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O legado dos filósofos Pré-Socráticos

pelo menos não de forma completa – a separação entre logos (razão discursiva) e nous

IV. O legado dos filósofos Pré-Socráticos

A fertilidade e a riqueza do pensamento pré-socrático puderam ser conhe- cidas e reconhecidas de três formas. A primeira delas consistiu nos fragmentos remanescentes de textos originalmente compostos (ou presumivelmente compos- tos) por eles. Esses fragmentos têm extensões variadas. Enquanto apenas algumas frases são conhecidas de Tales, por exemplo, quase toda a obra de Parmênides sobreviveu. Mas, no geral, são poucas as fontes originais. Elas aparecem princi- palmente dispersas em citações feitas nas obras de Platão e de Aristóteles e em citações feitas pelo filósofo neoplatônico Simplício (c. 490-c. 560) – um brilhante comentador da obra de Aristóteles –, pelo historiador platônico Plutarco (c. 46 – c. 120) e pelo biógrafo Diógenes Laércio (c. séc. III, d.C.) (DIÔGENES LAÊRTIUS, 1987)69. A compilação moderna mais completa dos textos dos Pré-Socráticos foi realizada por H. Diels (publicada em 1879, sob o nome de Doxographi Graeci), tendo sido revisada por W. Kranz (DIELS, 1879; DIELS; KRANZ, 1974)70.

69 Outras fontes originais incluem Sexto Empírico, Clemente de Alexandria, Hipólito e João Stobaeus (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2007).

70 A literatura sobre os Pré-Socráticos modernamente disponível é bastante extensa e pode ser encontrada tanto em livros como em artigos de revistas científicas especializadas. Ela

A segunda forma consistiu na doxografia, ou conjunto de comentários fei- tos por autores posteriores, os quais citam, comentam e, muitas vezes, também distorcem suas doutrinas e teorias. Dentre eles incluem-se Platão e Teofrasto71, mas talvez o mais importante de todos os doxógrafos dos Pré-Socráticos tenha sido Aristóteles (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2007).

A terceira forma é, do ponto de vista das ideias aqui desenvolvidas, talvez a mais interessante, pois ultrapassa o valor meramente histórico e consiste na so- brevivência de suas ideias e concepções, as quais foram incorporadas e transfor- madas ao longo de diversas gerações de pensadores, passando muitas vezes por assimilações tão profundas que não traem mais tão facilmente sua origem remota. Isso, entretanto, é fato corriqueiro na história do pensamento, e deve ser visto me- nos com estranheza do que com familiaridade.

As influências mais imediatas, no entanto, são hoje bastante conhecidas, como, por exemplo, na filosofia socrático-platônica. Platão foi o responsável por efetuar uma verdadeira reviravolta na perspectiva dos filósofos anteriores a ele, pois sua filosofia voltou-se, antes de tudo, para o homem, não para a natureza. Mas, quando o fez, ele já não podia ignorar as especulações dos filósofos da natu- reza, e acabou por assimilá-los de modo bastante eclético. Assim é que não somen- te os ingredientes fundamentais do problema eleático (o Ser e o Não-Ser de Par- mênides), como também aqueles que constituíram as soluções de Empédocles (doutrina dos quatro elementos) e Anaxágoras (Inteligência ordenadora/Demiurgo) passaram a ser vistos, posteriormente, como parte da filosofia de Platão72. Mais importante ainda, no caso de Platão, foi sua assimilação praticamente completa da filosofia pitagórica. Tanto que a importância que Platão daria à matemática pôde fazer-se sentir séculos mais tarde, quando os pensadores do Renascimento redes-

cobre desde temas exclusivamente filosóficos até temas relacionados com a evolução histó- rica dos conceitos da física (e da ciência em geral). Da mesma forma, existem estudos erudi- tos que versam tanto sobre o conjunto da obra dos Pré-Socráticos quanto sobre as obras individuais. Uma excelente compilação dessa bibliografia encontra-se disponível no endere- ço eletrônico <http://plato.stanford.edu/entries/presocratics>.

71 Cf. nota 31 acima.

72 Platão, de modo consistente com sua abordagem, muito voltada à epistème, relacionou o

Não-Ser ao “engano” (entre formas e formado– O Sofista), relacionou a Inteligência Divina de Anaxágoras à alma imortal (Fédon), em caráter particular, e ao Demiurgo, em caráter geral, e assimilou a doutrina dos quatro elementos em sua atomística de caráter geométrico- material (Timeu) (PLATÃO, 1997, 2010; KALKAVAGE, 2001).

cobriram a filosofia da natureza e a revestiram de pitagorismo e platonismo. Ape- sar do acentuado teor místico e mágico que marcou essa redescoberta, à matemáti- ca estaria destinado um papel de primeira grandeza, ao longo da Revolução Cientí- fica, e é difícil imaginar essa história sem a contribuição dos pitagóricos (BURTT, 1984; HALL, 1994).

