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1.3. A criação de Jean Seul de Méluret

1.3.2. La France en 1950

Relativamente a este projeto, e tendo em conta o tempo da escrita, de imediato se constata que a sua intenção é a apresentação do futuro [decadente] da França. Trata-se de um futuro ficcionado,

39 pois a narração apresenta os factos num presente da enunciação. Este processo narrativo aproxima o futuro — a decadência e a "morte" da França — da contemporaneidade dos eventuais leitores. Assim sendo, o prognóstico de morte feito no fim de Des Cas

d’Exhibitionnisme confirma-se em La France en 1950, onde, de forma

satírica e provocatória, se escreve: «Ci gît la France/ Merde!» (OJSM: 64)50.

A comprovar este estado de total decadência civilizacional, enumera, num tom satírico, manifestações de degenerescência e de crise, espelhando situações grotescas e abjetas, que serão objeto de uma análise mais cuidada no capítulo seguinte. Atente-se, a título preliminar e de exemplo, na sordidez destes comentários:

On lave les assiettes avec le sang des petits enfants qu’on a violés et égorgés. On n’essuie pas les assiettes après. C’est — m’a-t-on dit — une volupté un peu vieillée.

On a obtenu des éjaculations séminales en mangeant le corps d’un petit enfant.

Le sperme d’animal comme breuvage ne fait pas déjà la mode (ibid.).

A descrição dos horrores e a sátira que lhes está subjacente terão, então, um propósito formativo, de prevenção e de alerta. Ao ser confrontado com uma realidade futura distorcida e disfuncional, o leitor apercebe-se do estado de decadência e de degenerescência que vigorava no seu presente. Mais explícitos ainda a este propósito são os termos de Rita Patrício e Jerónimo Pizarro:

Se o título situa o leitor num futuro imaginado, que é o do presente da escrita, o verdadeiro desafio que lhe é lançado seria o de aprender a ver e a julgar melhor o que lhe é próximo. A metodologia para esse ensinamento de visão passa sobretudo pela deformação da realidade circundante. Essa desfiguração, por exagero e por paradoxos, armas tão próximas do discurso satírico, para além do prazer evidente do exercício da construção de um mundo tão especial, teria um objetivo pedagógico: seria olhando para o inferno instalado nessa França de

50 Retomaremos este aspeto provocatório no capítulo III do presente trabalho, a

propósito de uma reflexão sobre o significado e receção de Orpheu e ainda sobre a relação entre Jean Seul de Méluret e o heterónimo Álvaro de Campos.

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1950 que se tornariam mais nítidos certos traços da civilização ocidental, sobretudo da francesa, da primeira década do passado século. A fantasiosa viagem ao futuro, a visão da França caída, é um meio de aprender a ver melhor a decadência presente (PATRÍCIO, R., PIZARRO, J., 2006: 23).

Como se vê, das palavras transcritas se percebe que o propósito crítico de Jean Seul de Méluret, relativamente à sua contemporaneidade, se concretiza de forma mais contundente pela prolepse narrativa que expõe a agonia de um povo decadente.

Nesta linha de pensamento, importa salientar que, por vezes, o narrador estabelece uma ligação temporal entre o presente da escrita — futuro imaginado — e o presente do leitor — época de decadência finissecular — de forma explícita, o que reforça o que anteriormente se referiu: o alvo da crítica e da denúncia será a sociedade contemporânea do narrador e do narratário, como nos comprova a seguinte passagem, também assinalada pelos editores críticos de Jean Seul de Méluret: «Les modes sont □; les dames ont des goûts exquis, qui sont, tout simplement, la continuation de ceux d’il y a 50 ans» (OJSM: 63).

É igualmente significativo que, nesta sátira, com um intuito formativo e humanista, o sórdido e o grotesco surjam com naturalidade e não causem estranheza ao leitor. Este aspeto, como sublinharam os investigadores acima mencionados, não provoca repugnância ao narrador, muito embora refira «Honte à celui qui trouvera cette satire amusante. Honni soit qui en rira!» (id.: 68); assiste-se mesmo à expressão de algum comprazimento, muito distante da atitude do narrador de Des Cas d’Exhibitionnisme, que, como se viu, reprovava atitudes de deleite e prazer, provocadas pelo universo sórdido inerente a estes espetáculos de diversão noturna.

