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3. O CONVENTO DE SANTO ANDRÉ: FUTURA SEDE DO MUSEU CARLOS MACHADO.

3.1. A lógica de uma implantação.

Gaspar Fructuoso na sua obra As Saudades da Terra, escrita entre 1582 e 1589, referindo-se à cidade de Ponta Delgada, descreve-a erguida na margem de uma baía com uma extensão de três léguas, cujos limites são, a nascente a ponta da Galé, e a poente a ponta de Santa Clara, assim chamada

por se edificar mais perto dela uma ermida de Santa Clara207.

Ainda segundo aquele cronista a cidade tem um quarto de légua de

comprido, e de largo, no meio do corpo dela, um bom tiro de escopeta; começa sua compridão na casa dos herdeiros do magnífico Baltasar Rebelo, da parte do oriente, e acaba em casa do esforçado e forçoso que foi Baltasar Roiz, de Santa Clara, ou ainda além, da banda do ponente; e, posto que no princípio e fim tenha só uma rua, pelo meio tem três, quatro, cinco e seis, atravessadas de norte a sul, em sua largura, com mais de dezasseis notáveis ruas, afora muitas azinhagas e becos e outras ruas menos principais e cursadas.

Aquele parágrafo permite-nos estabelecer com razoável precisão os limites, nascente e poente, da cidade. A nascente a Calheta de Pêro de Teve. De facto, era naquele lugar que se erguia a casa do supramencionado Baltazar Rebelo, junto da qual o seu filho, Pedro Borges de Gandia208, mandou edificar em 1610 uma ermida de invocação a Nossa Senhora da Boa Nova, em terrenos onde hoje se ergue o estabelecimento prisional com o mesmo nome. A poente a ponta de Santa Clara, que recebeu o seu nome da ermida homónima aí construída, e que consiste numa delgada faixa de terra, que terá sugerido o nome da urbe.

Estabelecida a extensão do aglomerado urbano, no que ao seu desenvolvimento ao longo da orla costeira diz respeito, resta-nos tentar descortinar o seu limite norte que, no último quartel da centúria de quinhentos, se media por um bom tiro de escopeta.

207 Fructuoso, 1924,1: 305. 208 Rodrigues, 1998: 340.

Segundo Nestor de Sousa209, a coluna vertebral da cidade até finais do século XVIII, é definida por um arco que partindo de nascente da Ladeira das Águas Quentes, passa pelas actuais Ruas do Peru, do Mercado, de S. João, Machado dos Santos, Marquês da Praia e Monforte e, finalmente Dr. Gil Mont’Alverne de Sequeira, indo terminar na Praça de S. Francisco.

Ainda segundo o mesmo autor o Caminho Novo junto ao convento de Santo André (actuais Ruas Margarida de Chaves e Guilherme Poças Falcão), só será aberto no século XVII, o que nos permite adiantar que o tal bom tiro de

escopeta não iria muito além da Rua de São João, restringindo a cidade a uma

estreita faixa urbanizada rodeada de terras lavradias [66].

[66] Limite de Ponta Delgada no final do século XVIII, assinalado sobre a Planta de 1831 de António d’Andrade.

Ponta Delgada surge assim, na costa sul de um planalto caracterizado por um declive suave, condição que facilitava as actividades agrícolas, planalto que é enquadrado a nascente pelo maciço do Fogo e a poente pelo maciço das Sete Cidades. Em virtude da orografia do local, o abrigo proporcionado pela baía, embora não reunisse as condições ideais conferia-lhe, apesar de tudo, alguma protecção, a cidade desenvolveu-se organicamente ao longo da costa, irradiando timidamente para o interior, mantendo os limites do traçado quinhentista praticamente inalterados até ao século XVIII.

Poderá inferir-se que o terramoto de 1522 que destruiu Vila Franca do Campo, a primeira capital da Ilha, terá contribuído para a afirmação de Ponta Delgada no contexto urbano micaelense, mas seguramente que as características do seu suporte físico, inigualáveis naquele território, determinaram um factor de progresso que se veio a consubstanciar na sua elevação a cidade por alvará de D. João III, concedido a 2 de Abril de 1546.

Quando o cronista escreve As Saudades da Terra, Ponta Delgada, que nasceu como um modesto povoado quatrocentista, ascendera à principal posição de entre os aglomerados urbanos da ilha. Capital por vontade do destino a urbe apresenta um planeamento urbano, à semelhança de quase todos os restantes povoados do arquipélago210, mais assente nas características do suporte físico, do que em qualquer traçado geométrico.

