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Lazer e currículo: conexões, conceitos e definições

1 INTRODUÇÃO

3.1 Lazer e currículo: conexões, conceitos e definições

Como discutido no capítulo anterior, é justamente a cultura que, ao mesmo tempo em que conecta, permite diferenciação e torna possível fazer relações produtivas entre currículo e lazer, compreendendo cada um dos campos com suas perplexidades, conflitos e problemas. É a cultura, localizada no meio dos dois campos, que permite composições e problematizações. Além disso, como afirma Gomes (2008, p. 3), “mesmo com as diferenças conceituais entre os autores da área verifico uma tendência, na atualidade brasileira, em compreender o lazer como uma dimensão da cultura”.

O lazer também é um espaço de criação e de produção de significados sobre o social e o cultural e pode ser analisado como uma máquina de ensinar, como um artefato cultural cercado de relações de poder e que possui um currículo. Pode, portanto, ser visto como uma prática cultural que produz sujeitos de subjetividades ou de identidades. Concordo com Paraíso (2010, p. 47), para quem, nessa perspectiva, a subjetividade é “construída, montada e fabricada por meio daquilo que vemos, ouvimos, vivemos, experimentamos, praticamos”, enquanto a identidade é concebida como “construída socialmente na relação com a diferença, como não unificada, incoerente, multifacetada, inacabada e em permanente processo de construção”.

O significado e o entendimento de lazer como o inverso das obrigações do trabalho produtivo, como o “não trabalho”, tempo livre ou desocupado dedicado à diversão, à fuga das

tensões advindas do trabalho cotidiano e à recuperação das energias, predomina no senso comum. Essas visões, aliadas à complexidade e multidisciplinaridade do tema, vêm instigando reflexões consistentes de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento sobre os significados históricos, sociais e culturais do lazer. De acordo com Gomes (2008), desde as últimas décadas do século 20, a temática vem ocupando um espaço cada vez maior no cenário social mundial, com a crescente formação de grupos de estudos multidisciplinares, pesquisas, debates e publicações.

Segundo Melo (2011, p. 68), “a palavra leisure surgiu no século XIV, com o sentido de oportunidade de fazer algo, derivada do francês medieval leisour, que era originário do francês antigo leisir, que significava ser lícito”. De acordo com o autor, o conceito moderno de lazer se sistematizou a partir do século XVIII, quando dicionários da língua portuguesa registraram a presença da palavra no vocabulário da época. Segundo Marcellino (1995), foi a partir da década de 1970 que os estudos sistemáticos sobre a temática do lazer tiveram início, apesar de ações profissionais no âmbito do lazer e da recreação terem ocorrido no início do século XX. Durante esse período, lazer e recreação eram entendidos como sinônimos e, segundo Melo e Alves Junior (2003, p. 15), essa aproximação entre os termos pode ser explicada pelo “resultado de traduções de textos de origem diferenciada (os termos recreation e leisure, do inglês ou loisir, do francês)”. Nesse sentido, Gomes (2003, p. 54) afirma que “nem sempre há congruência entre a significação de vocábulos originados a partir de uma mesma raiz etimológica, pois os sentidos de um determinado termo variam de acordo com o contexto”.

Mesmo admitindo existir relações e conexões entre o lazer e a recreação ao longo de sua história, deixo claro que não os entendo como sinônimos. De acordo com Miranda (1993), foi na década de 1940 que o conceito de recreação foi criado e amplamente difundido, primeiramente nos Estados Unidos. Gomes (2008, p. 89) afirma que o conceito de recreação constituía “um tema sociológico, surgindo com um sentido novo, social ou político social”. A recreação deixou de ser encarada simplesmente como um conjunto de atividades e passou a ser encarada como um movimento de alto valor social, vista como parte da religião, da educação e do próprio trabalho. Os parques de jogos, que até então eram locais destinados somente às crianças, passaram a ser frequentados por todo o resto da população e, consequentemente, tiveram seus programas ampliados. A recreação tornou-se a palavra de ordem para a formação de uma personalidade produtiva e cooperante, através dos jogos, esportes, música, teatro, trabalhos manuais e outras atividades.

da recreação comunial enriquecem a vida e são essenciais para a tranquilidade, a ordem e a segurança social. Estes são os grandes valores sociais da recreação”. De acordo com Gomes (2008, p. 90), “a fixação do movimento da recreação não foi um acontecimento natural”, uma vez que o processo fazia parte do projeto social e político vigente naquele contexto histórico, que tinha como objetivo, através de uma prática prazerosa e espontânea, a formação da nacionalidade, a disciplina e a incorporação de valores morais.

Entendo a recreação como uma expressão que engloba uma série de atividades de cultura popular organizadas, supervisionadas e difundidas, como forma de manutenção da saúde, da ordem e da força de trabalho. Em contrapartida, apoiado em Melo (2011), entendo o lazer como um fenômeno moderno, fruto do desenvolvimento de um modelo econômico, de uma organização política, de uma estruturação de um conjunto de posições acerca da vida em sociedade e de uma conformação das classes sociais, advindos da Revolução Industrial. Considero, portanto, o lazer como uma dimensão da cultura, caracterizada por meio da vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, que estabelece relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações – especialmente com o trabalho produtivo (GOMES, 2008).

