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CAPÍTULO II A JUSTIÇA RESTAURATIVA

2.1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM MOVIMENTO SOCIAL

2.1.2 Justiça Restaurativa e o enfrentamento à violência contra a mulher: um diálogo

enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher representa um importante passo que demonstra a possibilidade de o Estado interagir com a sociedade civil em uma interação que cuide da segurança pública e de projetos voltados à justiça comunitária, que acarrete, desta maneira, uma política autossustentável dentro do próprio sistema. Como visto, o modelo restaurativo apresenta a criação conjunta de uma justiça participativa, que busca promover e

garantir o respeito aos direitos humanos que transforma a sociedade, estimulando e qualificando o exercício da cidadania (OXHORN; SLAKMON, 2005).

Concebe-se como um Estado e uma sociedade civil desenvolvidos e fortes aqueles que são capazes de cooperar entre si, com o intuito de elaborar estratégias inclusivas para o fortalecimento e exercício da democracia, de acordo com o contexto em que vivem, para oferecer recursos mais eficientes e efetivos ao combate da criminalidade, da violência e da exclusão social (OXHORN; SLAKMON, 2005).

De acordo com Theo Gavrielides, em seu artigo Restorative Justice and Violence

Against Women: Comparing Greece and The United Kingdfom, o debate acerca da justiça

restaurativa e violência doméstica iniciou em 1995, com Braithwaite e Daly, ao apresentarem uma possibilidade de discussão para o enfreamento dessa problemática social, ao observarem que “as conferências da comunidade abrem um caminho para fracassos dos processos de justiça contemporâneos, que deixam masculinidades misóginas intocadas pela vergonha e vítimas com medo da culpa” (BRAITHWAITE; DALY, 1995, p. 244).

Em seu artigo, Gavrielides descreve sobre a pesquisa realizada no Reino Unido e publicada no ano de 1995, que analisou a utilização da justiça restaurativa em casos de violência entre cônjuges (CARBONATO, 1995) enquanto Braithwaite e Strang (2002) efetuaram uma análise teórica sobre argumentos contra e a favor da prática. Sustentou que, de acordo com uma pesquisa qualitativa realizada no ano de 1999, chegou-se à conclusão de que o potencial ou a força da prática nesses casos decorrem do reforço de processos de fortalecimento ou libertação (PELIKAN, 2010).

Portanto, propostas para enfrentar a violência contra mulher devem estar vinculadas às peculiaridades dos processos sócio-históricos e culturais que a colocaram, e ainda colocam, em situação de subalternidade e fragilidade, pois isso exige um conjunto complexo de ações no âmbito das políticas públicas, como aquelas decorrentes do âmbito da proteção social (BOURGUIGNON; GRAF; ROCHA, 2019, no prelo).

A proteção social pode apresentar formas institucionalizadas, ou não, estruturadas pela sociedade civil e/ou pelo Estado, que possui duas finalidades gerais: a) de garantir aos cidadãos e cidadãs proteção no decorrer das transformações dos ciclos da vida (infância, juventude, vida adulta e velhice); b) prestar atendimento necessário ao combate dos processos de exclusão social, de sobrevivência material e enfrentar todas as formas de privação social e cultural que atinjam a vida social e individual na sociedade. Por este entendimento, as políticas sociais são formas de acessar os mecanismos de proteção social previstos na Constituição Federal de 1988 (YAZBEK, 2014).

Porém, somente políticas públicas não são capazes de atender toda a demanda social que emerge da sociedade, sendo necessária a criação de um conjunto de programas sociais102 mobilizadas no âmbito da Política Pública de Assistência Social, Segurança Pública, Saúde, Trabalho, Cultura, Educação, Judiciário e sociedade civil, em suas diferentes instâncias. Para assegurar a efetividade no combate das situações de violência, essas ações devem atender ao princípio de intersetorialidade, para que haja um efetivo trabalho cooperativo e diversificado (BOURGUIGNON; GRAF; ROCHA, 2019, no prelo).

Entende-se como intersetorialidade a articulação entre as políticas sociais perante os objetivos comuns quanto à garantia dos direitos sociais. Silva (2014) apresenta 3 (três) características de políticas intersetoriais: a) complementariedade de setores, objetivando maior alcance de atendimento às necessidades da população; b) construção de práticas articuladas, ampliando a esfera da ação de políticas específicas; c) trabalho em rede (apud BOURGUIGNON; GRAF; ROCHA, 2019, no prelo). No entanto, o que materializa a intersetorialidade é o trabalho em rede, pois é por meio dele que se potencializa o trabalho articulado de diferentes políticas públicas e instituições, para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. De acordo com Bourguignon (2001, p. 4):

O termo rede sugere a idéia de articulação, conexão, vínculos, ações complementares, relações horizontais entre parceiros, interdependência de serviços para garantir a integralidade da atenção aos segmentos sociais vulnerabilizados ou em situação de risco social e pessoal.

