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Kretchiu Ará

Kretchiú Ywá

Djatakuá

Karai

Karai Nhe’ery

Karai Tataendy

Karai Iapuá

Tupã

-- Djekupé

Djatchuká Riapuí

Para Poty

Para Djatchiuká

Ara Poty

-- Djekupé

Werá Tupã

Werá Mirim

Tupã Guyra

Nhamandú ou Kuaray

Djerá

Papadju

Poty

Mbodjeré

Endyju

Idju

Tataendy

Mbodjeré

Djakairá

Ywá

Tatatchi

Reté

Atatchi

Reté

3 Odji Potá – A perda da humanidade: Transformação, parentesco e afinidade Odji potá118. Termo assustador e encantador para um Guarani. É o termo

que define alguns processos de transformação que podem atingir um ser humano. A humanidade é estado instável e provisório para um Guarani, e o odji potá é uma forma de abandoná-la. É encantador porque é o sinônimo de paixão aguda e irracional. Complexificação interessante da imagem da paixão romântica, as histórias de odji potá têm um ‘quê’ shakespeariano, o drama de uma paixão incontrolável entre seres de mundos distintos, de inimigos. O final é algo trágico, como um “Romeu e Julieta”. Envolve morte, a paixão apenas se realiza se alguém se entregar ao outro. Mas, o final feliz, que é ir morar com a sogra em outro mundo119 não satisfaz a maioria dos transformados míticos, que

sentem falta dos parentes e querem voltar para seu mundo de origem. Ou, em outra possibilidade de final feliz neste tipo de mito, o apaixonado é trazido à razão, salvo por um karai de grande poder, e volta para seus parentes antes que a transformação definitiva se efetive. Ou ainda, o transformado enfrenta uma longa estrada na tentativa de retornar para sua família120.

118 A transformação horizontal representada pelo odji potá é bastante referida na literatura Guarani. Schaden (1974) registra entre Guarani das aldeias de Bananal e Araribá de SP (nas décadas de 1940 e 50) “odjepotá” como “encantamento sexual” desencadeado por contágios com espíritos em forma de animais, animais em forma de humanos. Associa as medidas que ele chama de “resguardo” como prevenção nos momentos de maior risco: O parto, o pós-parto, a menstruação e a puberdade (Schaden, 1974:79-88). Cadogan ([1959]1992) coleta mitos sobre “ojepotã” entre os Mbyá do Paraguai. Em um dos exemplos, um rapaz humano casa-se com uma moça kotchi (porco-do-mato) Cadogan [1959] 1992:245). Em outro, uma mulher namora um espírito (Cadogan[1959]1992:257). Santana de Oliveira (2004) reproduz a explicação de um de seus interlocutores da aldeia de Mbiguaçú/SC: “O odjepotá ocorre quando vai ao mato ou ao rio e é seduzido por um homem ou mulher muito bonito, que na verdade é um bicho. Ao envolver-se com o bicho”, a pessoa “torna-se o bicho” Santana de Oliveira (2004:46).

119 No mito da moça que se casa com anta (registrado nas páginas seguintes), uma moça humana é levada por seu marido anta para viver na terra da sogra e nunca mais volta para seus parentes.

120 Em Cadogan (1992) há um mito de um jovem Mbyá que é levado pela família de sua nova esposa, que ele encontra na mata, como uma linda mulher, que na realidade era uma kotchi

A mais intensa e irreversível forma de transformação, a que envolve intercursos sexuais com seres não humanos, possível na vida real, não é tão romântica como nos mitos. A vítima de um odji potá por intercurso sexual sofre dores físicas e espirituais horrendas, quando a doença não for fulminante. O tratamento pode ser longo, mas se o karai não for muito forte, a vítima fatalmente morrerá depois de meses, ou mesmo anos de sofrimento. Os que se salvam é porque conseguiram um novo nhe’e, portanto, foram curados pelos deuses. Para mulheres, as maiores vítimas, a cura pode vir acompanhada de uma gravidez humana121.

