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K L DANÇA O TEMPO QUE CONSTRÓI E DISSOLVE O UNIVERSO

Na noite de Brahman1, a Natureza acha-se inerte e não pode dançar até que iva o determine: Ele se ergue de seu êxtase, e dançando, envia através da matéria inerte ondas vibratórias do som que desperta e, vede! , a matéria também dança, aparecendo como uma glória que o circunda. Dançando, Ele sustenta seus fenômenos multiformes. Na plenitude do tempo, dançando ainda, Ele destrói todas as formas e nomes pelo fogo e lhes concede novo repouso. Isto é poesia e, contudo, também é ciência.

ANANDA COORAMASWAMI, filósofo indiano

A bela iconografia em bronze de iva-Natar ja, o rei dos artistas da cena — dançarinos e atores — e também o senhor arqui-yoguin, foi o elemento que possibilitou, há algum tempo, o meu encontro com o Yoga. Alguns queridos amigos, ao longo dos anos, foram presenteados, por mim, com uma réplica dessa escultura da Dinastia Chola, uma das mais significativas manifestações do deus hindu. Sem maiores aproximações com assuntos relacionados à espiritualidade oriental, eu intuitivamente, naquelas épocas, talvez comungasse com Nietzsche, quando, numa das passagens de seu taumaturgo Zaratustra, dizia que não podia acreditar num deus que não soubesse dançar (NIETZSCHE, 1999). Tempos depois, já praticando Yoga, a imagem dessa deidade, que celebra continuamente a vida, através de sua dança dentro de um círculo de fogo de criação e destruição, levou-me à percepção de que também há um mundo sagrado dentro da manifestação artística, e que eu poderia acioná-lo para impulsionar processos na criação, mais especificamente na criação literária e, mais

especificamente ainda, na letra dramatúrgica. ―Sendo a criação do mundo a criação por

excelência, a cosmogonia torna-se o modelo exemplar para toda espécie de criação‖ (ELIADE, 2007, p. 25). Por se tratar de um processo criativo, fiz uma apropriação desse aspecto cosmológico da personagem K l , que se desdobra em várias outras, em processos constantes de criação e dissolução.

Sendo iva-Natar ja o rei e senhor dos dançarinos, faço a tentativa de construir um

texto dramatúrgico que represente a dança de K l — uma das manifestações de sua rainha consorte — lida nesse contexto como a ―senhora da dança‖, a senhora arqui-yogin . A

1 N B A B

”, substantivo masculino que é nome da personificação do Deus Criador da Tríade do Hinduísmo. O primeiro é um termo metafísico, o segundo, uma designação mitológica. As grafias e a pronúncia também se modificam pelo

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escolha de K l , em lugar de diversas outras aktis2de iva, dá-se pelo fato de que a maioria

das ilustrações e imagens, que constituem a sua iconografia, traduz o momento mitológico em que ela está executando uma dança cósmica em combate aos asuras (demônios inimigos).

Formando um todo, a figura de iva, de olhos fechados, dançando o equilíbrio dos mundos,

une-se a K l , que é a expressão de uma dança cheia de êxtase e poder.

Todas as civilizações possuem os seus deuses. Em algumas delas, o deus é apenas um, em toda sua magnificência. Nas mais remotas, como as do Vale do Indo, a deidade traz uma personificação feminina, muitas vezes identificada com a fertilidade da terra: era sabido que o sangramento de uma pessoa poderia levá-la à morte e depois se percebeu que a mulher, ao parar de sangrar, de menstruar, dava vida a uma criança que nascia através de sua yoni (vulva). Isso estabeleceu uma estreita associação entre o sangue e o princípio da vida, gerando sacrifícios de animais para oferendas aos deuses e deusas. Entretanto, nos primórdios da cultura indiana, essa descoberta também instaurou, nos povos, tipos de cultos ao órgão sexual

feminino que, para eles, era ―um portal mágico capaz de trazer uma vida do mundo dos espíritos para o dos humanos‖ (MARMO, 2006, p.36). É importante salientar que toda a mitologia de K l apresenta uma relação peculiar com o sangue (a língua ensanguentada que

bebe o líquido dos demônios derrotados; a vulva avermelhada do gérmen da fertilidade; a pasta de sândalo utilizada para representá-lo nos rituais, entre outros.), simbolizando, ao mesmo tempo, a vida e a morte. A mulher passa, então, a ser uma representação da deusa- mãe, aquela que trouxe o Cosmos à vida e o seu corpo se transmuta no templo vivo da deusa. Essa concepção do corpo como lugar sagrado se manteve na tradição do Tantra.

