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O legado de Paulo Freire para a Expedição pelo riacho do Ipiranga

Capítulo 2 – Concepções sobre ciências, natureza e educação

2.3 O legado de Paulo Freire para a Expedição pelo riacho do Ipiranga

Seguindo a ideia já explicitada anteriormente de que a proposta da Expedição é disparar olhares para o campo, baseamo-nos nos conceitos de Freire (1974), que diz não existir nada mais limitante que a educação que não propicia ao sujeito mergulhar em experiências cercadas de debates e análises. É perigoso o ambiente que se utiliza de repetições de textos sem conexões e se impõe, com ênfases dogmáticas, às condições da vida. Posições ingênuas se concretizam através da sobreposição, sem integração de conceitos, da valorização definitiva da palavra que, desvinculada da realidade, se revela vazia. Não há abertura para a autenticidade, as ideias são ditadas e formatadas. As ordens são impostas. Os produtos finais se agregam com base na memorização e na redução do conhecimento. Essas situações nos revelam o quanto é prejudicial, para a formação dos indivíduos, a escolha dessa concepção educacional, visto que cerca a participação efetiva e manipula a consciência com farsas favoráveis aos benefícios de uma minoria que não se relaciona humanamente, mas com base em condições capitais.

Efetivamente o ensino de Ciências deve avançar perante o ensino definido como tradicional para que, de modo mais significativo, possa se envolver com questões atuais que englobam a sociedade e o ambiente. Assim, por meio do diálogo é possível formar um pensamento crítico que construa reflexões acerca do espaço, do tempo e da cultura para a conscientização dos sujeitos. Para esse fim se faz necessário articular referenciais que subsidiem entendimentos dos homens com o mundo, possibilitando-os intervir, gradativamente, de maneira crítica e responsável em seu mundo (FREIRE, 1997; 1987; 1974).

Dessarte, a Educação Ambiental Crítica foi outro referencial escolhido para oferecer suporte para o desenvolvimento do trabalho no ensino de Ciências, muito em virtude do olhar teórico ser embasado principalmente no pensamento crítico de Paulo Freire (CARVALHO, 2004; GUIMARÃES, 2004; LOUREIRO, 2004).

Carvalho (2004) acrescenta uma especificidade à EAC em relação ao pensamento de Paulo Freire: a formação de um sujeito não somente social, mas também ecológico, orientado a se sensibilizar com questões sociais e ambientais, ressignificando seu papel na natureza em conjunto com o outro humano. A EAC permite a delineação de racionalidades novas formatadas em um conjunto ético, político, cultural e ambiental em prol de um projeto pedagógico que só possui significado se pensado junto, se relacionando e relacionando-se com o mundo e na ausência da dicotomia e da

hierarquização entre tais dimensões. Esse novo modo de pensar colocado pela autora se refere a uma visão mais complexa de ver o mundo, característica evocada por Guimarães (2004) ao discorrer também sobre a EAC.

Para o autor, a EAC não deve ser entendida como uma evolução conceitual da Educação Ambiental Tradicional, no entanto, sua acepção concentra concepções distintas de ler o mundo. A primeira se refere à realidade como um conjunto de forças, conflitos e consensos que se interagem e se estruturam, sobre o movimento de inter- retro-ação do todo e das partes, num processo de totalização” (GUIMARÃES, 2004, p. 28). Já a EA Tradicional reduz e simplifica a realidade, fragmentando-a em pequenas partes que se isolam do restante. Em contrapartida, a EAC é vista como uma mediadora de mudanças.

possui enorme potencialidade. Potencializa desenvolver interpretações relevantes para o entendimento dos entraves, desafios e contribuições genuínas que a relação ambiente e educação pode acarretar às práxis pedagógicas críticas. Dessa forma, relaciona-se com ações educativas e sociais que contribuam para a transformação pedagógica e, de certa forma, para o social (SILVA, 2009, p.3).

Mediante o ponto colocado pelos autores, a composição da EAC progride em relação às práticas e às discussões reducionistas sobre ambiente, tendo em mente que estas se inserem comumente no ensino de Ciências no Brasil.