De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, desde o ano de 2003, as políticas públicas nesta temática devem ser executadas conforme a perspectiva intersetorial e em rede. Ou seja, devem possibilitar o “aperfeiçoamento da legislação, incentivo à constituição de redes de serviços, o apoio a projetos educativos e culturais de prevenção à violência e ampliação do acesso das mulheres à justiça e aos serviços de segurança pública (BRASÍLIA, 2011, p.7). E devem seguir os eixos estruturantes:

1- Prevenção: com ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas; 2- Enfrentamento e combate: por meio de ações punitivas e cumprimento da Lei Maria da Penha;

3- Assistência: favorecendo o fortalecimento da Rede de Atendimento e capacitação de agentes públicos;

102 Para a presente pesquisa, entende-se como Política Pública as intervenções elaboradas pelo Poder Público com

o intuito de solucionar as problemáticas sociais relevantes nas 3 instâncias e por Política Social uma metapolítica (SANTOS, 1989 apud CARVALHO, 2007), que inclui, além da Política Pública, as atividades provenientes da sociedade civil (CELINA, 2006; CARVALHO, 2007).

4- Acesso e garantia de direitos: para o cumprimento da legislação nacional/ internacional e iniciativas para o empoderamento das mulheres (BRASÍLIA, 2011, p. 26).

A justiça restaurativa tem como base a inclusão da vítima e da comunidade no processo, com o intuito de empoderar a mulher e responsabilizar o homem, e se articula com as ações de políticas sociais para enfrentamento da violência contra a mulher, sendo assim, sua utilização é coerente com os objetivos da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, na medida em que seus princípios convergem com os eixos estruturantes.

Sobre o termo “empoderamento”, importante ressaltar o conceito que se atribui à referida palavra, principalmente no sentido que se dá o empoderamento à mulher por meio das práticas restaurativas. Para Baqueiro (2012), a raiz do conceito remete à Reforma Protestante, ocorrida na Europa no século XVI, liderada por Martinho Lutero, que enfrentou a Igreja Católica, confrontando o controle hegemônico da época, ao popularizar a tradução dos escritos em latim para o alemão. Nessa lógica, para a autora, com certas restrições, este foi um processo de empoderamento ao possibilitar a leitura dos textos religiosos à comunidade.

A escritora Joice Berth dedica um livro sobre a temática. Na obra O que é

empoderamento?, a escritora se debruça a elucidar as questões acerca do surgimento da palavra,

teoria e prática desse conceito, principalmente quando se fala em feminismo negro e interseccional. Explica Berth (2018) que a palavra “empoderamento” é um neologismo e tradução da palavra em inglês empowerment, sendo atribuída a Paulo Freire essa criação, que entende o empoderamento como um processo em que os oprimidos empoderam a si mesmos, “desconfiando da docilidade das classes dominantes” (BERTH, 2018, p. 34).

Nesse sentido também segue Valoura (2005/2006), ao entender que empoderamento é a “capacidade do indivíduo realizar, por si mesmo, as mudanças necessárias para evoluir e se fortalecer”. Ou seja, nessa perspectiva, o empoderamento emerge de um processo no qual o sujeito toma posse de sua própria vida por meio da interação com os outros (BAQUERO, 2012). Portanto, o empoderamento não seria somente um movimento que vem de fora para dentro, de que alguém lhe oferta, mas, sim, de uma mudança interna, por meio da conquista.

No entanto, Berth (2018) traz à baila a reflexão sobre a definição de Rapport, o qual entende que o empoderamento ocorre quando se oferta a alguém um instrumento para que um determinado grupo oprimido possa se fortalecer. Para tanto, aponta Zimmerman e Perkins, que apresentam uma definição do uma Teoria do Empoderamento:

O empoderamento é uma construção que liga forças e competências individuais, sistemas naturais de suporte e comportamento pró-ativo no âmbito das políticas e

mudanças sociais (Rapport, 1981, 1984). A pesquisa e a intervenção da teoria do empoderamento unem o bem-estar individual ao meio político social mais amplo. Teoricamente, a construção une a saúde mental à ajuda mútua e a luta para criar uma resposta comunitária. Isso nos obriga a pensar em termos de bem-estar versus doença, competência versus déficits e força versus fraquezas. Da mesma forma, a pesquisa sobre empodermento centra-se na identificação de capacidades, em vez de enfatizar fatores de risco e explorar influencias problemáticas do meio social ou em vez de culpar as vítimas. (ZIMMERMAN; PERKINS apud BERTH, 2018, p. 21).