Na cosmologia hindu, uma deusa, V k, criou o mundo. Nos tempos primevos dessa

civilização, o domínio social e religioso era de origem matriarcal. Logo depois, com a supremacia ariana, os deuses do panteão vêdico começaram a imperar em todas as escrituras, embora vários hinos dedicados à deusa ainda tenham se mantido na literatura védica. O culto à deusa prosseguiu sua existência de forma oculta no interior das casas, nos ritos domésticos,

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A palavra Ś significa um estado de poder, embora também possa significar a personificação deste poder numa deusa (E Ś -K , Ś -P rvat Ś da tríade, Ś também pode significar um estado de consciência. Aqui, utilizarei sempre letras maiúsculas e em fonte regular para grafar essas palavras por se tratarem, sempre, de uma forma ou de outra, de representações do Divino. Ś Ś representam aspectos opostos de uma mesma essência, como os dois lados de uma moeda, que trazem simbologias antagônicas e, no entanto, ambos são partes inseparáveis da mesma moeda. Não existe uma moeda com apenas um dos lados, como não deve existir a consciência de Ś sem energia de Ś ou vice-versa.

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mantendo a tradição3 dos povos dravídicos e também dos povos aborígenes. Quando o período vêdico cedeu espaço ao período bramânico4, também conhecido como Hinduísmo,

alguns deuses populares (a tríade Brahm , Vi u e iva: o Criador, o Preservador e o

Destruidor) ganharam visibilidade. Junto a eles também ressurgiram, nos cultos, as suas

respectivas aktis, ou seja, a materialização feminina do poder desses deuses, a energia vital

que sustenta a consciência representada pelo deus, além de projetar e criar formas diversas no mundo. Daí que cada uma dessas criaturas ou projeções recebe um determinado nome e expressão: Sarasvat é uma das aktis de Brahm ś Lak m é uma das aktis de Vi uś e K l é

uma das aktis de iva, assim como também o são P rvat , Gaur , Um , Sat e centenas de outras. Como não é somente a ―energia‖ que se mostra de diferentes formas, a ―consciência‖

também opera diferentes estados e, assim, igualmente, iva se apresenta em variadas formas.

Eis algumas delas: iva-P upati, o senhor dos rebanhos (da raiz verbal ―p u‖, animais, bestas)ś o iva-Ardhan r vara, o andrógino (das raízes ―ardha‖, que é metade, incompleto; e ― vara‖ que é Senhorś significando assim ―a metade feminina junto à metade masculina ou o Senhor que é metade mulher‖)ś iva-Rudra, o uivador; e o iva-Natar ja, rei dos dançarinos (das raízes verbais ―nata‖, que significa dança, e ―r ja‖, rei), no qual o seu estado de

consciência está voltado para a criação e a destruição dos mundos através de uma dança cósmica. É vasta a profusão dos mitos e símbolos na cultura hindu, e um mesmo deus pode desdobrar-se em aspectos distintos, cada um representando uma faceta da divindade.

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O Tantra é uma dessas tradições primitivas, que, na Idade Média, foi revisitada por grandes mestres

como M G A

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A historiografia hindu, de acordo com Feuerstein (2006), é dividida em nove fases. Não farei aqui um mergulho histórico. Para o entendimento da questão que se trata nesta pesquisa é o bastante compreender que houve um período no qual prevaleceram os deuses vêdicos e, logo depois, a tríade hindu e as deusas se tornaram as principais referências religiosas na Índia. Outro fator relevante é que os deuses vêdicos eram diretamente relacionados com os fenômenos naturais, o que imprimia neles um forte caráter cosmológico. Os deuses da tríade já manifestam uma ligação mais estreita com as potencialidades humanas. E assim, obviamente, a religião se aproximou mais das camadas populares, que se identificaram e foram incluídas nos ritos e cerimônias. Outro fator importante abordado por Zimmer (1989) é que os deuses vêdicos eram associados a um determinado setor da natureza (a exemplos de Agni, deus do fogo, ou Varuna, deus do mar) e assim, associados a apenas um elemento, não podendo servir, portanto, de corporificação do Absoluto (Brahman) personificado.

