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4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E COMPLIANCE CRIMINAL: ELEMENTOS

4.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: VALORES EXPANDIDOS PARA A COMUNIDADE

A Justiça Restaurativa não se contrapõe ao sistema de justiça do Estado tradicional, ao contrário, representa o Estado Democrático de Direito. Ela não se estrutura contra o Estado, atua além dele, propiciando uma realização democrática validadora da multiculturalidade, resgatando valores esquecidos, colocando em questão a esfera do inegociável e a dimensão humana que a burocratização, as tecnologias e a razão neoliberal tendem a esconder309.

É possível, ainda, ponderar que a Justiça Restaurativa não se vincula ou pertence ao Estado, mas com ele se relaciona, podendo ser vista, inclusive, como elemento externo capaz de auxiliar na promoção da abertura do sistema jurídico a ele tradicionalmente vinculado. De qualquer sorte, frise-se, ela pertence à sociedade civil, ao totus comunidade.

E nessa perspectiva de pertencimento, a Justiça Restaurativa direciona-se a todos os que têm uma participação num conflito específico e, assim, identifica necessidades e obrigações, a fim310 de curar e colocar as coisas do melhor modo possível.

307 ANDRADE, Vera Regina. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 41.

308 PALLAMOLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009, p.102.

309 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa: teoria e prática. São Paulo: Palas Athena, 2012, p. 120.

310 MUMME, Mônica. Justiça Restaurativa: um caminho de valor social que acontece no coletivo. In “Justiça Restaurativa: Caminhos da Pacificação Social”, Recife, PE: UFPE, 2016, p. 89.

A partir disso, a comunidade volta a interessar à Justiça e, ao mesmo tempo, a Justiça torna-se interessante à comunidade e, por isso, as suas práticas assumem diferentes formas, em razão da especificidade de cada caso concreto. Hoje, as formas contemporâneas mais debatidas de Justiça Restaurativa procuram superar com essa prática o chamado jogo adversarial de “soma zero” que o sistema criminal vigente estabelece para as relações entre vítima e ofensor. O atual sistema é, inclusive, avaliado pelo “montante de dor que produz” ou, como preferem chamar, “o montante de dor que é reparado” 311.

É uma justiça que, de forma indissociável, respeita a voluntariedade, a confidencialidade e o empoderamento da (s) vítima (s). A (s) vítima(s) passa a assumir o papel central no procedimento restaurativo, na medida em que lhe são devolvidos o protagonismo e a voz durante o processo de transformação do conflito, de modo a atender o que a parte envolvida considera como justo, e não o ideal imposto de maneira opressiva pelo Estado.

Segundo Zehr312, a(s) vítima(s) passa por um processo de segunda vitimização em contato com os “profissionais do judiciário e do processo”, uma vez que continuam tendo prioridades periféricas, tratadas como “notas de rodapé do processo criminal”. O autor ainda afirma que talvez o pior ponto seja a falta de um fim para o processo vivido pela vítima e para o atendimento de suas demandas.

Assim, a justiça é uma experiência a ser vivida como algo real, e isto, quando diz respeito à vítima, que passou por uma experiência por vezes traumática e violenta, pode acabar por violar algo fundamental: “sua autoimagem como indivíduo autônomo num mundo que tem significado” [...] O crime também é uma violação da confiança depositada no relacionamento com os outros” 313.

Uma das mais importantes contribuições que têm sido proporcionadas pelos programas de Justiça Restaurativa é a criação de espaços públicos nos quais questões referentes a um crime abrem-se à possibilidade de diálogos sobre temas mais amplos da comunidade e do desenvolvimento de entendimentos compartilhados a respeito de limites nos comportamentos que cada pessoa pode conviver e se comprometer a realizar.

311 ROLIM, Marcos. A Síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pública no séc. XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 225.

312 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa: teoria e prática. São Paulo: Palas Athena, 2012, p. 28-30. 313 Ibidem.

Esses relacionamentos e conflitos podem se dá de maneira interrelacional, bem como de maneira comunitária e social, logo, a comunidade é parte importante de um processo que queira superar a opressão e falar em justiça. Além do que o conflito se dá em algum ambiente, ambiente este que impossível ser vivenciado de maneira isolada.

Como as comunidades num todo sofrem com os impactos do conflito, devem elas ser consideradas partes interessadas, funcionando como verdadeiras vítimas do processo restaurativo. Os membros da comunidade têm importantes papéis a desempenhar na transformação do conflito.

Portanto, a Justiça Restaurativa é inclusiva. Abandona-se o pensamento fechado, próprio de modelos autoritários. Reconhece-se que o conflito abarca não apenas a dupla vítima-ofensor, mas também a família, a comunidade e outros integrantes do seio social. Para isso, tanto quanto possível, todos esses sujeitos devem ter a possibilidade de exercer a palavra, por exemplo, nos modelos dos encontros em círculos. Ressimbolizar a Justiça, nesse contexto, exige também abrir-se ao princípio da oportunidade, da voluntariedade, ao encontro presencial, ao dizer a verdade, à reparação do dano, sempre em atenção aos limites dos direitos humanos 314.

