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A lírica amorosa e a fortuna crítica:

Embora os críticos apontem a sua diversidade de temas e de procedimentos poéticos, é possível rastrear, na obra poética de Nuno Júdice, uma recorrência de poemas que tratam direta ou indiretamente do amor. Como vimos, trata-se de uma poesia que promove a criação de personagens líricos, entre os quais o próprio sujeito poético, numa espécie de “drama em gente”, processo semelhante ao adotado por Fernando Pessoa, conforme pontua Ida Alves (2011) ao explicar a ficcionalização do “eu” em Júdice, o que também foi enfatizado por Teresa Almeida (2000). Apesar da diversidade de máscaras encontráveis na obra judiciana, é possível rastrear a recorrência de alguns temas, criados a partir do trabalho realizado com determinadas palavras e grupos semânticos que perpassam toda a obra.

A temática amorosa ganha bastante espaço de livro a livro, tornando-se muito forte nos últimos livros. De modo geral, o amor que transparece nos poemas resulta de uma tentativa de reconstrução de eventos passados, de um amor perdido, de formas de expressão do amor, de fios de histórias de amor que celebrizaram escritores, mitos e personagens. O sujeito-poeta reflete sobre o sentimento amoroso em seus diversos aspectos: o amor como representação poética, o amor como memória de um passado, o amor como sentimento irrealizável, o amor como memória que guarda vestígios e escombros de sentimentos e histórias, o amor como matéria para a poesia, o amor configurado por mitos, pelas grandes tradições, por artistas e escritores, o amor experimentado por seres comuns, desconhecidos, associados a seres de real existência ou criados ficcionalmente. Enfim, são inúmeras as perspectivas pelas quais o sujeito poético vai refletindo sobre o amor e suas possibilidades de criação ou recriação, que se misturam às também inúmeras possibilidades de elaboração da poesia. A obra lírica de Júdice vai sendo criada com as vozes que se elevam da longa tradição da lírica amorosa, não somente de Portugal, mas da poesia do Ocidente, que constitui o horizonte de expectativa do poeta enquanto leitor privilegiado das obras representativas desta tradição. As estas vozes, que emergem de uma memória literária se juntam outras, saídas de outras fontes, relacionadas a outras esferas das sociedades nas quais se desenvolveu a tradição europeia da poesia amorosa.

Ainda que a fortuna crítica do poeta esclareça diversas questões a respeito da metalinguagem, da ironia, do mito, dos diálogos empreendidos com a tradição, da memória e da fragmentação, pouco se fala da configuração do tema do amor em sua obra. Ida Alves (2011) busca demonstrar a emotividade e a subjetividade que estão presentes na poesia judiciana e sua relação com as paisagens criadas nos poemas, mas a autora também não adentra no tema do amor.

Em dissertação de mestrado, Larica (2008) aprofunda-se um pouco mais na faceta amorosa da poesia judiciana, dissertando sobre a configuração de um amor que retoma o romantismo, mas de forma desrromantizada. Para a autora o amor em Júdice é matéria poética, matéria que representa as emoções, que reflete sobre elas, mas não as sente, pois o poema é artifício de linguagem e não deve confundir-se com expressão de sentimentos. Assim, Larica desenvolve sua reflexão demonstrando como Nuno Júdice retoma o Romantismo, promovendo um constante diálogo com esse movimento. A autora mostra como o poeta trabalha a ideia de poema como expressão íntima e legítima do ser, que se junta à visão crítica do poeta moderno, para o qual o poema constitui o espaço de reflexões da própria linguagem. O amor é sentimento, mas, ao ser transportado para o papel, passa para o pensamento e, então, torna-se ainda mais distante do real quando se imprime na palavra poética. Um dos principais pontos de reflexão do poeta, segundo Larica (2008), é que as palavras não são a expressão pura do ser. As palavras são apenas referências ou símbolos dos seres e do real. O poeta luta contra este abismo entre o ser e sua representação, tentando criar círculos obsessivos de representações falidas.

Larica (2008) constata a obsessão do poeta algarvio pela lírica amorosa, explicando que, ao valer-se de procedimentos intertextuais, Júdice repensa os lugares da tradição e problematiza o lirismo na contemporaneidade. Também aponta a estudiosa o diálogo que Júdice empreende com muitos poetas, enfatizando, porém, que, ao retomar os poetas românticos, o poeta não trabalha o amor como tema, e sim como objeto de reflexão.

Outra estudiosa que se dedicou a uma análise mais aprofundada do amor na lírica judiciana foi Faro (2007) que o discutiu com base na mesma obra que tomamos como fonte do nosso corpus, a Poesia Reunida (2000), além de ter abordado também os quatro livros posteriores. A autora trabalha a partir de uma perspectiva geométrica do espaço poético da intimidade, do mito e da ausência, atendo-se principalmente à figura da mulher amada. Trata- se de um estudo diacrônico da obra judiciana, que muito nos auxiliou para esclarecer e elucidar alguns pontos importantes da obra de Nuno Júdice, tais como a presença constante do

amor relacionado ao mito de Orpheu, que configura a geometria da descida ao inferno, à memória, “à terra de ninguém”11, que envolvem o amor na poesia de Júdice.

Nossa pesquisa apoia-se no estudo empreendido por Faro (2007) em diversos pontos, já que a configuração do amor em Nuno Júdice está alicerçada por três aspectos intrínsecos a ela: a memória, a metalinguagem e a morte, temas que a autora também discutiu. Afasta-se, porém da autora porque, enquanto Faro (2007) se preocupa com a configuração de uma geometria espacial nos poemas lírico- amorosos, nosso trabalho visa, a partir de uma análise de alguns poemas selecionados da Poesia reunida (2000), entender o diálogo que o poeta