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A FUNDAMENTAÇÃO DO MITO E O SEU ASPECTO MUTÁVEL

Utilizo, neste presente escrito, a palavra ―mito‖ tal como ela é empregada pelos etnólogos e historiadores das religiões: com o sentido de uma revelação. Dado esse contexto, será possível entender a escolha da discussão do mito feita pelos teóricos dessas áreas e não por outros estudiosos dos campos linguístico e/ou literário que dão ao mito um caráter significativo de fábula ou ficção. Assim, Mircea Eliade e Heinrich Zimmer5 serão meus dois

principais interlocutores nesse desvendar de K l , pois assim como John Woodroffe6

, indólogo inglês, eles retomam o mito a partir das escrituras sagradas e esse último, inclusive, fornecendo informações preciosas para o entendimento do pensamento tântrico, pois, além de grande teórico, realizou-se como s dhaka (praticante). A partir desse sentido revelador do mito, é que extraí os elementos para a elaboração de K l , a senhora da dança (agora sim, a ficção), que é norteada pelos princípios que logo abaixo serão discutidos.

―Mito‖ é uma palavra de origem grega e foi Homero o responsável por afastar o conceito de mythos dos seus aspectos religiosos e metafísicos, conferindo-lhe o status de literatura, ao contrário do que aconteceu no mundo hindu, no qual os brâmanes, que difundiram o pensamento mítico, não possuíam pretensões literárias. Os sacerdotes eram poetas por veicularem um conceito poético de revelação, mas suas técnicas literárias necessariamente não se assemelhavam à primazia verbal dos nossos conhecidos helênicos, em suas grandes narrativas ou em suas peças dramáticas da Antiguidade. Nas tradições populares hindus, o mito sempre expressou o seu sacro sentido, priorizando os meios para uma correta conduta humana. A tragédia grega também possuía um especial caráter educativo, contudo ―o

estilo e a visão artística dos gregos surgem, em primeiro lugar, como talento estético‖

(JAEGER, 1995, p.11) e, assim, situam-se acima do solo social ou político, mesmo que a educação seja uma constante parceira das artes no processo de autoformação do homem grego.

Sobrevivendo de forma arcaica e primitiva — pois mantêm os seus traços originais — os mitos hindus ainda são de difícil assimilação no contexto ocidental, já que muitas vezes

5 E isso também graças aos seus minuciosos e delicados estudos dos elementos míticos hindus. Eliade,

um romeno historiador das religiões, que defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Calcutá sobre yoga e para a sua pesquisa utilizou-se do aprendizado do sânscrito para ter acesso a muitas obras que ainda permanecem nessa língua arcaica. Zimmer é um indólogo alemão.

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Estudioso que atuou como juiz do Supremo Tribunal de Calcutá e que se iniciou nos Tantras com os sábios de Bengali. Assina também com o pseudônimo de Arthur Avalon.

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fogem ao conceito platônico e clássico de beleza nos seus mais variados aspectos. Tematicamente, os assuntos abordados também são estranhos aos princípios cristãos

ocidentais. O fato de K l ser celebrada em crematórios ou carregar um colar com crânios

decepados é de difícil aceitação entre nós, ao passo que adotamos com facilidade o símbolo do filho de um deus pregado numa cruz ou de um cordeiro sacrificado. Um dado muito importante para se compreender a evolução do pensamento mítico, segundo Zimmer (1988, p. 206), é o anonimato das escrituras míticas hindus: ele diz que ―não há um indivíduo particular

falando, mas sim um povo‖, numa generalidade válida e reconhecida, um consenso de sábios

que se reuniam nos lares, templos ou grutas, durante horas, dias, anos, para condensar um determinado conhecimento. Portanto, o mito é um alimento sagrado, colhido como as mais refinadas uvas, temperado com as mais preciosas especiarias, e sempre servirá como uma espécie de reintegração entre o homem e o seu momento primevo. É um néctar, uma ambrosia dos tempos modernos ou o soma (bebida sagrada) dos deuses vêdicos.

Em especial, o mito da deusa-mãe é encontrado em várias culturas primitivas. Ela é

K l , Cibele, Pachamama, Diana, a Magna Mater, a matriz material que tudo originou e que

se modifica a cada momento, numa criação e destruição contínuas. Quando uma mulher gera um ser, ela revive o princípio cosmogônico da Criação primeira. Afirma Zimmer:

A criação se faz possível através da submissão dos atores divinos e humanos a papeis que lhe são estranhos, porém impostos por situações sempre novas e surpreendentes. (...) Essa progressão revela a totalidade da forma sublime do estado do Imperecível, que transcende, sobrevive e, além disso, manifesta-se perenemente nos ganhos e perdas da nossa existência fenomenal. (1988, p.209).

