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4 FUNDAMENTOS DA PROIBIÇÃO DO VÉU ISLÂMICO NO OCIDENTE

4.1.2 Laicidade nas escolas alemãs, liberdade religiosa e o caso do burkini no

Na Alemanha, outro fator quanto à integração a ser destacado é que não há escolas muçulmanas financiadas pelo governo. A razão para isso é o fato de existirem requisitos – inclusive, previstos constitucionalmente, no artigo 7º, parágrafo 3º da Lei Fundamental alemã – para se formar uma associação religiosa que coopere diretamente com o Estado, tais como permanência, provada pela própria constituição coletiva e por um suficiente número de membros; uma lista clara de membros, de forma a determinar quais serão os alunos que atenderão às aulas religiosas; representação capaz de definir os princípios religiosos e que fale por eles, e não sofrer influências de instituições estatais. Para receber uma melhor classificação perante o Estado e receber seu apoio, a associação deve também ter recursos próprios e estar estabelecida no país há pelo menos trinta anos (BERGLUND, 2015, p. 16).

Apenas duas associações, até o ano de 2015, haviam se qualificado nesses moldes, ambas do estado de Hessen, quais sejam, a DİTİB Landesverband Hessen e.V. e a Ahmadiyya Muslim Jamaat is der Bundesrepublik Deutschland e.V., que cooperam com o Estado, para a inclusão de aulas de religião islâmica nas escolas públicas locais, como qualquer outra matéria, independentemente de a qual doutrina religiosa a aula se dirige (ALEMANHA, 2014). Muitas outras associações islâmicas, no entanto, estão registradas como organizações de caridade sem fins lucrativos, o que significa estar um nível abaixo de se tornar oficialmente em cooperação com o Estado, e tem alguns privilégios, como não pagar impostos (BERGLUND, 2015, p. 17).

A mudança de 2014 não significou, portanto, a instituição de escolas públicas islâmicas, mas de modificações nos currículos para a inclusão da matéria religião islâmica no currículo de todos os alunos, e, antes mesmo de Hessen, outros estados do país, como Baden- Württemberg, já vinham elaborando projetos para incluírem o islã nos currículos de suas escolas. A mudança curricular apresenta-se como uma prevenção ao extremismo religioso e uma ampla concordância dos anos de falta de integração com a população imigrante, especialmente a turca (ISLAM..., 2015).

O governo alemão também financia centros universitários para estudos em Teologia Islâmica em Münster, Osnabrück, Frankfrurt-Greissen, Tübingen, and Nüremberg-Erlangen, onde os professores recebem treinamento para também darem aulas nas escolas. No entanto, os muçulmanos apresentam-se divididos com a inclusão da religiosidade islâmica no ensino alemão. Se, por um lado, as famílias ficam felizes em saber que seus filhos podem aprender sobre a própria religião na escola, como um cristão pode, por outro se questionam sobre a

posição estatal com relação a muçulmanos e islã, suspeitando que possa ser imposta uma visão alemã sobre eles (BERGLUND, 2015, p. 17).

De acordo com o estudo Integração e Religião na visão dos Imigrantes Turcos na Alemanha (Integration und Religion aus der Sicht von Türkeistämmigen in Deutschland), produzido pelo Departamento de Religião e Política da Universidade de Münster após entrevistas a 1.201 imigrantes por todo o país entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016, constatou-se que 33% dos entrevistados concordaram que a mulher muçulmana deve usar o véu, sendo que essa proporção aumenta para 39% entre os imigrantes de primeira geração e cai para 27% entre os de segunda e terceira. Também 31% das mulheres entrevistadas afirmaram que usavam o véu em público, aumentando essa proporção para 41% entre as mulheres de primeira geração e, novamente, caindo para 21% entre as de segunda e terceira gerações.

Não se pode olvidar que a Alemanha somente a partir de 2000 iniciou uma política de integração, ao invés de apenas desconsiderar a presença imigrante no país. Nesse contexto, nota-se a diferença entre as repostas de indivíduos da primeira geração de imigrantes e aqueles mais novos. Não há assim uma lei que proíba o véu. Ademais, as próprias escolas buscam colocar o islã em seus currículos. Isso não significa, contudo, que, diante das oscilações políticas que ocorrem sobretudo com os ataques terroristas na Europa e a crise de refugiados desde 2015, partidos de direita, notadamente o AfD, uma vez no poder, podem querer traçar novas políticas, em atendimento ao medo da população alemã, restringindo as tentativas de integração e, inclusive, proibindo o véu, seguindo moldes da França. No entanto, deve-se lembrar que uma importante diferença com relação à França é justamente a forma como se vê a laicidade, que é mais branda, tanto que os alemães levam já estudos do islamismo para as salas de aula.

