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4. UMA TEORIA DA JUSTIÇA REALISTA PARA A MANUTENÇÃO DA ORDEM E

4.3 Justiça Segundo Os Critérios Dos Antigos: O Caso De Roma

Encontramos dois momentos dentro do Discorsi acerca do regime romano que ajuda a elucidar esse ponto, um deles retratando a exemplaridade de Roma e outro representando a vituperação. No primeiro, Maquiavel descreve Roma como modelo de sociedade justa, em tempo de bons governantes, que foi o período compreendido entre Nerva a Marco Aurélio.

Que o príncipe observe, protanto, os tempos que vão de Nerva a Marco Aurélio e os compare com os tempos de antes e depois; em seguida, diga em qual deles gostaria de ter nascido, ou em qual gostaria de governar. Porque, nos tempos governados pelos bons, verá um principe seguro em meio a seus cidadaos seguros, o mundo cheio de paz e de justiça; (...) por outro lado, verá a extinção do rancor, da licença, da corrupção, da ambição: verá os tempos de ouro, em que cada um pode ter e defender a opinião que quiser. Verá, enfim, o mundo triunfar, o príncipe, cheio de referência e glória; os povos cheios de amor e segurança. (MAQUIAVEL, 2007a, p. 47)

20 Tal visão lança dúvidas sobre a opinião que uma ordem duradoura pode ser imposta unilateralmente pela força ou pela violência, tal como um regime militar ou de extremistas, por exemplo.

Se alguém considerar o tempo dos outros imperadores,

Verá que foram atrozes, pelas guerras, cheios de discordia, pela sedicoes, crueis na paz e na guerra: muitos principes mortos pela espada, tantas guerras civis, tantas externas; a Itália, aflita e cheia de novos infortunios, com suas cidades arruinadas e saqueadas. (...) E sem dúvida, se for um ser humano, sentirá horror à imitação dos maus tempos e se inflamará com um imenso desejo de seguir os bons. (MAQUAIVEL, 2007a, p. 47-48)

Maquiavel também reconhece a importância das “leis das nações” (jus

gentium), outro tipo de justiça positiva, aplicada nas relações entre estados. Não é

nenhuma surpresa o comentário uma vez que ele fora diplomata e realizou diversas missões em países estrangeiros, contudo ele faz um retrato das dificuldades enfrentadas frente à violação do jus gentium. No capítulo II, 2821 do Discorsi, apesar

da chamada vingança no título, o capítulo é bem didático sobre a inobservância da justiça. É narrada a história dos três Fábios22 e como estes violaram o ius gentium ou

lei das gentes que proibia os embaixadores de combater seus anfitriões e ainda receberem honrarias ao retornarem à Roma.

De modo que os franceses ao verem honrados aqueles que deveriam ser punidos (...) inflamados de indignação e ira, vieram atacar Roma e a tomaram, com exceção do Capitólio. Ruína que os romanos deviam

somente à inobservância da justiça, porque seus embaixadores, que haviam atentado “contra jus gentium”, deveriam ser castigados, mas foram, ao contrário, honrados. (MAQUIAVEL, 2007a, p.286-287)

Maquiavel trata essa interpretação com simpatia, implicando que ela refletia um razoável julgamento sobre a própria culpa dos romanos e que as desastrosas violações de Roma apontam para a compreensão das razões pelas quais o respeito pelos princípios da justiça é sempre prudente. Como a última consideração neste o capítulo, Maquiavel afirma: “nunca se deve dar tão pouco valor a um homem que, somando-se uma injúria ou outra, se acredite que o injuriado não vá pensar em vingar-

21 Cujo título é “De como é perigoso a uma república ou a um príncipe não vingar uma injúria cometida contra o público ou contra o privado”. [Quanto sia pericoloso a una republica o a uno principe non vendicare una ingiuria fatta contro al publico o contro al privato].

22 Em 391 a.C., Cesão foi enviado pelo Senado com seus dois irmãos, Quinto Fábio Ambusto e Numério Fábio Ambusto, a Clúsio para tratar com os gauleses sênones, liderados por Breno, que cercavam a cidade etrusca. As negociações não deram certo, porque estes embaixadores eram pessoas de natureza violenta, mais parecidos com gauleses que romanos. Seguiu que os romanos lutaram na linha de frente dos etruscos, e Quinto Fábio matou um dos chefes gauleses. Com isto, os gauleses esqueceram de Clúsio, se retiraram, e avançaram para Roma. Eles exigiram que Roma entregasse os três embaixadores, e o Senado, desaprovando a ação dos embaixadores, foram impedidos por razões políticas de entregar os três. Os gauleses consideram este um ato de guerra. Para o ano seguinte, os três Fábios viriam a ser eleitos tribunos consulares.

se, ainda que para isso se exponha a perigos e danos particular” (MAQUIAVEL, 2007a, p.288), ponderando a necessidade de preparar o corpo de leis para a satisfação dos humores e com a justa medida punitiva.

