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Lacan, muito além do mestre

4 CLÉRAMBAULT, MESTRE DE LACAN

4.4 Lacan, muito além do mestre

Por fim, quando interrogamos por que Lacan seguiu praticando esse exercício tão criticado, só podemos concordar com Leguil (1998), que “se Jacques Lacan, indo contra o senso comum, preservou essa prática, não seria pelo fato de considerar que se devia ainda procurar nela e nela encontrar uma relação específica e insubstituível com a verdade que está em causa na clínica?” (p. 97).

Não obstante as diferenças que o percurso de Lacan irá imprimir em sua perspectiva teórica e prática, em relação ao mestre, é interessante observar como Clérambault preparou “a filigrana, ou a topologia daquilo que Lacan apontará como sujeito” (Viganò, 1997, p. 43). É o que podemos ver, por exemplo, no caso da alucinação verbal “Porca”. Este teria, tanto para Clérambault, quanto para Lacan, um valor clínico paradigmático, visto que a intrusão do significante, de forma parasitária, estrangeira com que este se impunha independente da intencionalidade da consciência, indicaria para ambos, uma falha estrutural. A diferença fundamental, mas de extraordinárias conseqüências clínicas, é que essa dualidade passividade- invasão, seria para Clérambault, uma prova de sua origem orgânica, enquanto para Lacan, tal fenômeno revelaria a posição do sujeito enquanto objeto de gozo do Outro.

Contudo, é preciso reconhecer que Clérambault levou as investigações da organicidade da doença mental, aos limites do psiquismo. Talvez não seja por acaso, que tenha sido, Jacques Lacan, justamente um discípulo de Clérambault, o último grande psiquiatra clássico, quem levou às últimas conseqüências a aposta na causalidade psíquica das psicoses, fundando, no que diz respeito a essa estrutura, uma nova perspectiva clínica.

5 AS APRESENTAÇÕES DE PACIENTE SOB A LÓGICA DOS DISCURSOS

Ao realizar a apresentação de pacientes sob a perspectiva da psicanálise, Lacan produziu profundas modificações nessa prática, alterando não apenas as articulações entre paciente, público e entrevistador, mas também o seu objetivo e alcance.

Nossa hipótese é que ao introduzir aí, a subversão freudiana, deslocando o interesse da doença para o sujeito, Lacan fará suas apresentações não mais sob a perspectiva do discurso do mestre, ou do discurso universitário, como faziam seus predecessores, mas sob a lógica do discurso do analista, fazendo desta não apenas um dispositivo de transmissão da psicanálise, mas também um dispositivo de tratamento psicanalítico do sujeito psicótico.

Quando falamos em apresentação de pacientes sob o viés da psicanálise, é preciso esclarecer que esta seria mais uma dentre as diversas formas de se operar esse dispositivo. Isto porque, em realidade, sob o nome “apresentação de pacientes”, reúne-se uma heterogeneidade de práticas, que comportam importantes variações, não apenas em função do estilo pessoal do apresentador e das características do paciente entrevistado, mas também no que diz respeito às técnicas e estratégias de intervenção, assim como no papel a ela destinado no tratamento e/ou no ensino psiquiátrico. Estas diferenças se devem ao fato de que seu manejo e dinâmica se alteram em consonância com os objetivos e princípios éticos e ideológicos, próprios da perspectiva teórica que orienta o entrevistador que conduz a apresentação.

Temos assim que isso que se anuncia aparentemente como uma mesma atividade, não dá lugar a uma única experiência (Bastos, 1996). Diante da variedade encontrada, entendemos que o que possibilitou manter reunidas práticas, às vezes tão diversas, sob esta mesma nomeação – ‘apresentação de pacientes’ - é antes o seu aspecto estático, estruturado na presença de três elementos distintos: paciente, público e entrevistador. A esse mecanismo estruturante, que dá aparente unicidade a este aparelho de intervenção, chamaremos de ‘dispositivo’, enquanto que à sua dimensão viva, dinâmica, referido à pluralidade de práticas que se pode produzir quando esse dispositivo é posto em movimento, chamaremos de ‘discurso’, que se altera em função da verdade que o orienta e do lugar em que se deposita o saber.