O mito, segundo Eliade, é uma realidade que deve ser compreendida pelo seu caráter

exemplar, significativo e principalmente sagrado. O mito de K l , como outros oriundos de

sociedades arcaicas e tradicionais, é reatualizado, a cada dia, nos ritos e cerimônias à deusa e continua sendo uma realidade cultural complexa, abordada e reinterpretada através de muitas

perspectivas, todas elas relacionadas entre si, contando uma ―história sagrada, relatando um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio‖ (ELIADE, 2007, p. 10). O mito revela, portanto, o sagrado contido no seu cerne e que irrompe no mundo, tomando diversas formas, expondo-se através de ritos como o trabalho, o amor, a sabedoria e principalmente o nascimento e a morte. Para o homem arcaico, o que aconteceu

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antes da origem (ab origine) pode ser repetido através do poder dos ritos, pois, ao rememorar, reatualizando e ritualizando os mitos, os indivíduos seriam capazes de repetir o que os deuses ou os ancestrais fizeram ab origine. Isso geralmente se dava através de uma celebração e é importante lembrar que o ato teatral não prescindiu do sagrado em sua origem, seja na dança

de iva ou nos ditirambos de Dioniso7

.

Conhecer o mito é, pois, entender como se dá a origem das coisas8 e poder reencantá-las quando elas, por ventura, se esquivarem ou desaparecerem. Quando o mito é celebrado, ele é ao mesmo tempo reatualizado, porque ao narrar, recitar ou encenar o mito de origem de um determinado objeto ou deus, o sujeito deixa-se impregnar pela atmosfera sagrada na qual se sucederam aqueles eventos e se reintegra, dessa forma, àquele tempo fabuloso, sai de um tempo profano, cronológico, para ingressar num tempo qualitativamente diferente, um tempo sagrado, primordial e indefinidamente recuperável. A compreensão do sagrado, aqui, nesta pesquisa, está em total acordo com a perspectiva tântrica do encontro criativo da energia com a consciência, divino par que dança e atua o tempo inteiro dentro de nós.

A proposta de abordagem dramatúrgica do mito de K l através do Yoga segue aqui um

caminho que não consiste apenas em delinear um conhecimento teórico, exterior ou abstrato, mas fazê-lo ser vivido ritualmente, tratando o mito de forma artística e cerimonial, efetuando os rituais e práticas aos quais ele serve de justificação, como será esclarecido no terceiro capítulo deste estudo. Sabe-se que a arte teatral já nos posiciona num lugar de destaque ao se aproximar do mito, pois nos palcos ou na escrita ficcional, o que experimentamos é num mundo transfigurado. Aqui, essa transfiguração se soma ao caráter sagrado, que o mito introduz e o teatro aceita, porque também é da natureza de sua origem. Deixa-se o tempo cronológico e passa-se ao tempo primordial, onde o evento teve lugar pela primeira vez. No teatro, também se busca fazer com que o fenômeno cênico seja único e que o público o sinta como se ele se originasse naquele instante. Essa ligação do mito com a origem através da reiteração dos rituais é o que possibilita reviver esse outro tempo significativo e exemplar na revelação do homem e do mundo. Toda história mítica remonta à origem de alguma coisa.

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Alain Danielou, em seu livro Shiva e Dioniso a religião da natureza e do Eros, traça um paralelo entre os dois deuses hindu e grego. São os patronos do teatro oriental e ocidental, respectivamente. Aqui, neste projeto, não entrarei nesse mérito. Vale, portanto, consultar a fonte, para um maior detalhamento no assunto.

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Um aparte para a lembrança de uma bela frase de uma canção da música popular brasileira Amor de índio, R B B G T , assim como algumas outras frases de canções populares, farão parte do texto dramatúrgico. Este dado será discutido no trecho sobre mantras no terceiro capítulo.

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Dessa forma, ela recria um propósito cosmogônico e assim retorna à própria cosmogonia. Cada ato mítico é, portanto, uma tentativa de um microcosmo vivificar o macrocosmo, o momento maior, o da Origem do Mundo.

Os mitos que envolvem iva e K l sempre estão inseridos num contexto cosmogônico.