Pode se contrair odji potá por vários meios. A ingestão de substâncias é uma das formas mais comuns de contágio com uma essência de outra natureza, de uma natureza não humana, que determina uma transformação gradual. Como, na visão Guarani, nosso corpo é diariamente constituído pelo alimento que ingerimos, o que se come, e com quem, vai se transformando no que se é. Existe a comida própria para os Guarani, para os djuruá, para os cachorros, para as aves, etc. Alimentar-se com a comida do Outro, com o Outro, transforma em Outro. E para além de transformação processual causada pela dieta alimentar, há algumas substâncias que ao serem ingeridas desencadeiam transformação imediata. O sangue é uma dessas substâncias.

A linguagem também pressupõe intercâmbio entre seres de mundos distintos. A comunicação, que se dá não apenas através da fala e da audição, mas também da visão, é uma das formas usadas pelos espíritos predadores mais poderosos para capturar nhe’e de humanos. Ver, ouvir ou falar com o Outro, dependendo do poder de predação que ele possui, pode dar início ao processo de transformação.

(porca-do-mato). Ele não se acostuma com o tipo de vida e nem com a comida do povo de sua esposa e faz uma longa viagem na tentativa de voltar para sua terra (Cadogan, 1992:245-53) 121 Há histórias que narram gravidezes de filhos não humanos produtos de um odji potá.

Aguydje122 é o antônimo simétrico de odji potá. Termo sagrado,

igualmente assustador e encantador, envolve uma transformação vertical, de ascensão aos planos celestes, que perpetua o humano neutralizando suas imperfeições. É a superação da existência limitada pelo corpo humano, na medida em que o que se transforma é o nhe’e, que passa a viajar pelos mundos sem precisar se livrar do corpo humano ou passar pela morte. É uma troca de “roupa” sofisticada, para pouquíssimos merecedores, na qual se preserva a antropomorfia, mas se transforma em um ser imperecível, insensível às mazelas e fraquezas da existência humana, como a fome, a doença, a dor e a morte.

Pensemos um pouco sobre estes dois tipos de potencialidades transformáticas dos humanos: Transcender verticalmente, ao plano divino, através da purificação, do ascetismo e de rituais xamânicos de comunicação com deuses ou transcender horizontalmente, ao plano e à perspectiva da corporalidade animal, através do contágio ou consubstancialização, acionada pela ingestão de alimentos, pela troca de substâncias corpóreas dadas pelo intercurso sexual, etc. e que se efetiva pelo compartilhamento da linguagem e da sociabilidade do animal ou do ser em que se transforma.

O primeiro tipo trata do aspecto de pensamento Guarani que impressionou aos europeus, desse os contatos com grupos Guarani ancestrais: A divinização do corpo humano. O sistema cosmológico Guarani pressupõe a possibilidade do nhé’e influir tão intensamente na composição de um nhandevakuery, a ponto de sublimar o corpo humano e transcendê-lo a outros planos cósmicos, sem passar pela morte, ou sem passar pela putrefação. Isso

122 Ao contrário de odji potá, aguydje, a transformação vertical, foi bastante explorada analiticamente. Aparece em Montoya ([1639] 1876), associada à idéia cristã de ascensão ao paraíso e é referida por vários autores, que a associam com a “busca da terra sem mal”, como Nimuendaju ([1914] 1987), Cadogan ([1959] 1992), Clastres, H. (1978), Clastres, P. (1978 e 1990), entre outros.

se dá através de intensos rituais de sublimação do corpo humano, que obtém leveza e pureza. As caminhadas em busca de yvy mara ey (terra sem mal), djeroky e djerodjy (as danças), as dietas alimentares, a ingestão de substâncias sagradas, o abandono de tudo que é material e está ligado aos prazeres da carne são meios de se atingir a leveza e a pureza necessária ao corpo humano para se transformar num ser imortal.

Tal transição é a tarefa mais árdua a que pode se propor um karai. E apenas pode acontecer se houver o auxílio de outro karai. É necessário um grande poder para a superação do plano imperfeito em que vivemos. Atingir o estado de perfeição humana necessária para tal transformação exige conjunturas difíceis de se reunir atualmente. A impossibilidade de manter a dieta alimentar necessária para preparar o corpo para tal transformação e manter as condutas sociais que impedem consubstancializações poluidoras, por exemplo, são algumas das maiores dificuldades. Segundo Alcindo, “o Guarani hoje está muito castiçado”, “misturado com o djuruá (“branco”) e o pongue” (Kaingang). Segundo ele, “se uma pessoa da família já está morando com um pongue, todos tornam-se um pouco pongue. Estes dificultadores que o cotidiano impõe aos karaikuery exigem deles esforço redobrado em “seu trabalho”.

