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Juventudes travestidas de Meninas/Mulheres: condição ou

2 FEMINILIDADES, JUVENTUDES E BAILE FUNK

2.5 Juventudes travestidas de Meninas/Mulheres: condição ou

Para iniciar essa discussão cito um comentário de Magda Guadalupe dos Santos24 quando se refere ao pensamento de Simone de Beauvoir:

Pensar a autonomia, pensar a liberdade, explicar porque o feminino foi transformado em condição menor, em o

outro da cultura, é tentar vasculhar uma trajetória de

descompassos e subterfúgios crivados temporalmente. Repensar essa trajetória implica tentar modificá-la e buscar instaurar o lugar da reciprocidade no contexto das relações humanas, compreendendo alteridade e

identidade num mesmo patamar axiológico (SANTOS,

2009, p.61)

Sua preocupação com os paradoxos do ser-mulher, que envolvem a condição feminina e os acontecimentos que ordenam o tempo, amplia a dimensão do conceito de humanidade e propõe a indagação acerca da permanência de paradigmas históricos que ainda prevalecem, segundo os quais a racionalidade e a normalidade se apresentam sob a feição do masculino, enquanto a irracionalidade e a patologia são estigmatizadas na esfera própria do feminino. Os apontamentos de Beauvoir são sempre atuais, comprovando que o discurso supostamente neutro da filosofia e das ciências necessita constantemente de revisão. Isto, para não cair em lugares-comuns, relegando o Outro, o diferente, a uma instância

24 SANTOS, Magda Guadalupe dos. Beauvoir e os paradoxos

de solidão, em que cada sujeito fala sozinho num mundo de solitários (indivíduos jovens) travestidos de masculino e de feminino. Nesse aspecto, a noção de juventude foi construída na modernidade num contexto marcado pelo ideal burguês europeu, de acordo com uma temporalidade prescrita segundo os interesses da classe dominante. O sociólogo Cavalli (1980), desenvolve uma interessante reflexão mostrando a relação entre classe social e o surgimento da juventude como fato social na sociedade europeia, na qual os modelos de socialização (instituições formalizadas) acreditam estar atuando na formação do caráter e das vontades. Dessa forma, é comum encontrarmos, tanto na população em geral quanto em trabalhos acadêmicos voltados ao público jovem, a ideia de uma divisão cronológica25 da infância, adolescência e juventude. Esses trabalhos de forma objetiva procuram configurar, em sua maioria, políticas públicas, levantamentos estatísticos e aplicabilidade de leis, conforme etapas predefinidas de uma maneira universalizante. Nesse ponto, Carrano (2007) chama atenção para o caráter simplista dos critérios de denominação da adolescência e juventude pela faixa etária, uma vez que tais categorias ultrapassam as definições de idade, bem como, Ozella ; Aguiar (2008), que também discorrem sobre esta questão, afirmando a insuficiência nas definições que impõe limites cronológicos e/ou fisiológicos, alertando-nos: “O tempo linear, cronológico e contínuo é superado por um devir, um tempo que não se esgota em si mesmo” (FROTA, 2007, p. 154).

Diante desses breves apontamentos acerca do reconhecimento das juventudes, é possível perceber a

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Juridicamente, a adolescência é concebida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como período compreendido entre os 12 e os 18 anos. O ECA abre exceção para fins de cumprimento de medida socioeducativa para atender indivíduos de até 21 anos incompletos, se o ato que gerou a imposição da medida ocorreu antes que completasse 18 anos. A juventude é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como etapa compreendida entre os 15 e os 24 anos. Há um projeto de Estatuto da Juventude, já aprovado na Câmara dos Deputados que, caso seja adotado, utilizará o recorte da juventude entre 15 e 29 anos