Alguns textos relacionados com a cultura tântrica consideram K l como a fundadora do mundo e como idêntica a Brahman, o Ser Supremo, a realidade primeira e última. As diversas escrituras atribuem-lhe múltiplos e antagônicos aspectos, atitudes e atividades, ora conferindo-lhe características de Criadora dos Mundos — dotada de peculiaridades maternais e benévolas — ora de Destruidora, como a deusa terrível, com rudimentos hediondos. Do

mesmo modo acontece com iva, cuja etimologia remete ao conceito do ser ―benigno‖ e, assim como K l , se transfigura numa deidade da destruição e da morte. Essa ambivalência do

sagrado é subjacente a muitas outras tradições religiosas.

Ilustração 02 — Casal Maithuna ( iva e akti), num Ilustração 03 — Li ga e yoni. abraço cósmico. Pedra. Dinastia Ga g , séc. 13, Templo de Angkor Vat, Camboja. (Índia). The Metropolitan Museum of Art, EUA. Foto: National Geografic.

O deus iva também é adorado como li ga (o falo, o princípio criador masculino) e K l

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metamorfosear no li ga e é dessa forma que ele é cultuado nos antigos símbolos de pedra do período neolítico, ancorados numa base, a yoni, que representava o receptáculo e no qual os adoradores enfeitavam com leite (ou leite e mel ou ainda com fluidos seminais). A origem etimológica do yang e do yin chineses pertencem à mesma raiz, de procedência sânscrita, só que, ampliando a leitura simbólica chinesa, aqui ambos os elementos são aspectos criadores, porque procriam e mantêm a vida no Universo, o que remete à primeira bifurcação da origem cosmogônica, o mundo nascido dessa energia sexual, como uma espécie de orgasmo divino. Nesse contexto, o iva-Pur a diz que o li ga de iva foi amaldiçoado por sábios, e iria cair sobre a terra, queimando-a como fogo. K l toma a forma de yoni e acalma-o, segurando o li ga com sua yoni, harmonizando o mundo e evitando, nesse momento, a sua destruição. O li ga é pétreo, imutável, e a yoni é o recipiente aquoso e mutável. Na filosofia do S khya, que também ajudou a fundamentar o Yoga, há uma divisão entre Puru a, principio espiritual masculino inativo, que apenas testemunha, e Prak ti, princípio ativo feminino que origina a matéria e todas as manifestações.

Portanto, K l possui essa natureza que transcende e abarca todas as polaridades

presentes no Universo, ao evidenciar o seu aspecto mutável e remover o conceito deísta de uma divindade estática ou permanente; mas apreende a ideia de que o fluxo é a ordem na qual tudo se origina, expande e logo se decompõe e desaparece ou é destruído e reabsorvido, numa visão dinâmica da vida e da morte — essas ―irmãs gêmeas, dançando juntas pelo mundo

imenso‖ 9— que vai além de uma suposta negatividade ou positividade. Desta forma, quando

a personagem Um se dissolve, surge a personagem P rvat , que, por sua vez, é a responsável pelo aparecimento da personagem Durg , e assim por diante. A morte é o princípio de outra vida e não um fim, pensamento também compreendido à luz dos conceitos norteadores do Hinduísmo10. Apesar dessa vasta e prolífica mitologia que desdobra o deus em variados

componentes e ramificações, ―a filosofia e a ortodoxia hindus são fundamentalmente monistas e monoteístas‖ (ZIMMER, 1989, p. 113). Os aspectos que, na visão ocidental, parecem tão

contraditórios e opostos como Criação e Destruição, são variantes do fenômeno divino, que

deve compreender um todo, incluindo aí o início e o fim. Daí, os recorrentes cultos a K l nos

9 Verso do poema 58 do Gitañjali de Tagore (São Paulo: Martin Claret, 2006.)

10 A saber: os conceitos de karma e dharma. Eliade (2007, p. 60) esclarece que os próprios deuses não

parecem ser criadores; eles são instrumentos através dos quais se opera o processo cósmico onde o Universo não tem um Fim, mas U O F essa forma, só se apresenta com sentido, no que diz respeito à condição humana, já que o homem tem o poder (através da iluminação pelo Yoga que leva à libertação, por exemplo) de parar o processo de transmigração.

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crematórios, onde se cultua o fim de uma jornada e o começo de outra, movimento gerador também da vida. A compreensão dessa unidade — e não de sua separação — é o principio norteador da mais fina sabedoria hindu: a morte faz parte da dança da vida que nunca cessa, pois sempre há algo manifestado e algo não manifestado atuando num só corpo, duas

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