Por este ângulo, esclarece Berth que os autores da Teoria do Empoderamento apresentam que são várias as definições para a palavra empoderamento, mas que este termo não pode ser definido apenas como um “construto psicológico tradicional”, a exemplo da autoestima, autocontrole, e sim aproximar o conceito apresentado como:

[...] “um centralizador de processos contínuos intencionais na comunidade local, envolvendo respeito mútuo, reflexões críticas, cuidados e participação grupal, por meio das quais pessoas enfraquecidas possam se valer da distribuição igualitária de recursos necessários, tendo facilitado o acesso e controle sobre esses recursos” Cornell Empowerment Group (1989), ou simplesmente um processo pelo qual as pessoas tenham controle sobre suas vidas (Rappaport, 1987), participações democráticas na vida de sua comunidade e uma compreensão crítica do meio que o cerca (Zimmerman, Israel, Schulz, Checkowak, 1992) (BERTH, 2018, p. 21).

Nesse sentido, importante o destaque da definição apresentada por Nelly Stromquist (apud BERTH, 2018, p. 232):

O empoderamento consiste de quatro dimensões, cada uma igualmente importante, mas não suficiente por si própria para levar as mulheres para atuarem em seu próprio benefício. São elas a dimensão cognitiva (visão crítica da realidade), psicológica (sentimento de auto-estima), política (consciência das desigualdades de poder e a capacidade de se organizar e mobilizar) e a econômica (capacidade de gerar renda independente)

Neste sentido, a justiça restaurativa dialoga com o processo de empoderamento na medida em que fomenta, por meio de estímulos externos, o processo interno de empoderamento, ao unir as dimensões do individual (capacidade interna de agir) com a sociedade e mobilizar a rede e os indivíduos na trama que oportuniza a mudança sociocultural da visão crítica da realidade.

Braithwait (2002) cita Kay Pranis ao descrever sobre um bom ponto de vista do empoderamento. Ela entende que é possível dizer quanto poder uma pessoa tem, a partir da visão de quantas pessoas escutam sua história, e explica que o simples fato de ouvir a história de alguém, seja no âmbito público ou privado, é empoderar. Neste sentido, a autora continua ao afirmar que as evidências empíricas demonstram que a voz da mulher em procedimentos restaurativos é mais ouvida até do que a do homem, diferentemente da forma que essas vozes

são ouvidas nos processos judiciais comuns em que há polaridades e vítima tratada como mero informante.

Como Pranis (2002) pondera:

Um valor muito importante na justiça restaurativa é o de capacitar vozes inéditas. Isso é mais frequentemente e mais poderosamente realizado através de narrativas pessoais. Ouvir respeitosamente a história de alguém é uma maneira de dar a ela poder - um tipo positivo de poder.

Esse tipo positivo de poder que Pranis relata, que é o de capacitar vozes inéditas, é apagado no decorrer da persecução criminal, sendo que, por muitas vezes, a mulher é deixada de lado, sem a escuta de suas necessidades e relatos sobre o ocorrido. Diante disso, que o empoderamento da mulher, em se tratando de procedimentos restaurativos, busca harmonizar e reconhecer o processo interno e externo de criação de empoderamento que impacte em mudanças concretas na vida das mulheres e da sociedade como um todo. Ou seja, que vá além do empoderamento individual e atinja, também, o empoderamento coletivo.

No Manual de Mediação, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2016a), há a indicação do princípio do empoderamento, o qual descreve:

Princípio do empoderamento: Como mencionado anteriormente, com a reinclusão de novos processos autocompositivos em modernos sistemas processuais, estes passaram a incorporar novos escopos, como a capacitação (ou empoderamento) das partes (i.e. educação sobre técnicas de negociação e resolução de conflitos) para que as partes em disputa possam, cada vez mais, por si mesmas compor parte de seus futuros conflitos. Nesse contexto, o princípio do empoderamento estabelece a necessidade de haver um componente educativo no desenvolvimento do processo autocompositivo que possa ser utilizado pelas partes em suas relações futuras. Considerando que o mediador estabelece uma relação com as partes de modo a estimular a comunicação, espera se em razão do princípio do empoderamento que, após uma adequada autocomposição, as partes tenham aprendido, ainda que parcialmente, algum conjunto de técnicas de negociação e aperfeiçoado as suas formas de comunicação tornando mais eficiente inclusive em outros contextos.