Fazemos aqui referência aos Discursos propostos por Lacan em O

Seminário, Livro 17: O avesso da Psicanálise (1969-70/1992b). Na concepção

lacaniana, os discursos constituem uma escrita das formas de se fazer laço social, considerando a impossibilidade das relações (Rodrigues, 2010). Ou seja, todo laço social implica um enquadramento da pulsão resultando em uma perda de gozo, logo, há sempre um resto impossível de ser capturado. Os discursos são, portanto uma ferramenta válida para se pensar as modalidades de vínculos que podem se estabelecer nos enlaçamentos sociais. Nossa proposta é pensar as diferentes modalidades de apresentação de pacientes, como efeito de sua operação a partir dos diferentes discursos. Os discursos são quatro, cada um operando a partir de uma impossibilidade: Discurso do Mestre, o impossível de governar; Discurso Histérico, o impossível de fazer desejar; Discurso do Analista, o impossível de analisar; e o Discurso Universitário, o impossível de ensinar. Os discursos são estruturados por quatro lugares fixos (da Verdade, do Agente, do Outro e do Produto), onde permutam os quatro elementos (S1, S2, $ e a).

Sendo os termos S1 – o significante mestre; S2- o saber; $ - o sujeito, e a - o

mais gozar, temos que estes circulam sempre na mesma orientação, e é da posição que ocupam, que se configuram os discursos. Com relação aos lugares, temos que o Agente – é aquele que aparentemente organiza do discurso, que o coloca em funcionamento; o Outro – a alteridade irredutível ao qual o discurso se dirige; a Produção – o produto engendrado pelo discurso; e finalmente a Verdade – aquilo que fundamenta o discurso, mas que só pode ser enunciada por um semi-dizer. Podemos descrever, de uma maneira bastante sintética, o funcionamento do discurso da seguinte maneira: ao posicionar-se como agente do discurso, essa ação

Agente Outro . Verdade // Produção

tem um efeito sobre o Outro, que inevitavelmente resulta numa produção. Contudo, essa produção, por não ter relação com a verdade, por dela se apresentar disjunta, acaba por obturá-la, deixando-a oculta, em suspenso.

Para pensarmos a articulação entre o dispositivo da apresentação e os diferentes discursos que o animaram ao longo da história, tomaremos sua prática sob a perspectiva de três tendências estabelecidas a partir da importância dada à fala do paciente. A primeira perspectiva seria a da psiquiatria clássica. Sua abrangência, cerca de um século e meio de existência, poderia ser ela mesmo subdividida de inúmeras maneiras, seja em função das crenças na causalidade da doença mental, seja em função de suas perspectivas de tratamento. Todavia, tomaremos como referencial apenas aquilo que consideramos lhe imprimir uma unidade: a utilização do “método clínico de observação” pautado na descrição detalhada dos fenômenos, que encontrava na fala do paciente o seu principal meio para definição de diagnóstico e prognóstico do caso em questão, assim como para a constituição de saber psiquiátrico de uma forma geral. Portanto, uma psiquiatria que, independente da prevalência da crença psico ou organogênica da loucura, destinava à fala do paciente, um lugar de fundamental importância. Teríamos como marco da psiquiatria clássica, sua fundação por Pinel (1745-1826), em 1793, ano em que ele assumiu suas funções em Bicêtre, a 1934, ano da morte de Clérambault (1872- 1934), considerado o último dos grandes clássicos. Dentre alguns dos psiquiatras clássicos mais relacionados ao tema da apresentação de pacientes, podemos citar Esquirol (1772-1840) e Falret (1794-1870), da escola francesa e Griesinger (1817- 1868) e Kraepelin (1856-1925), da escola alemã. Essa perspectiva psiquiátrica começa a declinar, no final do século XIX, início do século XX, tendo sido gradativamente suprimida.

Como representante da segunda perspectiva, tomaremos a psiquiatria que começa a despontar com o declínio da psiquiatria clássica. Da mesma forma que na primeira, nessa tendência também serão englobadas uma diversidade de correntes e escolas. Tomaremos como fator comum para situá-las neste mesmo grupo, o abandono do método clínico de observação em favor do pragmatismo terapêutico. Essa psiquiatria, que chamaremos “psiquiatria biologicista”, começou a ganhar força por volta dos anos 20, se destacando pelo centramento de suas investigações nas intervenções ao nível do corpo, com crescente desinteresse pela fala do paciente e pela precisão diagnóstica. Mas foi particularmente a partir da segunda metade do

século XX, como avanço da neuroquímica, que esta psiquiatria alcançou a hegemonia, dominando o campo psiquiátrico até os dias de hoje.

Por fim, como terceira perspectiva, a psicanálise. Fundada por Freud, no final do século XIX, a psicanálise só passará a fazer uso da apresentação de pacientes a partir de Lacan, que iniciou seu exercício por volta de 1930, praticando-a ao longo de toda sua carreira. O estilo de Lacan se disseminou no Campo Freudiano, tendo ganhado a adesão de diversos psicanalistas a partir da década de 70, tornando-se prática regular na contemporaneidade. Essa perspectiva será circunscrita à abordagem lacaniana da psicanálise, caracterizada pela aposta radical na palavra como forma de permitir aceder ao sujeito do inconsciente, ao sujeito do gozo.