A outra influência imediata foi sobre Aristóteles73. O sistema da física (e da metafísica) aristotélica é uma monumental construção que o próprio Aristóteles só considerou passível de edificação após combater, uma a uma, as doutrinas dos pensadores Pré-Socráticos que o antecederam. Ainda assim, uma parcela conside- rável da filosofia de seu mestre Platão foi absorvida (após profunda modificação) e, com ela, também algumas ideias pré-socráticas, sendo a doutrina das quatro raízes de Empédocles a mais evidente delas (ARISTÓTELES, 2008).

Mas algumas ideias muito mais profundas acabaram por ser compartilha- das. Quando Aristóteles construiu o seu sistema, ele o fez segundo princípios “or- gânicos”, transferindo para a natureza inanimada aspectos característicos da natu- reza viva. Com maior ou menor ênfase, tais princípios orgânicos (hilozoísmo, do grego hyle, matéria, e zoe, vida74) foram defendidos por boa parte dos Pré- Socráticos, exceção feita talvez apenas aos Eleatas e aos Atomistas (cujas doutri- nas, aliás, Aristóteles rejeitava em bloco). Quando Tales, por exemplo, falava do elemento água, a ideia de fundo era a de um princípio que participa de processos como geração, crescimento e nutrição. O mesmo se dava com Anaximandro, quan- do descreveu a geração das coisas concretas, a partir do seu apeíron, como um processo de crescimento que reflete intimamente o modo como ele se dá na nature- za viva. E considerações similares podem ser tecidas com respeito a Anaxímenes, Heráclito, Empédocles e Anaxágoras (ARISTÓTELES, 2008).

Do ponto de vista do advento da modernidade, é importante notar que a Revolução Científica se deu em contraposição à visão de mundo aristotélico- ptolemaica, e que o Renascimento, que a antecedeu, havia operado um profundo resgate das concepções platônicas. As teses pré-socráticas, que haviam sido consi- deradas e contestadas minuciosamente por Aristóteles, se constituíram, assim, em

73 A importância de Aristóteles com relação ao conhecimento do pensamento pré-socrático é, talvez, muito maior do que pode parecer à primeira vista. Como sua apresentação do pensamento pré-socrático visava estabelecer-se em termos polêmicos, é praticamente certo que o modo como Aristóteles os interpreta distorceu suas concepções para que elas se ade- quassem ao modo como ele próprio concebia o problema da natureza.

pontos de apoio naturais para os contestadores modernos do sistema aristotélico. Dois dos exemplos que citamos evidenciam claramente esse ponto: o atomismo democritiano, abraçado por Galileu (ainda que não sistematicamente) e por New- ton; e o pitagorismo, abraçado pelos renascentistas, que permitiu a homens como Galileu e Kepler fundarem a ciência moderna em bases matemáticas.

Outra contribuição para a história da ciência que merece ser destacada diz respeito ao fato de que os Pré-Socráticos foram os primeiros a articular, objetiva- mente, noções claramente ligadas às ideias de conservação e de transformação na natureza ao conceberem, ainda que em caráter especulativo, princípios materiais que subjazessem à pluralidade dos fenômenos mutáveis – permanecendo estes mesmos princípios imutáveis ao longo da cadeia de transformações. Esse problema guarda íntimas relações com o (sempre presente) problema filosófico da contrapo- sição entre realidade e aparência, mas remete, ainda que de forma vaga e indireta, também ao problema moderno da relação entre conservação e transformação de grandezas físicas no transcurso do tempo. Contudo, é preciso salientar que um considerável esforço teve que ser realizado, a partir do advento da física como disciplina autônoma, para: (i) definir precisamente o conceito de conservação, (ii) definir o que é uma grandeza física, (iii) identificar quais dentre elas eram conser- vadas e, por fim, (iv) determinar sob que condições eram de fato conservadas. Tudo isso só foi realmente possível dentro contexto de teorias matematicamente construídas, o que esteve fora do alcance dos Pré-Socráticos.