Dessa forma, apesar de não haver ainda lei que proíba qualquer forma do uso do véu pelas muçulmanas em razão da laicidade, como na França, já houve caso emblemático julgado pelo Tribunal Federal Administrativo e que teve por objeto o pedido formulado pelos pais de uma aluna muçulmana, em relação ao ano escolar de 2011/2012, por motivos de liberdade religiosa. Alegam que, apesar de para aquela religião ser a realização de esportes algo de estimável importância, por algumas circunstâncias não poderia a menina participar das aulas de natação. Estas eram obrigatórias, fazendo parte do currículo normal acadêmico, e sempre se realizam com meninas e meninos em conjunto. No entanto, foi alegado pelos autores da demanda que a aluna não poderia ser vista trajando as roupas típicas de banho da Alemanha (maiôs, biquínis), como também não poderia ver alunos do sexo oposto em trajes voltados para natação. A ação judicial teve seu início com a recusa da escola ao pedido feito pelos pais em

nome da filha para fins de liberação da aula. Na primeira instância e em nível recursal, os autores tiveram seu direito negado, passando a ser decidido pelo Tribunal Administrativo Federal Alemão.

Com relação às circunstâncias jurídicas, afirmou o Tribunal que o artigo 4º, parágrafo primeiro da Lei Fundamental Alemã, que determina o direito fundamental à liberdade religiosa e de crença, não abrange somente uma liberdade interna, de crer ou não em algo, mas principalmente a liberdade de poder manifestar e desenvolver a sua opinião, inclusive suas práticas e comportamento diários em sociedade. Esse artigo, por sua vez, confronta-se com o artigo 7º, parágrafo 1º, da Lei Fundamental, que determina a frequência à escola e, consequentemente, o acesso à educação, igualmente como direito fundamental e necessário para configuração do Estado alemão. Foi também argumentado, conforme o ordenamento jurídico e decisões pretéritas que tem o Estado a competência para planejar, organizar e desenvolver as políticas educacionais, não existindo, no entanto, uma competência específica para definir o conteúdo dessas atividades. Ademais, formação e desenvolvimento através de escola pública é da responsabilidade do Estado, sobretudo para fins de integração social.

Os direitos foram assim contrapostos e entendeu-se que deles “deve-se conseguir, de acordo com a Lei Fundamental, uma concordância prática das limitações recíprocas, de forma que não apenas um deles seja preferido ou afirmado no seu grau máximo, mas que ambos sejam considerados válidos, e comparados da forma menos interventiva” (ALEMANHA, 2013).

Um primeiro aspecto analisado pelo Tribunal ao decidir esse caso foi o fato de a aluna não poder usar trajes de natação. Diante esse argumento, no entanto, a liberação das aulas foi- lhe novamente negada, tendo em vista ser possível por muçulmanas o uso de burkini. Essa indumentária, como exposto na decisão, cobre mãos, pés e rosto, de forma que ainda permite o contato com a água, sem impedir a atividade da natação. Sendo assim, a partir da aplicação das máximas da necessidade e da adequação e em observância às circunstâncias fáticas, com relação à alegação da aluna de não poder usar trajes de banho típicos da Alemanha, o tribunal decidiu que, diante da existência do burkini, o seu uso pode ser adotado como medida que permite a consecução de ambos os princípios, liberdade religiosa e acesso à educação, adequando-se ainda à realidade social. Assim, é uma medida idônea a proteger o direito alegado pela autora da demanda, atendendo ao seu desejo, que também não intervém de forma intensa no seu próprio direito à educação, nem com relação aos demais alunos. Portanto, apesar de ter sucumbido à demanda, em relação ao que foi pedido (liberação das aulas), a aluna teria seu direito atendido pelo Tribunal.

Com relação ao fato alegado de não poder estar na presença de pessoas do sexo oposto, nem de poder ser por elas tocada, a aluna teve novamente seu direito negado. O Tribunal alegou que, na sua competência em educação, o Estado também se preocupa com questões sociais mais amplas, como tolerância, o respeito ao próximo bem como a igualdade de gêneros no espaço público, o que deve também ser atendido por ele próprio ao tomar suas decisões. Ademais, a política de integração exigiria que a autora da demanda participasse das aulas obrigatórias de natação de sua escola, mesmo porque tal política necessita da participação dos dois lados – ela, com suas particularidades, e os demais alunos – e não haveria outro meio de proporcionar uma integração capaz de substituir a participação nas referidas aulas de natação (diante da necessidade de aulas de esporte nas escolas alemãs). Por fim, o dever de frequência a tais aulas torna-se adequado à consecução dos dois princípios, pela aluna e pelos demais, na medida em que contatos corporais com alunos de outro sexo podem ser evitados de forma pedagógica.

Diante do exposto, percebe-se que o Tribunal Administrativo Federal Alemão obteve uma decisão que buscou a integração da autora, no caso, aluna de origem muçulmana, a qual não teve seu pedido julgado procedente, em razão deste órgão ter tentado uma compatibilização de valores e interesses e a sua manutenção nas aulas exigidas pelo Estado. No entanto, destaque- se que o próprio Tribunal ressaltou a impossibilidade de se controlar judicialmente todos os casos em todas as escolas, deixando-se entrever que o problema é muito maior e deve ser resolvido politicamente pelo governo central.

4.2 PROTEÇÃO DA MULHER E SEGURANÇA NOS CASOS DO VÉU INTEGRAL E DO