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3. O outro

3.2. Ilustração e alteridade

3.2.3. La gente de color

Outro dos grandes grupos sobre o qual o naturalista escreveu, embora muito pouco, foi o da “gente de color” ou “pardos”. A América foi, para ele, o lugar onde efetivamente ocorreu a mestiçagem das três raças: os americanos (índios), brancos (europeus) e negros (africanos).

Assim como em Buffon, as “raças” aqui passaram para o patamar de “espé- cies” – e o interessante é que o espanhol chegou a utilizar uma palavra após a outra como sinônimas. Como para Azara a mestiçagem era um assunto complexo, e dizia não dominar muito, visto as diversas possibilidades e classificações que ela gerava entre as pessoas, ele resolveu falar principalmente dos mestiços (frutos da união entre europeus e indígenas) e mulatos (entre negros e europeus).

Os mestiços seriam, segundo ele, uma raça superior a todas as outras, tanto física quanto moralmente – sua estatura e sagacidade superavam os espanhóis e os criollos. Principalmente no Paraguai, Azara descreveu seus habitantes mestiços co- mo tendo boa estatura, seus corpos possuíam também elegantes formas, seriam mais inteligentes e inclusive mais ativos que os outros: “Estos hechos me hacen sospechar, no solamente que las mezclas de las razas las mejora, sino que la espe- cie americana à la larga escala dominará a la europea.” (AZARA, 1850, p. 268).

Quanto aos mulatos, podemos notar na descrição do espanhol a predominân- cia da possibilidade de variações conforme a união para determinar a raça do indiví- duo. Por exemplo, segundo Azara, se da união de um europeu com uma negra re- sultar um mulato, e este mulato se unir com uma negra, seu filho será considerado

como sendo um “salto-atrás”, pois, para a mentalidade da época, ao invés de essa criança ter “ganhado” em brancura se sua mãe fosse branca, ela regrediu porque teria então três quartos de negro. Além do “salto-atrás”, outras diversas denomina- ções existiriam na região.

Mesmo inicialmente escrevendo que não falaria dos negros, Azara deixou es- capar algumas opiniões referentes a eles, sobretudo no que concerne à escravidão. Citou a “generosidade” quando alguns paraguaios decidiram libertar os escravos, classificando como atrozes as leis e castigos a que eles eram subordinados. Na vi- são do ilustrado, os escravos dessa região seriam mais bem tratados que em outras colônias americanas. Os escravos do Brasil só teriam a ganhar se fugissem para o território paraguaio. Inclusive, ele escreveu que viu muitos escravos recusar a liber- dade, só admitindo-a em caso de morte de seus senhores.

O ilustrado narrou, nessa parte, um caso que o deixara indignado: uma escra- va tinha escapado com suas filhas do Paraguai para se refugiar nas Antilhas. Seu dono a reclamou de volta através de uma carta para o governo, mesmo que a escra- va tivesse o dinheiro e se oferecido a pagar sua liberdade. O caso foi parar no Con- selho de Índias, que decidiu, a princípio, não devolver escravo algum, pois a liberda- de seria um direito natural (Azara se vangloriou dessa “honrosa” decisão da Espa- nha):

Esta decisión que hace honor a la España, llegó al Paraguay cuando yo me hallaba en él. Pero como el gobernador de este país acababa de recibir pre- sentes considerables de los portugueses, por complacerles despreció la or- den del rey y les devolvió un miserable esclavo fugitivo; y aun hizo repre- sentaciones a la corte por medio del virrey de Buenos Aires que apoyó sus ideas, y a fuerza de repetir sus solicitudes, consiguieron hacer revocar unas medida tan justa y útil por un ministro que quería agradar a la corte de Lis- boa. (AZARA, 1850, p. 271).

O governador, citado nesse trecho pelo demarcador, muito possivelmente se- ria o mesmo com quem teve desavenças quando chegou ao Paraguai. Essa pen- denga foi mencionada e explicada por Charles Walckenaer, primeiro biógrafo de Azara.

Contudo, se nos atentarmos principalmente para o epistolário do militar, po- demos ver um indício do motivo de ele não querer falar tanto dos negros: Azara teve a seu serviço um escravo negro, ao qual mencionava como “mi negro”, desde a sua saída de Buenos Aires até Assunção. Na capital paraguaia, ainda se utilizou por

muito tempo das atividades desse negro como mensageiro ou em outros tipos de afazeres.

Um ilustrado que condenava a escravidão, ao mesmo tempo em que se ser- viu dela: pode parecer contraditório, e de certa forma era, mas se visualizarmos o cenário da capital do vice-reinado do rio da Prata naquele momento, notaremos uma grande quantidade da população negra e da utilização da mão de obra escrava. Epi- sódios como a suposta conspiração de moradores franceses para a libertação de escravos, estudada por Maria Secreto (2013), ocorrida um ano antes da volta de Azara para Buenos Aires, em 1795, expõem o quão esse grupo estava presente na América espanhola colonial.

Uma percepção que temos ao ler o Viajes por la America del Sur é a de vis- lumbrar o preconceito referente a certos grupos étnicos naquele período histórico. Os índios eram mais depreciados em relação aos negros e mulatos, ainda mais se tivermos em consideração fatores como o trabalho. Perante as leis, os mulatos livres e negros levavam desvantagem. Alguns mulatos livres de cor clara possivelmente podiam se passar por espanhóis em regiões que não os conheciam. Muitas vezes, negros e mulatos livres estariam em melhores condições que os brancos pobres, escreveu o ilustrado, pois eram chefes de estâncias ou capatazes.

Azara escreveu ainda sobre abusos do Estado espanhol feitos às “gentes de color”. Um desses abusos era um tributo de nome “Amparo” instituído por D. Fran- cisco Alfaro. Hombres de color dos 18 aos 50 anos deveriam pagar três pesos anu- ais de tributo. Como havia pouca moeda de comércio no período, os “eclesiásticos e espanhóis acomodados” não tardaram em abusar e fazer desses homens escravos. Em seguida, o tributo foi estendido a todas as idades e sexos pelo governo. Depois, os governadores seguintes instituíram o serviço militar para todos os homens de cor ou não. Enfim, como podemos notar, mestiços e mulatos livres seriam pessoas boas às quais o ilustrado teve aproximação (nesse caso, física) e, de certa forma, reco- nheceu a identidade, embora seu capítulo sobre esses grupos seja curto e limitado.