A ausência de formulação matemática não invalida, entretanto, o fato de que o tema ligado à conservação foi articulado pelos Pré-Socráticos em termos conceitual e qualitativamente similares aos da física moderna75. Uma evidência bastante luminosa de tal correspondência encontra-se na asserção de Demócrito do princípio segundo o qual “do nada, nada provém, e nada se torna nada”. Essa asserção é, na verdade, uma reelaboração do princípio eleático que afirma a eterni- dade e a indestrutibilidade do Ser76, e que fora adotado não somente por outros Pré-Socráticos, como Empédocles, mas também por Aristóteles e por Lucrécio77,

75 Ou seja, da física construída durante e após a Revolução Científica. 76 Cf. Parmênides, Sobre a Natureza (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2007). 77

Em sua obra de De Rerum Natura (Sobre a natureza das coisas), Lucrécio apresenta-se como defensor do atomismo de moldes democritianos, e afirma categoricamente que “nada

pode jamais ser criado do nada” e “a natureza resolve tudo nos seus átomos componentes e jamais reduz qualquer coisa a nada”. Cf. também nota 67.

passando então para a filosofia escolástica e para a física medieval78. Portanto, a despeito do fato de que os antigos não tivessem uma noção claramente definida de quantidade de matéria79, não é verdade que não tivessem claramente articulada uma noção relacionada com matéria e, da mesma forma, com um princípio geral de sua conservação (JAMMER, 1997)80.

Por fim, ao problematizarem a concessão de status de realidade ao movi- mento e ao universo dos fenômenos naturais em geral – cuja aparência revela sempre a mudança, o movimento, a geração e a dissolução – os Pré-Socráticos inauguraram uma tradição de investigação filosófica e naturalística que, tendo sido retomada com bastante vigor séculos mais tarde, se desdobraria no racionalismo e no mecanicismo modernos – os quais tornaram-se, respectivamente, as “imagens” de ciência e de natureza majoritárias do início do séc. XVII até o final do séc. XIX (ABRANTES, 1998).

Contudo, apesar da ampla correspondência que fizemos – em termos de analogia conceitual – entre as ideias dos filósofos Pré-Socráticos e as ideias que viriam mais tarde a fazer parte da história da física, já como disciplina autônoma (após a Revolução Científica), é importante termos em mente que, aos Pré- Socráticos, faltaram, sem dúvida, muitos elementos conceituais de fundamental importância.

78 “Ex nihilo nihil fit” – essa é a fórmula latina que será exaustivamente empregada para expressar a ideia de que o nada não tem poder para gerar coisa alguma. Na Idade Moderna, acabou sendo articulada em termos de um princípio metafísico, chamado princípio de razão

suficiente (assim denominado pelos filósofos racionalistas Espinoza (1632-1677) e Leibniz

(1646-1716)), e que, não coincidentemente, foi também a base para a argumentação a favor de quantidades conservadas, em particular, a energia (mais precisamente, a vis viva de Huy- gens (1629-1695) e Leibniz) (JAMMER, 1993, 1997, 1999; WESTFALL, 1977; DUGAS, 1988).

79 Segundo Jammer (1997), foi Simplício quem forneceu a primeira solução (errônea, por fim) para o problema (conceitual) da quantificação da matéria (ou seja, da associação de uma medida ou número à matéria). Para Aristóteles, matéria era um conceito ao qual não estava relacionado a noção de corpo (e, portanto, de magnitude). Ao introduzir a ideia de

forma material, Simplício acabou por definir quantidade de matéria como extensão (magni-

tude espacial), no que foi seguido pelos neoplatônicos e, em larga medida, também por Descartes.

80 De um ponto de vista mais geral, o problema envolvendo conservação e transformação condicionou o desenvolvimento da física durante toda a sua história. O destino desse par dicotômico foi a sua surpreendente união, no séc. XX, com o desenvolvimento das moder- nas concepções de simetria e invariância da física fundamental.

Do ponto de vista teórico, nenhum deles chegou a construir um verdadeiro sistema de leis que constituísse uma teoria física como a entendemos moderna- mente81. Isso se deve, em parte, ao fato de terem muitas de suas especulações fica- do adstritas a aspectos puramente qualitativos. O caso dos Pitagóricos é, sem dúvi- da, uma exceção, mas, suas especulações matemáticas não foram muito além do estabelecimento de algumas relações estáticas no campo da astronomia e da acústi- ca, o que é pouco para uma teoria física moderna. Aos Pré-Socráticos faltaram também ferramentas linguístico-conceituais, que só foram criadas algum tempo depois, grande parte delas pelo próprio Aristóteles. Porém, a ausência mais impor- tante foi, sem dúvida, a ideia de experimento. Tivessem eles – e outros, após eles – superado completamente a perspectiva majoritariamente contemplativa que pauta- va suas especulações sobre a natureza, é bastante possível que a Revolução Cientí- fica tivesse sido antecipada em vários séculos.

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81 O primeiro a fazê-lo foi, sem dúvida, Aristóteles. Entretanto, o seu sistema não é ainda exatamente parecido com uma teoria física moderna, pois lhe falta a matemática. Se adotás- semos, entretanto, critérios demasiado estreitos, deveríamos concluir que foi apenas com os

Principia de Newton que surgiu a primeira teoria física propriamente dita, o que claramente

parece ser bastante injusto não só para com muitos dos seus predecessores (e contemporâ- neos), mas também para com o próprio Newton! (Em sua Óptica, por exemplo.)

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