Diante das reflexões expostas, pode-se dizer que o empoderamento é tanto um processo coletivo como individual, que pode receber estímulos externos, mas a partir do movimento interno, de tomada de consciência, é que se conseguirá estabelecer estratégias de enfretamento dos sistemas de opressão e dominação sexistas, machistas e racistas. Isto é, “o empoderamento é um processo dirigido para a transformação da natureza e direção das forças sistêmicas que marginalizam as mulheres e outros setores excluídos em determinados contextos.” (BATLIWALA, 1994, p. 130).

O empoderamento da mulher buscado por meio da justiça restaurativa em casos de violência doméstica é uma forma de reequilibrar as forças e evitar a revitimização desta, para que não ocorram desequilíbrios de poder, repetição dos padrões de desigualdade e reificação das mulheres, não só no contexto individual, mas também no coletivo, como força motora de mudança de consciência, articulação de indivíduos e grupos em um processo de autovalorização e reconhecimento de seu poder e igualdade, por meio da escuta qualificada e contação de histórias.

Quanto à responsabilização em relação ao homem, autor da ofensa, esta tem enfoque prospectivo por se tratar de responsabilidade ativa. Ou seja, diz respeito àquilo que o sujeito vai fazer a partir daquele momento com o conhecimento e o experimento que teve no decorrer da prática restaurativa. É inegável que a política penal tradicional cuida apenas da responsabilidade passiva – aquela decorrente do fato criminoso praticado, com a subsunção do fato à norma. Isto é, quando o sujeito comete uma infração penal para a qual é prevista uma pena e há o regular cumprimento de tal punição, este não possui mais responsabilidade (criminal) sobre o fato cometido – já que o sistema penal demonstra que a única “dívida” que o indivíduo possui é com o sistema carcerário e não com a reparação do dano ou com a vítima (IHU, 2013).

A ideia de responsabilização ativa vai além do “pagar a dívida”. É a responsabilização ativa que faz incutir no sujeito a mudança de comportamento para o futuro, no sentido de não mais querer cometer aquele ato e assumir a responsabilidade sobre isso. E vai além mais uma vez, a mudança não decorre só porque infringiu uma norma positivada e, diante disso, sente-se coagido a não mais delinquir – mas porque tal ato ofende alguém e essa ofensa gera um dano que deve ser reparado, mesmo que de forma simbólica (ZEHR, 2012).

Judith Butler, em seu livro Dar Cuenta de Si Mesmo: violencia ética y

responsabilidade (2009, p.117), defende que “assumir a responsabilidade por si é confessar os

limites de todo auto-entendimento, e considerá-los não apenas uma condição do sujeito, mas a condição da comunidade humana”. Ao discorrer sobre a responsabilidade, Butler apresenta o alinhamento (paradoxal) dos entendimentos de Nietzsche e Levinas quanto ao fato da culpa trazer possibilidades. No entanto, enquanto para Nietzsche o sujeito emerge quando entende que causou uma ofensa e, decorrente disso, surge uma punição autoinfligida pela culpa, para Levinas, a responsabilidade não é uma recriminação de si mesmo, mas sim, quando emerge a compreensão de que a ofensa feriu uma relação ética com o Outro (BUTLER, 2009). E para Levinas, o Outro é o que Eu não sou, mas o Eu só se constrói a partir da relação com o Outro (OLIVEIRA, 2013).

O processo restaurativo fomenta e incentiva a promoção e atitudes ativas e construtivas por parte do homem que cometeu um crime, diferentemente do modelo retributivo, que se concentra na atribuição de culpa e de punição focada no passado. Essa é uma das principais diferenças entre os sistemas, o enfoque no presente e no futuro atribuído às práticas restaurativas proporciona responsabilização pelos fatos passados, mas também uma mudança de comportamento para o futuro (ZEHR, 2012).