Quando Maquiavel declara que é necessário vingar, eliminar ou agir vigorosamente, pensamos como ações limítrofes da ação política: buscar uma reparação pelo dano ou, trabalhando com a etimologia da palavra vendicare, buscar uma reivindicação. Este significado é mais razoável e ético, pois torna o vendicare sinônimo de justiça. Em outras palavras: Maquiavel alude a importância da justiça punitiva ainda que sob a uma linguagem dura, valendo-se de termos como vingança, injúria, punição. Tais palavras duras de Maquiavel devem, em nossa interpretação, ser entendidas como ponto de partida para uma reflexão sobre de que forma o desejo de reparação pode ser compatibilizado com valores de civilidade e humanidade, reconhecido como fundamento de qualquer ordem estável.

Por fim, cabe notar que Maquiavel também menciona o aspecto positivo da justiça quando prudentemente usada como um instrumento indolor de expansão Imperial.

Os romanos não destruíram as cidades e as deixavam viver com suas próprias leis mesmo aquelas que se defendiam como ditas e não como aliados. (...)Percebe-se, portanto, até que ponto esse modo facilitou o aumento dos domínios Romanos porque as cidades sobretudo as habituados a viver livres ou a ser governados por seus próprios cidadãos ficavam mais tranquilas e contente (MAQUIAVEL, 2007a, p. 259)

Entre todas as coisas com as quais os capitaes conquistam os povos, estao os exemplos de castidade e justiça; como o de Cipião, que na Espanha devolveu aquela jovem de corpo belissimo ao pai e ao marido; e isso o fez ganhar a espanha mais que com as armas. (MAQUIAVEL, 2006, p. 192)

Interessante notar aqui a menção da castidade, pois Maquiavel reconhece que a violação das mulheres não envolve apenas o assalto, mas também a violação da justiça. A rapinagem dos bens e das mulheres fazem os conquistadores muito mais impopulares e os conquistados sedentos por vingança, mesmo que se exponha aos perigos de se aliar com outra potência.

Para encerrar a discussão que iniciamos esta seção, defendemos que não é claramente precisa a opinião que Maquiavel não tenho um uso ou não desenvolva a questão da justiça. Ele certamente tem uma concepção positivada da justiça e esta está intimamente atralada as ideias de lei e ordenação. São ferramentas necessárias para um bom governo em todas as sociedades estabelecidas, inclusive nas mesmo

em relações internacionais se presta a referência a justiça, ainda que sob o disfarce da necessidade.

Significa dizer que aqueles povos que optam por estabelecer um modo de vida livre e colher os benefícios dela, devem pensar a justiça de maneira ordinária na criação (ou reforma) das instituições, mas não deve se ater apenas a estas circunstâncias excepcionais – fundação, crise interna ou guerra. A justiça não tem unicamente um papel a desempenhar apenas no momento do nascimento da ordem institucional; tais valores deve ser mantida a fim de manter continuamente a obediência após havê-la suscitado, independentemente da vida e da morte dos governantes, de modo que de tempos em tempos estejam vivas na memória dos cidadãos, afinal “os príncipes têm vida curta, o reino só poderá desaparecer logo (...) pois a virtú desaparece com a vida desse homem; e raras vezes ocorre ser ela renovada com a sucessão”. (MAQUIAVEL, 2007, p. 52)

Desta leitura, ousando aqui se opor ao universo de comentadores que retratam Maquiavel como o pai da técnica política ou ainda que de modo menos ofensivo, como o promotor da separação da ética e da política nos assuntos do estado em nome da eficiência governamental, encontramos um valor ético nas ações daqueles que governam. Parece por obvio que um autor que teça considerações acerca do que é louvável ou prejudicial, do que é honroso ou desonroso, ou até mesmo do modo como a religião é um elemento de coerção para um fim social, possui no seu horizonte uma escala de valores ética. Mais ainda, em última análise deste trabalho, identificamos pelo menos dois modelos de justiça na obra maquiaveliana - ainda que não apareça de forma tão explicita em seu texto: Uma justiça civil e uma justiça punitiva, que passamos a apresentar ao leitor.