complexidade de tal categorização, no universo feminino, no qual sua definição abarcaria uma investigação minuciosa. A ambiguidade e a indefinição sobre o conceito de jovem menina/mulher são algumas das características dessa situação de complexidade. Nesse aspecto, é recorrente que a categoria juventude feminina seja também definida por critérios relacionados com as ideias que vinculam a cronologia etária com a imaturidade psicológica. Além disso, a irresponsabilidade seria outro atributo da situação social de jovialidade, particularmente nas idades correspondentes à adolescência. Parece-me mais adequado, entretanto, compreender a juventude feminina como uma complexidade variável, que se distingue por suas muitas maneiras de existir nos diferentes tempos e espaços sociais (CARRANO, 2007). Dessa forma, não pretendo aprofundar as questões referentes a essa categorização ou recuperar toda a discussão a esse respeito existente na literatura, o que fugiria ao propósito deste trabalho. Todavia, me propus a apenas localizar pontos de vista dentro das perspectivas existentes para a compreensão das feminilidades nas juventudes.

No presente estudo, considero a juventude feminina como construções histórico-culturais, relacionadas a interesses sociais e econômicos determinados, que variam ao longo do tempo e de acordo com a geograficidade26. Ser jovem mulher está intrinsecamente ligado às relações sociais, aspectos econômicos e valores culturais vigentes em determinada época e território. Da mesma forma, não pretendo negar ou relativizar as especificidades da infância e da idade adulta, já que procurei apontar que elas não designam uma fixação linear natural ou universal. Ou seja, não

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Definida como uma "geografia vivida em ato" a partir da exploração do mundo e das ligações de cada ser humano com sua história-cultural. Dardel apud Nogueira ressalta que a “geograficidade refere-se a várias maneiras pelas quais sentimos e reconhecemos ambientes em todas as suas formas, refere-se ao relacionamento com os espaços e os lugares, paisagens construídas e naturais, moldadas e remodeladas, institucionalizadas e ilegais que servem de base e recursos para as habilidades do humano e para as quais há uma fixação existencial ou não” (DARDEL, apud NOGUEIRA,2004, p. 14) .

estão presas a critérios rígidos de definição e não são vividas por todos da mesma forma.

Ao considerar esses pontos, tendo como fundamentação epistemológica o pensamento complexo, fica evidente que, tratando-se de um fenômeno que se expressa no âmbito de um grupo humano, estamos diante de uma realidade dinâmica e diversa, a qual apresenta uma capacidade recriativa admirável e, ao mesmo tempo, uma capacidade de permanecer em estados de equilíbrio relativamente estáveis de uma maneira fantástica. Essa constatação me levou a concordar com os dizeres de Ude (2005, p.73) quando nos leva a pensar que turbulências e crises27 são processos inerentes ao movimento da vida, independentemente do sistema que se observa como também a possibilidade de se reequilibrar perante os percalços que ocorrem ao todo momento no nosso dia a dia.

Com o intuito de situar o sujeito feminino deste trabalho, que compreende as idades entre 12 e 29 anos, configurou-se a possibilidade para criar a categoria jovem menina/mulher. Não para enquadrá-las em mais um esquema de idades biológicas, mas sim, para entender melhor o processo de construção social das feminilidades nessa interseccionalidade, tão imbricados nesses dois tempos, como as atividades, as ações, as reações, as construções, as reconstruções e as subjetividades presentes nessa trama identitária, afinal, estamos tratando de jovens meninas/mulheres moradoras de um bairro popular favelizado.

Diante de tais considerações entendo a juventude como parte de um processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas que tem suas especificidades que marcam a vida de cada um. A juventude constitui um momento determinado, mas que não se

27 A noção de crise é utilizada não no sentido de uma ruptura, de caos,

mas de mutações e recomposições profundas nas relações sociais, onde se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadas as novas, como sugere MELUCCI (1991).

reduz a uma passagem, assumindo uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto (lugar) no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este proporciona. Nesse sentido, apresento no próximo item um breve histórico do funk no Brasil, bem como as matrizes que possibilitaram uma nova forma de ser funkeiro(a).