Para se atingir a aguydje, um karai precisa rezar dia e noite, acompanhado por sua família extensa, sempre que possível. O karai e sua família devem comer apenas comida da roça: avati eté (milho), kumandá (feijão), mandio (mandioca) e andai (abóbora). Não deve comer carne de animais domesticados, como galinhas ou porcos, por exemplo. Na mata, deve caçar apenas o kotchi (porco de mato), única carne permitida, entre muitas outras prescrições e restrições.

Apesar do desejo de ver seus netos trabalhando nas roças de milho e feijão e vivendo da caça na mata, Alcindo e Rosa reconhecem que hoje é

impossível a uma criança ou um adulto alimentar-se exclusivamente com estes produtos. A área que eles ocupam é muito pequena (59 ha.), as cidades avançam sobre as aldeias, expulsando e desterrando as famílias. A contaminação com alimentos dos “brancos” é inevitável, mas deve ser controlada e combatida. Outro elemento de contaminação, a língua do djuruá deve ser controlada. Uma vez que não há como impedir as crianças de aprenderem o português, pois elas precisarão entender coisas do “mundo do branco” para garantir alguns direitos fundamentais como a posse de suas terras, por exemplo, Alcindo e Rosa propõem que a escola deve servir como um duplo da opÿ, onde as crianças devem aprender coisas do mundo de djuruakuery, mas “lembrar como era o mundo no tempo de seus antigos avós”. A língua portuguesa deve ser ferramental para garantir condições de manter o orerekó (modo de ser Guarani).

As conjunturas do mundo atual exigem muito esforço para manter-se “puro”, em condição de aguydje, segundo me disse o jovem Werá Tupã, Leonardo da Silva Gonçalves (que participou da caminhada liderada pela cunhá karai Luiza, descrita no primeiro capítulo). Tanto esforço se deve ao fato de que “este mundo já se acabou. Nós ainda não podemos perceber isto porque estamos vivendo aqui agora. Mas os deuses, os seres que olham para cá de outros mundos já conseguem ver isso”. As coisas deixadas em seu curso natural caminham para a destruição, por isso, é preciso que o ser humano reze, cante, dance, caminhe, reproduza as condutas criadoras dos deuses. Este mundo já surgiu condenado à destruição, por isso, sua história é um ciclo que oscila entre a reconstrução e a destruição. As ações humanas indicam em que ponto desta espiral do tempo o nhe’e que representa a pessoa vai construir seu lugar de pertencimento.

Segundo Leonardo Werá Tupã, os deuses ainda vêm pessoalmente, ou enviam seus filhos, para buscar alguém “sem morrer”, “com o mesmo corpo”,

quando julgam que algum karai e sua família merecem ser transformados em imortais. Contudo, é muito difícil atingir o estado necessário para fazer a passagem por este meio. Ele narrou a história de um velho karai que foi visitado por um dos filhos de Tupãrueté (o “casal maior” dos deuses que habitam tupãretã).

Numa aldeia distante, no meio do mata viveu um karai muito poderoso. Ele rezava todos os dias e toda a sua aldeia vivia de acordo com o orerekó. Ele ostentava sempre seu popyguá. Usava tetymakuaá de suas bisnetas, cantava e dançava todas as noites na opÿ. Os nossos avós que vivem no mundo de Tupã tiveram pena dele e mandaram um de seus filhos caçulas vir a yvy vaí visitá-lo e avaliar se ele estava pronto para ir viver com eles.