Segundo Gomes (2008, p. 86), “no Brasil, ao longo da primeira metade do século 20, o foco das discussões e das práticas recaía sobre a recreação, mas nos dias de hoje, presenciamos uma maior valorização do lazer”. Isso se dá devido às inúmeras opções de estudo e de atuação profissional que o mercado de trabalho disponibiliza nesse âmbito, para profissionais formados em diferentes áreas do conhecimento. Atualmente, o lazer é visto como uma das áreas mais promissoras do século 21, uma vez que é considerado como fator fundamental para a busca da qualidade de vida, é assegurado como direito social e enxergado como pilar essencial para a sustentação de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

Bramante (1998) afirma que ao longo do tempo o lazer tem sido conceitualmente confundido com outras expressões, como a recreação e o jogo. Para o autor, o lazer é um campo interdisciplinar de estudos e pesquisas, enquanto a recreação é associada ao conceito de atividade. De acordo com o autor, “a recreação pode ser considerada como o produto, isto é, atividade/experiência, que ocorre dentro do lazer” (BRAMANTE, 1997, p. 123).

Seguindo a linha de entendimento da recreação como o conjunto de atividades desenvolvidas no lazer, Bruhns (1997) afirma que o lazer pode ser entendido como uma expressão da cultura e a recreação como uma atividade exclusiva do lazer. A autora afirma que a recreação aproxima-se do lúdico e alerta que essa aproximação pode gerar “uma certa

confusão de termos e objetivos, sendo o jogo visualizado como recreação” (BRUHNS, 1997, p. 39). De acordo com autora, enquanto a recreação é uma atividade exclusiva do lazer, o jogo, incorporado ao lúdico, pode acontecer em diversas situações. Porém, dependendo do contexto em que ocorre, pode não ser considerado como uma atividade de lazer, como, por exemplo, ao ser desenvolvido em uma disciplina escolar.

Pinto (1992) aborda os termos recreação e lazer de forma conjunta, como espaços privilegiados para a experiência do lúdico, “cuja preocupação central é a vivência de conteúdos culturais que possibilitem ao sujeito experienciar o lúdico em sua vida” (PINTO, 1992, p. 291). Em contrapartida, Camargo (1998) afirma que a utilização das duas expressões surgiu por causa de questões lingüísticas e que nem todas as línguas modernas possuem termos que correspondem às palavras recreação e lazer. Portanto, os conceitos “nada se diferenciam do ponto de vista da dinâmica sociocultural que produziu o divertir-se moderno” (CAMARGO, 1998, p. 33).

Assim, no início do século XX existia a necessidade de se estudar o lazer e a recreação, e essa demanda foi colocada em prática a partir do surgimento da “sociologia do lazer”, nos Estados Unidos e na Europa. Segundo Parker (1978), a sociologia do lazer era parte do desenvolvimento da sociologia em seu conjunto, cujas abordagens teóricas e métodos de investigação não eram totalmente peculiares ao lazer. De acordo com Sant’anna (1994), o que levou ao estímulo às pesquisas sobre a temática do lazer naquele momento histórico foi a preocupação, gerada por parte dos políticos e empresários, com o crescimento dos debates em relação à criação de mecanismos de regulamentação e diminuição da jornada de trabalho, fato que influenciaria diretamente o modo de utilização do tempo livre dos trabalhadores. Segundo Gomes,

isso evidenciou a necessidade da elaboração de modelos teóricos próprios para o lazer, empreendidos em diferentes áreas do conhecimento, os quais tiverem influência bastante significativa no Brasil, sobretudo no decorrer da segunda metade do século 20, pois, antes disso, o conceito predominante era o de recreação (GOMES, 2008, p. 97).

Junto com a necessidade de aprofundar os estudos sobre o lazer, vieram as iniciativas relacionadas com a formação profissional. A educação física foi uma das áreas onde foram estabelecidos laços com o campo de formação para o lazer. Isso se deve ao fato de os exercícios físicos, que higienizavam, moralizavam e fortaleciam os corpos, serem os mais adequados para o intuito da recreação. Dessa forma, os profissionais da educação física eram vistos como os responsáveis pela atuação nesse âmbito. Segundo Bramante (1992), desde o

início do século XX, no Brasil, a área presta serviços no campo da recreação e lazer. Apesar de somente em 1962, por meio do parecer número 298, a recreação ter sido incluída formalmente na formação profissional, ela é vinculada à área da educação física desde os anos 1930 (PINTO, 2001).

Nesse sentido, acredito que o currículo da formação profissional em lazer pode ser entendido tanto como um texto cultural, como uma prática de significação, quanto como um discurso produtivo ou como um texto produtor de sujeitos. De acordo com Paraíso (2010, p. 54), “dados os efeitos do currículo na produção de sujeitos, a escolha sobre que saberes selecionar, que significados priorizar, que estratégias adotar tem efeitos importantes no tipo de sociedade que contribuímos para construir”.

O desafio é encarar o currículo enquanto campo aberto de significação, indo na contramão dos projetos conservadores, que fecham esse processo de significação. Construir, portanto, currículos que tenham o objetivo de contribuir para a produção de sujeitos críticos que questionem aquilo que já foi significado. Compartilho da ideia de Paraíso (2010) de que o currículo é um campo aberto de significação, onde pessoas, forças e objetos se encontram, conquistam, experimentam, produzem, revitalizam, aumentam a potência de agir ou a força de existir e onde domínio, regulação e governo se entrecruzam. Corazza (2001) complementa essa ideia ao afirmar que essa força existe porque o currículo é exatamente o que fazemos com ele, por ele e nele.