Para além do já observado, note-se que este livro retrata uma sociedade dominada por falta de valores morais, de onde sobressai a

41 miséria humana — uma babel dominada pelo caos e pela luxúria, colocando os quadros narrados a nu uma sociedade decadente, perversa e com valores subvertidos. E, a este nível, são paradigmáticas as referências feitas ao meio escolar, cujo regulamento sobre normas de funcionamento e sanções está completamente subvertido, mostrando um mundo às avessas: «Le petit garçon qui parle pendant la leçon est défendu de se masturber plus de 2 fois par jour» (id.: 66)51.

Enquanto sinais e marcas de efemeridade e artificialismo, alguns aspetos da realidade desconcertante são igualmente objeto de denúncia, como, por exemplo, a atenção dada ao objeto material, aos títulos e à moda onde se verificam excentricidades52:

[…] Les modes sont très □; les dames ont des goûts exquis […] Il y a les chapeaux □ les toques pot-de-chambre.

Vendus par la ‘‘Maison à l’œuvre de chair doré’’, au Palais □ (OJSM: 63).

A própria palavra, «sujeita também ao espírito do tempo […] [e adaptada] à nova alma do século», (PATRÍCIO, R., PIZARRO, J., 2006: 25) não fica incólume de censura:

51 Não deixa de ser significativo o facto de Jean Seul se fixar em ‘infrações’ de cariz

sexual que, neste mundo às avessas, constituiriam a norma, sendo objeto de atenção e de regulamentação formal muito severa nas escolas do séc. XIX. Esta atitude regulamentadora foi assinalada por Michel Foucault, considerando-a como sintomática de comportamentos que, pela negação e repressão, afirmariam preocupações com a sexualidade. São claros os seus propósitos: «[…] multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e cuidadosamente organizados controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias os moralistas e, também e sobretudo, os médicos, trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação» (FOUCAULT, M., 1988: 37). Efetivamente, a ciência do século XIX considerava que a violação da “normalização” em todas as esferas, nomeadamente da vida íntima, se devia a um «descontrolo doentio do degenerado [...]» (KRABBENHOFT, K., 2011: 208). Cf., ainda, PIZARRO, J., 207:66-67).

52 Note-se que estes aspetos — o artificialismo e as modas — serão objeto de

crítica em Nordau, que os vê, igualmente, como um dos sintomas da degenerescência: «Le caractère de tous ces être, c’est de ne pas vouloir représenter quelque chose qu’ils ne sont pas» (NORDAU, M., 2006: 58).

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Les noms des choses, les □ ont tous pris une allure amoureuse […] Machine de couture ‘‘La Sensuelle’’, appareil à □

□ machine à écrire ‘‘ Épuisence’’

Chacun à un pseudonyme […] (OJSM: 62).

Ora, a desordem do mundo está igualmente espelhada na técnica narrativa, na medida em que esta não apresenta os factos de forma articulada e coesa: surgem de forma dispersa, há recurso à notação e apresentação de quadros soltos e de episódios justapostos que, do ponto de vista do processo narrativo, confirmam a natureza caótica do mundo descrito53. É assim, que, por exemplo, à descrição de ‘deleite’ pela visão de estropiados se segue a descrição (note-se: em crise) do exército francês (OJSM: 63).

Em síntese:

[…] o caos não comporta qualquer espécie de ordem e por isso a sua narração deve conformar-se a essa desordem, não admitindo uma estrutura narrativa que torne uno o que é por natureza confuso (PATRÍCIO, R., PIZARRO, J., 2006: 24).

Tendo em conta esta constatação, pode compreender-se melhor que caiba ao narrador a função de estabelecer a articulação entre os diferentes momentos narrativos, através de marcas da sua presença, que se manifesta pelo predomínio do discurso na primeira pessoa. Assim, se é certo que a neutralidade é um dos seus traços mais visíveis, também não é menos verdade que, por vezes, a voz deste narrador surge na narrativa como espectador e ainda como juiz avaliador e moralizador. Atente-se às citações exemplificativas da primeira situação: «J’ai été l’autre jour à voir une école de demoiselles» (OJSM: 65). E veja-se, agora, as palavras de Jean Seul que atestam que este narrador ultrapassa o estatuto de mero participante, fazendo juízos de valor e usando um tom mais

53 Rita Patrício e Jerónimo Pizarro notam ainda que a própria natureza material dos

fragmentos sugere que tenham sido redigidos em momentos distintos (PATRÍCIO, R., PIZARRO, J., 2006: 24).

43 moralizador: «Je haïs la prostitution des rues, mais je sais que pire est celle des âmes» (id.: 68). Sucedem-se, por fim, comentários sobre a literatura e arte ‘degeneradas’, que antecedem o tom e o assunto do livro seguinte: Messieurs les Souteneus.

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