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CAPÍTULO II: “O romance como epopeia burguesa” (1935)

2.2. Karl Marx e Friedrich Engels: contribuições importantes para a literatura

Para Lukács, a resposta para a formulação de uma teoria científica acerca do romance apresentava-se nos escritos de Engels e Karl Marx sobre arte, e é a partir da incorporação do legado desses autores que a teoria do romance lukacsiana da década de 30 superará e se distinguirá d’ “A Teoria do Romance” do jovem Lukács.

A explicação materialista, dada por Marx, para a desigualdade do desenvolvimento da arte em relação ao progresso material e para a hostilidade do modo capitalista de produção à arte e à poesia contém a chave para se entender a desigualdade do desenvolvimento de algumas formas e gêneros de poesia (LUKÁCS, 1935, p.93).52

Marx e Engels nunca se detiveram na redação de uma obra sistemática acerca da literatura. Lukács teve acesso, apenas, à cartas, anotações e alguns poucos trabalhos destes autores, tais como artigos acerca de assuntos diversos. Marx entendia a história como uma ciência unitária que compreende os mais diversos campos, tal qual a evolução do homem, da natureza e do pensamento. Advém deste aspecto que, nem a ciência, nem a arte, possuem uma história autônoma. Ele foi categórico ao afirmar que só se pode obter uma adequada compreensão do desenvolvimento e das mutações - tanto do campo da arte, quanto do campo da ciência, como dos mais diversos campos - se há o reconhecimento de que a evolução dessas áreas é determinada pelo curso da totalidade da história da produção social.

Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do desenvolvimento dos campos particulares da atividade humana [...] negam apenas que seja possível compreender o desenvolvimento da ciência ou da arte com base exclusivamente, ou mesmo principalmente, em suas conexões imanentes. Tais conexões imanentes existem, sem dúvida, na realidade objetiva, mas só como momentos do tecido histórico, como momentos do conjunto do desenvolvimento histórico, no interior do qual, através do intrincado complexo de interações, o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das forças sociais produtivas) assume o papel principal (LUKÁCS, Introdução, 2010, p.12).

52 Lukács ressalta as ideias de Marx contidas em “Introdução à crítica da economia política” e nas “Teorias da mais-

valia”, bem como as ideias de Engels no capítulo que versa sobre a desagregação da sociedade tribal em “A origem da família, da propriedade privada e do estado”.

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Entendida essa questão, é preciso afirmar que “a existência e a essência, a gênese e a eficácia da literatura só podem ser compreendidas e explicadas no quadro histórico geral de todo o sistema” (LUKÁCS, Introdução, 2010, p.12).

Lukács afirma que as questões específicas do campo da literatura, tais como seu surgimento, seu desenvolvimento etc., só podem ser compreendidos pela ótica do materialismo histórico.

E o materialismo histórico acentua com particular vigor o fato de que, num processo tão multiforme e estratificado como o é a evolução da sociedade, o processo total do desenvolvimento histórico-social só se concretiza em qualquer dos seus momentos como uma intrínseca trama de interações (LUKÁCS, 2010, p.13).

Advém do materialismo histórico, a função essencial do homem no desenvolvimento histórico e na função criadora. O homem, através do trabalho, cria a si mesmo. Esta visão de Marx também se mostra presente na concepção que o autor possui da estética.

Marx diz que é a música que desperta o senso musical do homem e que a atividade espiritual de cada indivíduo dispõe de certa autonomia na criação de um sentido humano que possa desfrutar de toda a riqueza da natureza e essência humana. Sendo assim, Marx cita o exemplo da impossibilidade do comerciante de pedras, de ver a beleza e a natureza de cada pedra preciosa. O mercador só observa seu valor comercial. Logo, o homem deve educar seus sentidos para poder contemplar todas as belezas naturais e criações da humanidade.

Marx e Engels também insistem que não é necessário um desenvolvimento econômico acentuado para que a literatura floresça. Essa visão não se aplica somente à literatura, mas a todo o campo da arte e das ideologias. Como exemplo, citamos a filosofia alemã do século XIX, que nasce em uma Alemanha bastante atrasada economicamente:

É claro que, no quadro das leis que dizem respeito à sociedade em seu conjunto, o desenvolvimento de cada esfera assume o seu caráter particular, com suas leis próprias (LUKÁCS, 2010, p.16).

Essa concepção de Marx do desenvolvimento desigual impossibilita qualquer manipulação de dados resultante de paralelismos mecânicos. Essa questão é absolutamente importante para a literatura, pois impele o historiador deste campo a considerar o desenvolvimento desigual dos gêneros ao longo do processo histórico dos mais distintos países53.

53 É bastante notável a compreensão do desenvolvimento desigual da literatura na periodização do romance que

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Lukács também aponta em Marx e em Engels duas exigências fundamentais que ambos faziam aos escritores de sua época. A primeira delas consistia numa tomada categórica de posição dos autores acerca da desumanização advinda do sistema de produção capitalista. A segunda exigência consistia na figuração do homem em sua essência e totalidade pela obra de arte. Este fator reforça o reflexo54 da realidade desfetichizado na obra de arte. Acerca do trato dessas questões colocadas por Marx e Engels, falaremos com mais propriedade um pouco mais adiante, na seção 3.4.4.“O novo realismo e a dissolução da forma do romance”. Demonstraremos neste momento do trabalho como Lukács se apropriou de elementos da teoria de Marx para a construção da teoria realista de representação do mundo pela arte.

Outro ponto importante das ideias estéticas de Marx e Engels é a exigência do típico, sobre a qual faremos uma exposição detalhada em 3.3.“Para uma teoria lukacsiana acerca do romance”.

Fica bastante evidente em Marx e Engels a indissociabilidade e a influência que o sistema capitalista de produção gera no fenômeno artístico literário independente da subjetividade dos escritores - o capitalismo, como sistema de produção de grau econômico mais alto, não propicia à arte um terreno fértil. Lukács também se apropria dessa constatação de Marx em seus escritos de 30, trazendo essa questão de um modo muito mais concreto do que o fazia em seus escritos de juventude, pois neste momento da trajetória intelectual do autor, as categorias com as quais ele trabalha são mais mediadas, diferentemente do que ocorria com escritos como “A Teoria do Romance”. Neste, as categorias sofriam, como vimos, de uma forte abstração, devido entre outros aspectos, ao entendimento ainda não apropriado do filósofo acerca da importância das mediações e do movimento dialético.

A partir das considerações lukacsianas, realizadas até o presente momento, sobre as teorias da estética clássica em torno do romance, sobre as observações hegelianas acerca do gênero e sobre os apontamentos relativos a importância de Engels e Marx para uma teoria sólida sobre o romance, Lukács construirá uma argumentação própria, no sentido de definir o que seria o gênero.

54 Uma das teses do materialismo dialético considera o reflexo como uma tomada de consciência do mundo exterior

que existe independente das sensações, representações e consciência do homem. Esta teoria do reflexo é de extrema importância para a constituição da teoria da defesa do realismo na arte, formulada ainda timidamente em “O romance como epopeia burguesa”.

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