Tupãray veio a este mundo vestido como um índio pobre, faminto, descalço e com a roupa rasgada. Ele trazia um petynguá e um popyguá como o do velho karai. Ao chegar na entrada da aldeia ele fez soar seu popyguá e seus parentes vieram recebe-lo, reconhecendo pelo som que chegava um parente, pois portava um popyguá. Todos o trataram bem, não se importaram com seu aspecto. Ele foi levado para a opÿ, uma vez que o visitante portava os instrumentos de karai. Lá foi recebido pelo velho karai que lhe ofereceu mbodjapé e os alimentos que se oferecem a quem está muitos dias na estrada. Depois foram rezar e todos rezaram com muita força. No dia seguinte, rezaram novamente e Tupãray decidiu que deveria levar o velho karai se ele passasse no último teste. Ele chamou o velho karai e lhe disse: Eu posso leva-lo para tupãretã, já chegou sua hora de ir. Para isso, você precisa vir comigo agora, pegar todo o alimento que tiver aqui na sua aldeia, me entregar e partir comigo. O velho karai acreditou em Tupãray, mas não quis dar os alimentos de seus filhos, com pena deles passarem fome. Tupãray, então, partiu sem o velho.

Leonardo Werá Tupã da Silva Gonçalves, Morro dos Cavalos, 2005.

Leonardo contou esta história em meio a uma conversa sobre os deuses e seus poderes. Eu lhe pedi uma interpretação do porquê de Tupãray não ter levado o velho karai. Ele disse não saber ao certo. “Há muita coisa que a gente nunca vai saber”. Talvez tenha sido porque o karai “não acreditou que Tupãray não deixaria seus filhos passarem fome”, ou então “porque não se pode ser akãtei (mesquinho) com a comida”.

Todos os elementos conjunturais que impedem atingir aguydje expõem a humanidade à inúmeros espíritos predadores, que percebem a fraqueza e o perecimento dos espíritos que vivem aqui. Eles “são como urubus, nos olham e sentem nosso cheiro como se fosse carniça”.

Esta noção de predação desvenda o segundo tipo de potencialidade transformática Guarani: Odji potá. Estas transformações, “trocas de roupa”, ou trocas de corpo, estão relacionadas à um tipo de comunicação ou intercâmbio com seres não-humanos que habitam este plano ou se movimentam pelos diferentes mundos.

A perda da humanidade por odji potá se dá em dois estágios: o de contaminação e o de transformação irreversível. Na fase da contaminação acontece a consubstancialização, onde se compartilha alimentos, fluídos corporais, palavras, etc. Namorar pessoas estrangeiras ou desconhecidas por todos, falar com gente que anda na mata ou na estrada, olhar fixamente para sombras ou vultos, por exemplo, podem dar início ao processo de transformação. Não é bom sinal sonhar que se está conversando com gente que já morreu e pior é sonhar que se come com eles. Não obstante, fatal é sonhar que faz sexo com alguém que já morreu (comum nos casos de viuvez recente).

Trocar substâncias corpóreas, ingerir os alimentos do outro, ver, ouvir ou falar com um não humano como se falasse a um humano dão início à

transformação. No caso Juruna, exposto por Lima, por exemplo, a fala é um elemento de comunhão e de sociabilidade que liga diferentes mundos. Ao falar a linguagem do outro, contamina-se com sua essência, transformando-se no outro (Lima, 1996). A visão do outro também estabelece contágio: ver é como ser visto e falar é como ser ouvido ou como ouvir o outro.

Homens e mulheres podem ser “encantados” por seres não humanos e seduzidos a um intercurso desta natureza. As mulheres são mais susceptíveis por sua natureza de produtoras de corpos. Quando menstruadas123 são muito

atraentes para seres ou espíritos poderosos. E neste período, o seu sangue a conecta com sua essência mais terrena, tornando-a vulnerável ao odji potá. O ser que deseja predar o espírito de uma mulher menstruada aparece a ela “como um homem do jeito que ela sempre sonhou”, me explicou Adriana Moreira. O odji potá nubla a consciência da vítima, altera sua visão; e uma vez contaminada pela consubstancialização com este ser, ela passa a se transformar no que ele é, assumindo o seu ponto de vista, abandonando a perspectiva e a sociabilidade humana. Este intercurso evoca idéias de desejo extremo ou “paixão”, que em muitos casos é considerada uma doença, e é passível de cura através de intervenção xamânica. Numa das minhas conversas com mulheres sobre odji potá, me foi narrado por Fátima, filha de Rosa e Alcindo, a seguinte história de transformação:

123 A menstruação em si aparece em alguns mitos como o produto do intercurso sexual entre as mulheres e Djatchi, no tempo em que os irmãos Kuaray e Djatchi moravam nesta terra. Rosa contou-me uma história que sua avó sempre lhe contava quando era moça: Contrariado por ter que partir deste mundo e aqui deixar suas namoradas humanas, Djatchi exige ao irmão e aos outros deuses, seus parentes que chamavam sua presença, que em troca de sua partida, todas as mulheres deveriam ser suas esposas, antes de terem seu primeiro marido. Daquele dia até hoje, as mulheres menstruam porque Djatchi “mexe” com as moças quando elas estão se tornando mulher. O sangramento mensal que as mulheres têm é um reflexo, um sinal da ação sobrenatural de Djatchi, o “primeiro marido”das mulheres. Djatchi ire é um dos termos para designar a menstruação. Quando uma mulher queixa-se de dores, fica brava, ou recusa ter relações sexuais, seu marido zomba, rindo e comentando em público que ela está djatchi ire (“na lua”) e que seu primeiro marido voltou para ela.

Numa aldeia havia uma jovem de quinze anos que não tinha com quem se casar porque todos os homens da aldeia eram seus irmãos. Então, quando ela foi lavar roupa no rio, viu uma anta se aproximar. A anta era diferente das outras. A menina gostou de anta e a anta foi se aproximando cada vez mais, fazendo coisas para agradar a menina. Então, todos os dias quando a menina ia lavar roupa, anta estava lá e virou o namorado da menina. Quando iam se encontrar, da pele de anta saia um homem muito bonito. A menina, depois de algum tempo, começou a ficar diferente. Um dia, brigando com seu irmão, ela arranhou o braço dele e ele viu que a marca das unhas da irmã eram como as de unha de anta. Ele contou a seu pai, que era Karai. Então, o pai foi até uma árvore bem alta, onde ficava uma colméia de abelhas em forma de panela. Ele subiu com a filha até o alto e pôs a mão dela dentro da colméia para as abelhas picarem. O veneno das abelhas cortou o encantamento de anta. Porém, a menina estava muito apaixonada e voltou para o rio. Lá namorou de novo com anta,que levou a menina para conhecer sua sogra no mundo de anta. A menina nunca mais voltou.

Fátima Moreira, Mbiguaçú, 2002.

Neste exemplo de transformação houve intervenção xamânica, a possibilidade de neutralização do odji potá e interrupção da transformação. Contudo, o olhar da menina já estava irremediavelmente mudado, ela não via mais o mundo dos humanos como desejável e aceitou viver no mundo de seu amante. Ela foi “conhecer sua sogra”. Sua família passaria a ser a família afim, a família anta. O parentesco entre humanos e não humanos grifa o papel da alteridade como aspecto fundamental do parentesco. A residência do novo casal também indica quem vai se transformar em quem.

Em outros mitos, encontramos a alteridade dentro de uma relação entre humanos e não humanos no momento da dissolução de um desses casamentos.

A afinidade aparece como mote central em outros mitos. Vejamos dois deles: o takuaidjá, espírito do bambuzal que namora uma humana e o casamento entre o filho do karai com a mulher kotchi, nos quais jovens humanos são seduzidos a estabelecerem casamentos com não-humanos.

Os intercursos sexuais entre humanos e não humanos estão presentes nos mitos desde o tempo de criação deste mundo. A mãe de Kuaray e Djatchi era uma humana que namora um ser não humano, um deus. Kuarayru vem ao mundo na forma de uma ururkurea’i (coruja), mas copula com Nhandetchi como humano124. Mensagem antológica dos problemas da afinidade entre cônjuges, o

casal apaixonado posteriormente se separa e a mulher enfrenta uma saga inglória em busca da terra de seu marido.

O transformacionismo também tem outros aspectos. Manifesta-se, por exemplo, em casos de predação do nhe’e. As crianças são as vítimas preferenciais neste caso. O mito abaixo, no qual um menino estava se transformando em “bicho do mato” é muito narrado às crianças para alertar sobre os perigos de se brincar fora de casa no horário em que está escurecendo. Depois da chegada da luz elétrica em algumas aldeias, as crianças passaram a ter mais autonomia à noite, o que não acontece em aldeias sem eletricidade, quando todos se recolhem às suas casas assim que escurece. A

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