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1.3 CIÊNCIA NORMAL E CRITICISMO: OS RISCOS DE UM

1.3.2 Lakatos: Normatividade vs Sociopsicologia

A contribuição de Lakatos ao debate Popper-Kuhn constitui-se numa pormenorizada revisão das teorias sobre a fundamentação do conhecimento científico, mais especificamente a respeito de questões acerca da sua racionalidade, do falibilismo e do falseacionismo das teorias e da metodologia científica. Com seu ensaio “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa” [Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes] (LAKATOS, 1979), Lakatos propõe retomar a tese popperiana do falseacionismo no seu aspecto mais forte, o falseacionismo metodológico, a fim de apresentar a sua própria versão da resposta de Popper à crise do justificacionismo na forma dos chamados programas de pesquisa.

A visão geral de Lakatos acerca do debate Popper-Kuhn pode ser figurada em dois eixos: primeiramente, Kuhn está certo a respeito do que há de ingênuo no falseacionismo, contudo, passou ao largo da posição mais sofisticada de Popper acerca do falseamento enquanto instrumento do progresso racional da ciência – aliás, posição que o próprio Lakatos procura revisar e corrigir a partir de um critério de demarcação e regra de eliminação mais sofisticados; em seguida, no segundo eixo Lakatos afirma que “tendo reconhecido o fracasso do justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do desenvolvimento científico” (Ibid., p. 112), Kuhn integraria o grupo de intelectuais que, no anseio de substituir o então falido ideal científico clássico da verdade demonstrada, estaria promovendo a opção sociológica da “verdade pelo consenso [mutável]” [ênfase do autor] (Ibid., p. 110), tombando assim no irracionalismo. Dessa forma, Lakatos está interessado tanto em apresentar sua interpretação da controvérsia entre os dois pensadores, quanto, principalmente, oferecer a sua resposta às questões mais amplas referentes ao próprio estatuto do conhecimento científico, posto em cheque pela ocorrência de teorias, ou programas de

pesquisa, a princípio e em algum grau, simultaneamente consistentes e incompatíveis – o autor se refere ao surgimento da geometria não- euclidiana e da física não-newtoniana.

Por outro lado, a crítica da validade da inferência indutiva, da prova da base empírica no âmbito da validação de uma teoria, da assunção de uma demarcação rígida entre proposições teóricas e observacionais, enfim, de certos critérios do falseacionismo dogmático e mesmo do metodológico, facilmente promoveria o mais absoluto ceticismo. O falseacionismo metodológico sofisticado esposado por Lakatos não se rende à absolutizações, nem mesmo do programa de pesquisa, mas também não abre concessão ao arbitrário. Para Lakatos, Kuhn acetou em apontar todos aqueles problemas, ele procedeu corretamente à essas críticas pontuais, mas ele próprio não propôs satisfatoriamente uma alternativa à interpretação do fazer científico, alternativa que buscasse compreender o que faz da ciência, apesar de tudo, uma busca racional.

Ainda que a interpretação de Lakatos, não proponha desvincular- se de um certo “convencionalismo” (Ibid., p. 128) – uma vez que substancialmente oriunda do falseacionismo metodológico de Popper –, do reconhecimento de um certo “fundo não-problemático” (Ibid., p. 130) na esfera das presunções teóricas, e, inclusive, da observância da história da ciência (Ibid., p. 140), a sua posição não permite pôr-se ao lado de Kuhn porque este teria tomado o caminho da explicação do êxito da ciência “em termos de uma psicologia social”, via mudanças de paradigmas (Ibid., p. 141). Com efeito, Lakatos aceita a história, mas não abre mão de um desenvolvimento científico baseado na racionalidade, garantida pela “transferência teórica consistentemente progressiva de problemas” [grifo do autor] (Ibid., p. 164). Ele afirma que a história da ciência tem demonstrado que os testes de teorias não ocorrem somente entre duas alternativas e que os próprios programas de pesquisa são antes “séries de teorias”,