Hodiernamente, apregoa-se a simplificação dos sistemas como uma importante estratégia para acarretar a melhor obtenção de resultados, pois é sabido que, quanto maior a complexidade do sistema, mais barreiras irão surgir, dificultando a resolução dos conflitos. Sob tal perspectiva, a Justiça Restaurativa tem respondido bem aos anseios sociais.

A proposta deste capítulo não é direcionada a tecer reflexões exaustivas sobre a Justiça Restaurativa, até porque a construção desta tem sido completamente natural no âmbito do progresso ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Vale esclarecer que muitas das práticas restaurativas não são novas e os valores que motivam essa estrutura são valores ligados, historicamente, às necessidades das comunidades.

Ora, porque tratar especificamente das necessidades das comunidades? Primeiro, porque a Justiça Restaurativa é um modelo proativo e colaborativo de comunidade; depois, porque a participação dela como agente cooperativo das empresas na resolução de conflitos de cunho ambiental permite às referidas empresas maior respaldo frente ao cenário globalizado atual.

No âmbito da filosofia da Justiça Restaurativa, diversas ideias têm evoluído diante do chamado à consciência e à responsabilização penal das pessoas jurídicas. A Justiça Restaurativa deve atender todas as relações quebradas - entre o ofensor e a comunidade, a vítima e a comunidade, a vítima e o ofensor. 315 Ademais, a comunidade atingida pode e deve auxiliar na resolução do incidente criminal, pois conhece a sua real necessidade. Desta forma, a reparação de danos deve ser feita por um processo respeitoso a todos que tiveram os seus direitos violados.

Processos respeitosos tornam a comunidade como igual em termos de dignidade humana e capacidade para contribuir em soluções construtivas. Por outro lado, em relação aos ofensores, e aqui tratando especificamente de pessoas jurídicas, tratá-los de forma responsável, levando- os a se tornarem aptos a encontrar soluções e a realizar reparações, de maneira que a propensão à recalcitrância seja consideravelmente menor.

Contrariamente, quando decisões são tomadas pelos entes coletivos, sem oportunidade de intervenção da comunidade, o senso de responsabilidade deles é menor para com os resultados. Torná-los desempoderados não contribui para a segurança em longo prazo, o que pode, inclusive, desencadear numa tentativa de recuperar o “poder”, geralmente de modos danosos316.

Vê-se que a Justiça Restaurativa privilegia valores democráticos por meio da ampliação do rol de participantes na deliberação, pela confiança depositada na sua capacidade decisória, pelo empoderamento produzido e pela educação para paz. O momento atual, e o que se avizinha, é o momento de devolver os conflitos às pessoas e o de permitir inovações capazes de tornar a justiça mais eficaz e menor dispendiosa, renovando-se soluções de diversão, implementando- se e ampliando-se o uso de práticas restaurativas. Faz-se necessário, pois, encontrar novos equilíbrios na realização da justiça penal317.

Há quem entenda, de forma desarrazoada, que a Justiça Restaurativa, ao defender o empoderamento e a reapropriação de conflitos, terminaria por funcionar como um retorno sutil à vingança privada contra o ofensor. Esse receio é manifestado por Zaffaroni318, que sustenta que qualquer proposta que inclua exceções ou limites à atitude do Estado frente ao delito deve

315 AFONSO, Maria Lucia M. e ABADE, Flavia Lemos. Para Reinventar as Rodas. Rede de Cidadania Mateus Afonso Medeiro. Recima, Belo Horizonte, 2008, p. 32.

316 SANTOS, Milton. Espaço do Cidadão. 4ª ed. Ed. Nobel, São Paulo, 1998, p. 87.

317 SANTANA, Selma de Pereira; PIEDADE, Fernando de Oliveira. A reparação à vítima como instrumento de obtenção da paz social. In Justiça restaurativa – VALOIS, Luiz Carlos; SANTANA, Selma; MATOS, Taysa; ESPIÑEIRA, Bruno [Orgs], Belo Horizonte: Ed. D’Plácido, 2017, p. 131.

318 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ, Ed. 2010, p. 473.

ser cuidadosamente avaliada porque um sistema demasiadamente permissivo que não imponha e não afirme suas leis, com seriedade, desloca ou desvaloriza outros setores de controle social, favorecendo o surgimento de uma justiça particular, que terminará por impor suas próprias normas, sanções e procedimentos.

Os processos respeitosos para as vítimas facilitam a recuperação do senso de poder pessoal, de modo que esse receio não procede em relação à Justiça Restaurativa, porque todos os acordos firmados teriam que contar, necessariamente, com o consentimento do ofensor; a Justiça Restaurativa requer um efetivo controle público-estatal que defina seus limites, formais, estruturas, afastando possíveis abusos; finalmente, a Justiça Restaurativa diz respeito, sobretudo, à matéria de ordem penal e, por esse motivo, deve reger-se por seus princípios garantidores, ainda que sejam extrajudiciais.

Enfim, processos respeitosos para as empresas, causadoras de danos ambientais, as encorajam a experimentar o uso responsável do seu poder, enquanto corporação para com o seu próprio comportamento ilícito, na realização das reparações junto à comunidade.

4.3 O REPENSAR DA PRESERVAÇÃO AMBIENTAL POR MEIO DO COMPLIANCE