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CAPITULO 1: A noção de ciência em Lacan

1.4 Kojève, Koyrè e Canguilhem

Após o encontro com a epopeia surrealista, Lacan passou a conviver com Alexandre Koyrè, Alexandre Kojève, entre outros filósofos, o que lhe permitiu iniciar-se numa modernidade filosófica que passava pela leitura de Husserl, Nietzsche, Hegel e Heiddeger. Segundo Elizabeth Roudinesco, foi esta incursão na filosofia que impediu que a obra de Lacan “tivesse permanecido para sempre prisioneira do saber psiquiátrico ou de uma apreensão acadêmica dos conceitos freudianos”111.

A aproximação de Lacan com a filosofia já foi tratada por diferentes autores, nos mais diversos artigos. Destaca-se a influência da leitura de Hegel feita por Kojève, cujo curso Lacan seguiu entre 1933 e 1939112, e se constitui até hoje uma referência fundamental aos lacanianos.

“O homem é consciência de si. Ele é consciente de si, consciente de sua realidade e de sua dignidade é isto que o difere essencialmente do animal, que não ultrapassa o simples sentimento de si. O homem toma consciência de si ao falar – Eu – pela primeira vez. Compreender o homem através da compreensão de sua origem é, então, compreender a origem do Eu revelado pela palavra”113.

110 Ibid.

111 Roudinesco, 102.

112 Kojève, Introduction à la Lecture de Hegel

– Leçons sur la Phénoménologie de l’Esprit Professées de 1933 a 1939 à l’École des Hautes Études, Réunies et Publiées par Raymond Queneau.

Além do Kojève, outro Alexandre – Koyrè – serviu de guia114 para Lacan

formular sua concepção de ciência, tal qual ele apresenta com bastante clareza neste trecho de Função e Campo:

“Praticantes da função simbólica, é espantoso que nos esquivemos de aprofundá-la a ponto de desconhecer que é ela que nos situa no cerne do movimento que instaura uma nova ordem das ciências, com um novo questionamento da antropologia. Essa nova ordem significa um retorno a uma noção de ciência verdadeira, que já tem seus títulos inscritos numa tradição que parte do Teeteto115. Essa noção se

degradou como se sabe na inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestigio de um desenvolvimento especializado dos experimentos. Mas hoje em dia, vindo as ciências conjeturais resgatar a noção da ciência de sempre, elas nos obrigam a rever a classificação das ciências que herdamos do século XIX, num sentido que os espíritos mais lúcidos denotam claramente”116.

Mesmo tendo estudado e comentado alguns filósofos com alguma profundidade, Lacan desde sua posição como psicanalista coloca-se ao lado da antifilosofia, como sugere Alain Badiou em diferentes contextos. Para ele, Lacan dá a Platão o peso da origem, como vimos na citação acima sobre o Teeteto. Seus estudos basearam-se na leitura de Les Dialogues de Platon- struture et Méthode Dialectique, de Victor Goldschmidt, publicado em 1947. Está presente também em suas leituras de Platão a importante influência do livro Introduction à Lecture de Platon Suivi des Entretiens sur Descartes, de Alexandre Koyrè.

A importância de Koyrè na leitura lacaniana de ciência está amplamente divulgada pelo próprio Lacan em inúmeras citações feitas em diferentes momentos de seu ensino. Sobretudo ao apontar a importância de Platão no advento da ciência moderna, assim como a descontinuidade em História da Ciência apresentada por Koyrè a partir do que se convencionou chamar a “revolução copernicana”. Neste contexto, outro livro referência para Lacan, de autoria de Koyrè, é Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, publicado em

114 Lacan, Escritos: Ciência e Verdade, 870.

115 Teeteto, Diálogo de Platão (428- 348 a.c) sobre a natureza e o conhecimento. 116 Lacan, Função e Campo, 285

1957, a partir de uma série de conferências apresentadas nos Estados Unidos, na Universidade Johns Hopkins.

Deste famoso livro, Lacan aproveita a ideia da descontinuidade em História da Ciência, privilegiando um momento preciso, séculos XVI e XVII, para estabelecer a ciência moderna, que Lacan chama de “nova ordem simbólica”, onde seguindo a própria orientação de Koyrè, haveria uma antiga e uma nova concepção de mundo cujas mudanças obedeciam a duas ações relacionadas entre si – a destruição do cosmos e a geometrização do espaço117. Lacan apela a Koyrè em diferentes momentos em seus Seminários, e mesmo em alguns textos escritos, exatamente para enfatizar as consequências destes pontos aqui ressaltados na articulação da psicanálise com a ciência.

Somente a título de exemplo, no Seminário II, ele retoma Koyrè para diferenciar a experiência da psicanálise com os diálogos platônicos e da maiêutica socrática, visando aprofundar uma história da técnica em psicanálise, que deve ser mais aprofundada no capítulo 2.

Outro autor que também interfere na noção de ciência que Lacan busca transmitir nos primeiros 15 anos do seu ensino, isto é, de 1953 a 1968118, é Georges Canguilhem, com quem dividiu o primeiro número do Cahiers Pour l’Analyse, revista publicada pelo Cercle d’Epistemologie de l’ Ecole Normale Supérieure, em 1966. Neste número, Lacan escreve sobre a ciência e a verdade, e Canguilhem sobre o que é a psicologia. A partir de como ela foi definida neste texto, a psicologia passou a ser inúmeras vezes alvo de críticas de Lacan, apoiado nos argumentos ali apresentados. Outra referência em Canguilhem, da qual Lacan se beneficiou, foi seu texto “Normal e Patológico”, cuja leitura da história da medicina foi também bastante aproveitada por Lacan, em seus Seminários e textos.

117 Koyrè – “a) a substituição da concepção do mundo como um todo finito e bem ordenado, no

qual a estrutura espacial materializava uma hierarquia e perfeição e valor, por um universo indefinido ou mesmo infinito, não mais unido por subordinação natural, mas unificado apenas pela identidade de seus componentes básicos; e b) substituição da concepção aristotélica de espaço, um conjunto diferenciado de lugares intramundanos, pela concepção da geometria euclidiana – uma extensão essencialmente infinita e homogênea – a partir de então considerada como idêntica ao espaço real do mundo”, 8.

118 Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, de 1953, texto que se

Para concluir este capítulo, poderíamos dizer que os autores contemporâneos de Lacan que mais influenciaram sua concepção de ciência foram Kojève, dando as bases da leitura hegeliana; Koyrè, esclarecendo alguns pontos de dificuldade na articulação da psicanálise com a filosofia visando à ciência; e Georges Canguihem, explicitando os impasses da relação da psicanálise com a medicina e com a psicologia.