[…] os elementos dessa série de teorias costumam estar ligados por notável continuidade, que os solda em programas de pesquisa. Essa continuidade – que lembra a 'ciência normal'

kuhniana – desempenha um papel vital na história da ciência […]. [grifo do autor] (Ibid., p. 161) Basicamente, em Lakatos, a satisfação da cientificidade de um programa de pesquisa está, ou melhor, deve estar solidamente calcada numa metodologia que garante o núcleo do programa, através de uma “heurística negativa” (Ibid., p. 163), isto é, que mostra os caminhos a se evitar; e que mostre os caminhos a prospectar, através da “heurística positiva” e o “cinto de proteção” (Ibid., p. 165) que ela promove.

Até aqui, em tudo poderíamos supor alguma similitude com a visão de Kuhn, mas o que se percebe em Lakatos, primeiramente, é que nunca se faz menção, ao menos decisivamente, a fatores extra-lógicos, ainda que possa haver variedade nas verificações empíricas, sobretudo, nem mesmo nos grandes desenvolvimentos científicos perde-se de vista a metodologia. Nesse sentido, Lakatos se opõe ao dogmatismo do paradigma kuhniano e sua respectiva ciência normal: “Esta, infelizmente, é a posição que Kuhn tende a advogar; na verdade, o que ele denomina 'ciência normal' nada mais é que um programa de pesquisa que logrou monopólio” (Ibid., pp. 190-191). Para Lakatos, só raramente e por períodos curtos há monopólios de programas de pesquisa, sendo mais corresponde à história da ciência as competições de programas de pesquisa e o pluralismo teórico a uma mera sucessão de períodos de ciência normal.

Finalmente, Lakatos enfatiza que “a estrutura conceptual de Kuhn para lidar com a continuidade na ciência é sociopsicológica: a minha é normativa” (Ibid., p 219), afirmação que Kuhn diz não ter compreendido (1979b, p. 293), uma vez que ele reconhece aspectos sociológicos presentes em determinados momentos da atividade científica, embora não julgue que isso sirva para fundamentar uma filosofia da ciência (Ibid., p. 291). Ainda nesse sentido, Lakatos reconhece em Kuhn a valorização de aspectos como a continuidade do crescimento científico e a tenacidade das teorias, porém, com Kuhn, eles surgem em detrimento da reconstrução racional do crescimento científico e da possibilidade lógica da descoberta. Com efeito, o “psicologismo” (Ibid., p. 221) de Kuhn estaria baseado na substituição do estudo da mente do cientista individual pela mente da comunidade científica. Ele revelaria verdades importantes e tristes, pois ignora a independência do conhecimento

inteligível dos sujeitos do conhecimento, o terceiro mundo de Platão e de Popper. Dessa forma, conclui Lakatos:

O programa de pesquisa de Popper visa a uma descrição desse crescimento científico objetivo. O programa de pesquisa de Kuhn parece visar a uma descrição da mudança na mente científica ('normal') (individual ou comunal). [grifo do autor] (Ibid., p. 223)

Kuhn procurou dirimir a crítica do psicologismo afirmando que sua abordagem da comunidade científica não estaria fundada na suposição de uma mente coletiva (1979b, pp. 296-297), mas antes na observação de certos ideias compartilhados. O pensador ainda rebateu esse ataque ao duvidar da própria representação de mentes científicas ideais executada por filósofos como Lakatos. Aliás, não deixa de ser interessante que Lakatos reprove a ausência de normatividade na filosofia da ciência de Kuhn. Se é verdade que a sua filosofia se caracterize por uma certa ambiguidade a respeito do modo normativo, não é menos verdade que o próprio Kuhn não tenha dado muito atenção a essa caráter. Curiosamente, essa ambiguidade também é notada por um filósofo que, supõe-se, teria algo a depor contra a normatividade.