Paralelamente, e à semelhança de outros povoados açorianos, os edifícios mais emblemáticos ocupam posições que lhes permitem constituir-se como marcas no tecido urbano. As capelas de Santa Catarina, e Santa Cruz, respectivamente nas Lajes do Pico e Santa Cruz da Graciosa, ou da igreja do convento do Carmo na Horta, todas implantadas em pontos elevados, assumem um carácter referencial nos seus contextos. Em Rabo de Peixe, a implantação das capelas de Nossa Senhora do Rosário, numa elevação que domina a baía, e de São Sebastião, no extremo poente da Vila, estabelecem entre si uma relação de vizinhança enfatizada por um eixo visual, e constituem o pretexto para o preenchimento do tecido urbano que as separa.

Essa regra de assinalar a malha urbana com edifícios representativos, assume em Ponta Delgada uma razoável diversidade de escala, que sem pôr em causa o princípio, antes reafirma a sua validade. Junto do seu extremo poente, enformando a Praça de São Francisco, instalam-se três dos edifícios que atestam a sua importância enquanto urbe, os conventos de São Francisco, construído em 1525 sobre a antiga ermida de Nossa Senhora da Conceição, e da Esperança fundado no segundo quartel do mesmo século, bem como o renascentista forte de São Brás, cuja construção se iniciou em 1552.

210 Angra do Heroísmo, capital dos Açores até ao século XIX, foi estruturada a partir do traçado

urbanístico do plano de Van Linschoten, constituindo a única excepção no contexto urbano açoriano. Cf. Fernandes, 1996: 149.

A expansão da cidade para nascente – para poente a partir de Santa Clara as características do suporte físico dificultam o acesso ao mar – surge como a solução lógica, e esse preenchimento do território ter-se-á feito primeiramente entre essa Praça e a elevação onde se ergue a actual igreja de São Pedro, erigida sobre construção bem mais modesta documentada em 1521. Pelo meio ficava a Praça da Matriz e nas suas proximidades a casa da Câmara.

Este arco, bordejado a sul pelo Oceano, é delimitado a norte por uma elevação que se acentua logo após a Calheta de Pêro de Teve, assumindo a sua maior expressão no alto da Mãe de Deus, elevação que se desenvolve para poente ao longo das Ruas da Mãe de Deus, Margarida de Chaves e Santo André, a partir da qual se dilui progressivamente.

No seu extremo nascente ergueu Diogo Afonso Cogumbreiro a primitiva ermida, obra que Nestor de Sousa, citando o Padre Herculano A. de Medeiros, alvitra poder ter-se iniciado em 1538, porque em 10 de Março desse ano

consta a esmola de um cruzado para a Madre de Deus no testamento de Fernão Gonçalves211, e que em todo o caso estava concluída quando Gaspar Fructuoso escreve a sua obra.

No seu extremo poente, em local de onde se pode avistar e ser visto da cidade, sensivelmente a nordeste da praça da Matriz, o centro nevrálgico da cidade, erguia-se uma capela com invocação a Santo André. Foi esse local que Diogo Vaz Carreiro e sua mulher Beatriz Rodrigues Camelo solicitaram ao vigário da Matriz de São Sebastião, Pedro Gago, para erguer um convento de freiras clarissas, para nele recolher suas parentes pobres212, cuja construção iniciaram em 1567. Para garantir a perenidade do seu projecto ambos os fundadores, e primeiros padroeiros, doavam sessenta moios de renda anuais.

O local escolhido possui um carácter simbiótico capaz de assegurar os requisitos para a implantação do conjunto conventual. Por um lado, a implantação num local dominante no contexto urbano, acentuando o contraste da sua forma face à envolvente, e afirmando a sua originalidade, integra-o no conceito de elemento marcante213, susceptível de assumir um papel referencial

211 Sousa, 1986: 69. 212 Fructuoso, 1924, 1: 68.

na estruturação do espaço citadino. Por outro, a sua localização na periferia da malha urbana, de forma a ocupar uma área substancial capaz de albergar todas as suas valências possibilita, simultaneamente, a assunção de uma relação privilegiada com a envolvente agrícola, de onde provêm parte importante dos rendimentos do cenóbio.

Assim, o lugar possuía condições excepcionais que, conjugadas, justificaram a sua eleição como local de implantação do conjunto conventual.