Ou seja, a responsabilização aqui demanda compreender a ofensa na relação com o outro, que de certa forma pode gerar um sentido de vergonha, que faz incutir no sujeito a vontade ou intenção de reparar esse dano causado de alguma forma, mesmo que simbolicamente, tendo, como via de consequência, a mudança de comportamentos futuros, o que impactaria em suas demais relações com o outro. Nesse sentido, Braithwaite (apud ELLIOT, 2018) defende que esta vergonha103 deve ser reintegrativa e não estigmatizante, como ocorre na justiça retributiva. O autor explica que a “a vergonha reintegrativa é uma tentativa explícita de integrar nossa compreensão das teorias criminais do controle, da subcultura, da oportunidade, da aprendizagem (por exemplo, associação diferencial) e da rotulação” (apud ELLIOT, 2018, p. 215). No entanto, há que se cuidar quanto à utilização deste termo e intencionalidade nas práxis, isso porque não se trata de imputar outras penitências morais e subjetivas ao sujeito que infringiu a norma positiva, muito menos o forjar o sentimento de culpa, atribuindo a este peso moral na mudança de comportamento humano.

Importante aqui resgatar Butler (2009), ao citar Levinas, de que pode-se entender que essa culpa ou vergonha não é uma expiação ou humilhação, mas, sim, um processo em que se emerge a responsabilidade de dentro para fora, pois o sujeito, ao permitir que a ação praticada com o outro o envolva em uma relação de responsabilização, trabalha com o chamado por ele de “substituição”, ou seja, uma alteridade:

Isto não é sobre se humilhar, como se o sofrimento fosse em si mesmo (...) um poder mágico de expiação. A questão é que no sofrimento, no trauma original e no retorno ao eu mesmo, em que sou responsável pelo que não queria, absolutamente responsável pela perseguição que sofro, me dói (S, p. 90). (BUTTLER, 2009, p. 124, tradução nossa104).

103 Para Braithwaite, causar vergonha faz parte de “processos sociais que expressam desaprovação como a

intenção ou efeito de evocar remorso nas pessoas envergonhadas, e/ou condenação por aqueles que se tornam conscientes de causar vergonha” (ELLIOT, 2018, p. 215).

104 Original: «No se trata aquí de humillarse, como si el sufrimiento fuera en sí mismo (...) un poder mágico de

expiación. La cuestión es que en el sufrimiento, en el trauma original y el retorno a mí mismo, en que soy responsable por lo que no quise, absolutamente responsable por la persecución que padezco, se me agravia» (S, pág. 90).

Conclui Elliot (2018, p. 219) que “como um afeto humano normal, a vergonha é parte da nossa feição individual e coletiva”. Dessa maneira, o reconhecimento dos efeitos na vergonha é inevitável e, por isso, o reconhecimento da vergonha e a noção de como impacta na vida dos indivíduos é de grande valia para a análise das relações humanas na criação de sociedades mais saudáveis, bem como para a justiça restaurativa, porquanto os afetos mantêm a consciência da ruptura dos processos cognitivos, demandando, portanto, a geração de uma solução ou, então, causando uma angústia emocional (ELLIOT, 2019, p. 219-220).

Portanto, a justiça restaurativa, além de um movimento social, pode ser considerada como uma política pública de prevenção criminal105, pois é base fundante para o desenvolvimento de uma cultura de pacificação social e não violência, se construída em harmonia com o atual modelo existente.

A utilização da justiça restaurativa em casos de violência doméstica e familiar é vista com certa resistência por alguns grupos ante a confusão de conceitos e a insatisfação da população com a política criminal106 atual, que não alcança a ressocialização e a diminuição da criminalidade107.

Mas, como já destacado, desde a promulgação da Lei n° 11.340/2006, identifica-se um aumento expressivo das denúncias108, o que leva a pensar se as reais necessidades da mulher, do homem e da comunidade estão sendo supridas pelo Estado. E, desta forma, resta uma dúvida: o Estado consegue ofertar uma resposta satisfatória aos danos causados às vítimas, que empodere as mulheres e responsabilize os homens?

As situações que envolvem a violência doméstica contra as mulheres nas relações íntimas e de afeto são peculiares e as pesquisas apontam que, geralmente, as vítimas não querem “punir” o agressor ao tornar público o conflito doméstico, elas desejam acabar com a violência sofrida e, mesmo nos casos de separação conjugal, em sua maioria, não desejam a prisão do ex-

105 A abordagem restaurativa como parte integrante do sistema político-social da justiça criminal surgiu da: [...]

intersecção de linhas de crítica várias da justiça penal. Assentada na idéia de que a justiça penal falhou naqueles que deveriam ser os seus objetivos primeiros: não logra ressocializar ao agente reintegrando-o enquanto