, tão logo se sente forte o bastante – é a instituição da lei, a declaração imperativa sobre o que aos seus olhos é permitido, justo; e proibido, injusto: após a instituição da lei, ao tratar abusos e atos arbitrários de indivíduos ou grupos inteiros como ofensas à lei, como revoltas contra a autoridade mesma, ela desvia o sentimento dos seus subordinados do dano imediato causado por tais ofensas, e assim consegue afinal o oposto do que deseja a vingança, a qual enxerga e faz valer somente o ponto de vista do prejudicado.142

Em última instância, Dühring considera a justiça como reparação, como desagravo por um dano sofrido. Com isso, ele interpreta o direito como ressentimento, que suprime e elimina todo e qualquer inimigo, e a justiça como sublimação da vingança redimida pelo sentimento de igualdade. Uma ordem de direito, que nega e modifica o espaço agonístico da luta entre as relações de poder ao seguir o seu chavão comunista “de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual”143. O que para Nietzsche “seria um princípio hostil à vida, uma ordem destruidora e degeneradora do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada”.144

Mas, o que leva o homem em sua realidade a criar uma ordem, um princípio hostil à vida que consistiria num caminho para o nada? Por que, afinal de contas novos valores são criados para depreciar e degenerar as forças instintivas que regem a vida? Por que determinados ideais são criados em nome da negação e da desvalorização da existência humana?

Uma leitura da terceira dissertação da Genealogia da Moral que versa sobre o ideal ascético pode ilustrar estas indagações.

142 GM II, 64. 143 Idem, 65. 144 Idem.