Podemos compreender essa tendência se nos atentarmos ao breve contexto sobre a origem da EA no Brasil. Esta teve sua origem institucionalizada na década de 1970 junto aos órgãos públicos e às organizações de conservação ambiental. A configuração resultou em um perfil funcionalista, organicista e uma direção normativa e informativa em relação às questões educacionais, haja vista os envolvidos possuírem formação técnica. Tal caráter acarretava um reducionismo no que compete à reflexão educacional sobre as implicações na sociedade dos projetos pedagógicos estabelecidos. Também é importante lembrar que esse contexto estava inserido no período da ditadura militar, a qual fragilizou movimentos sociais e reprimiu a educação, reduzindo, com isso, o caráter político de tais dimensões. Essa configuração tornou, em termos de ações governamentais, a EA alicerçada em uma divisão entre o político/educativo e o ambiental. Favoreceu a multiplicação de discursos que não se vinculavam aos debates sobre os modelos sociais em razão de uma visão naturalista e ingênua. A EA se formatou, assim, como um instrumento exclusivamente pragmático e como meio de adequar os comportamentos de acordo com as certezas ecológicas (LOUREIRO, 2004).

A partir dessa ponderação, começamos a perceber o porquê de muitas práticas atuais se manterem conservadoras, uma vez que nascem dissociadas de outras dimensões que não somente compõem a questão ambiental, mas que formam e deformam o nosso olhar e as nossas ações com visões fragmentadas. De acordo com Loureiro (2004), as ações que se caracterizam nesse sentido concentram-se no comportamento individual. Pressupõem uma relação já estabelecida entre homem e natureza, o que fortalece uma relação dicotômica entre essas partes. O comportamento valorizado é aquele que se pauta em um ideal único e correto perante o que é natural. Munidas desses pressupostos, tais ações ignoram taxativamente as construções históricas, aceitando previamente as condições e ordens sociais estabelecidas.

Contrapondo a visão mais técnica que esse ensino proporciona, é que Pataca (2010) aborda a perspectiva histórica como uma das principais vertentes de uma EA entendida como instrumento para desenvolver novas formas de compreensão. Essa estratégia permite que relações humanas sejam analisadas integradas ao meio natural, relacionando o tempo geológico com o tempo ditado pelos homens e incluindo dimensões passadas com ênfase no futuro das próximas gerações. Bittencourt (2003) atribui à historicidade como elemento imprescindível, tendo em mira que esse campo consegue considerar as diferentes relações entre espécie humana e exploração ambiental, as quais possuem uma história que não é homogênea, isto é, variam no espaço, tempo e intensidade, cabendo aos aspectos históricos localizar essas diferenciações.

Essa vertente histórica nos auxilia a entender com mais complexidade a natureza de questões ambientais atuais e que “desponta constantemente e de maneira angustiante” (MARTINEZ, 2005, p. 28) em uma megalópole como São Paulo. No caso do TC, utilizamos o olhar crítico e histórico para refletir sobre a relação que a cidade possui com as suas águas. Sua gênese é marcada pela relação homem e natureza dentro da constituição do próprio espaço percorrido. Esse processo se reflete nos rios invisíveis para a sociedade paulistana do século XXI, exemplificada através do riacho do Ipiranga. Assim como as mudanças de paisagem ao longo da Expedição, a qual pode, por exemplo, se apresentar mais moldada, como a entrada do JBSP, uma mata fechada onde se encontra uma das nascentes do riacho ou, até mesmo, profundamente urbanizada,

como no caso da Avenida Ricardo Jafet9. E que problematizadas e trabalhadas em

campo podem nos proporcionar experiências inusitadas, como nos sugere a fala do terceiro aluno do grupo 1.

“A nascente, né. Acho que a nascente foi uma coisa de grande surpresa. Não imaginava que

existia isso em São Paulo.”

Associando-se a esses pensamentos, é que a Expedição possui um caráter histórico, através da prática científica, para problematizar o ambiente no ensino de Ciências por meio de estudos históricos. Estes notadamente nos ajudam a entender a formação de nossa identidade e a discuti-la no contexto escolar sob um olhar crítico nos ambientes percorridos, complementados pelos referenciais a seguir.