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3 O DÉFICIT DE EXECUÇÃO DA LEI AMBIENTAL

3.2 A Legislação Simbólica

Tal como sutilmente observado ao cabo do capítulo antecedente, a perda da efetividade dos preceitos, sejam principiológicos ou puramente decorrentes de normas, faz emergir uma função preponderantemente simbólica de suas disposições.

Sobre a temática, leciona Neves que, no âmbito da noção abrangente de política simbólica, desenvolveu-se, especificamente a concepção de direito como simbolismo.192

Defende o autor que isso se deve ao fato de o direito ser concebido como uma maneira de referir-se às instituições governamentais em termos ideais, em vez de concebê-las realístico-objetivamente. Nesse sentido, ainda segundo Neves, é parte da função do direito

190 BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, DF, publicado no Diário Oficial da União, 02 set. 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 20 dez. 2010.

191 BRASIL. Resolução CONAMA n. 001, de 23 de janeiro de 1986. Estabelece as definições, as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Brasília, DF, publicado no Diário Oficial da União, de 17 fev. 1986. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res86/res0186.html.>. Acesso em: 20 dez. 2010.

reconhecer ideais que representam o oposto exato da conduta estabelecida, desenvolvendo-se, assim, um complicado mundo onírico.193

A partir dessa concepção, Neves, analisando a ideia de legislação simbólica, assim a definiu:

Considerando-se que a atividade legiferante constitui um momento de confluência concentrada entre sistemas político e jurídico, pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primaria e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico. 194

Em complemento, resumiu o autor que os efeitos latentes da legislação simbólica se contrapões aos efeitos manifestos da legislação instrumental.195

É relevante assinalar, visto isso, que não se trata de dar aos normativos que apresentarem nuances compatíveis com a legislação simbólica estigmas depreciativos. Absolutamente. Até mesmo porque o cunho simbólico da lei que apresente as características inerentes, pode estar estritamente relacionado aos fatores sociais que lhe servem de substrato, sem vincular-se, em ponto algum, à literalidade do seu texto.

Atento a isso, Neves assim contemporizou:

[...] o problema da legislação simbólica é condicionado estruturalmente, sendo antes de se falar em interesses sociais que a possibilitam do que de vontade ou intenção do legislador. 196

193 Idem, p. 25-26. 194 Idem, p. 30. 195 Idem, p. 31. 196 Idem.

Contudo, adverte o autor, nada impede que haja legislação intencionalmente orientada para funcionar simbolicamente.197 Segundo ele,

O objetivo da Legislação simbólica pode ser também fortificar a confiança dos cidadãos no respectivo governo ou, de um modo geral, no Estado. Nesse caso, não se trata de confirmar valores de determinados grupos, mas sim de produzir confiança nos sistemas político e jurídico. O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas. 198

De efeito, não é verdadeira, igualmente, a perspectiva de que o diploma legal que se apresente como simbólico irá guardar essa característica definitivamente, tanto quanto é inverídica a observação de que a legislação instrumental jamais será convertida em simbólica. Sucede que, consoante já referenciado, o suporte fático que à lei serve de substrato possui o condão de determinar seu caráter como simbólico ou instrumental.

É preponderantemente isso que leva Neves a asseverar que

É verdade que de determinada atividade legislativa com função primariamente simbólica pode resultar lei que, posteriormente, venha a ter uma intensa ‘força normativa’; como também, ao contrário, leis resultantes de atos de legislação instrumental podem com o passar do tempo adquirir caráter predominantemente simbólico. 199

Nessa mesma linha, Marcelo Neves alerta para a existência da legislação-álibi, espécie do gênero legislação simbólica. Defende ele que a legislação-álibi decorre da tentativa de dar

197 Idem, p. 31. 198 Idem, p. 36. 199 Idem, p. 30.

a aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador.200

O fenômeno, no entanto, não é recente, nem, tampouco, caracteriza-se como uma exclusividade brasileira.

Em verdade, tal como contextualiza Barroso, quase todos os regimes políticos, mesmo as ditaduras mais retrógradas, por tributo à virtude, invocam os elevados direitos incorporados ao patrimônio da humanidade, cuidando, apenas, de evitar que eles se tornem efetivos. 201

Fartos são os exemplos históricos que ilustram essa assertiva. A Constituição do Chile, outorgada em 1981, sob o manto de Pinochet, proclamava o caráter democrático da República em seu artigo 4º e os direitos essenciais da pessoa humana em seu artigo 5º. Contrariando todas essas regras, o poder no Chile se exerceu, até 1989, por vias de fato, em molde muitas vezes facinoroso, com permanente desrespeito aos direitos políticos e individuais.202

No cenário nacional, breve retrospectiva histórica é suficiente a descortinar exemplos desse teor. Rememora Barroso que

No Brasil, durante os anos sombrios do início da década de 70, encontrava- se em vigor o § 14 do art. 153 da Carta de 1969, que impunha às autoridades o respeito à integridade física e moral dos detentos e presidiários. Não obstante isto, muitas centenas de pessoas foram presas arbitrariamente, torturadas e mortas, sem qualquer operatividade do preceptivo constitucional. 203

Nessa ocasião, pondera o autor, além das complexidades e sutilezas inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica, havia no país uma patologia persistente, representada pela insinceridade constitucional. A Constituição, nesse contexto, tornava-se uma mistificação, um instrumento de dominação ideológica, repleta de promessas que não

200 NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 2007, p. 39.

201 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira, 3.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.62.

202 Idem. 203 Idem.

seriam honradas. Nela se buscava, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce.204

Não demanda esforços, pois, a conclusão de que a utilização da legislação simbólica pelas forças dominantes tem acompanhado a trajetória nacional desde os primórdios da instituição republicana.

Sem embargo, evitando-se percorrer as minúcias da teorização e vencido esse prelúdio inerente aos aspectos da legislação simbólica, resta impossível não traçar um paralelo entre a questão, ao ângulo jurídico-literário, e os preceitos da legislação protetora do meio ambiente.

Ocorre que o catálogo normativo ambiental, pelos motivos determinantes em relação à sua incorporação ao regramento nacional, traz consigo aspectos que se identificam com a legislação simbólica. Atento a isso, Krell foi eloquente na observação de que

A função política dessas normas, por sua vez, se opera através da consagração do valor meio ambiente na política local, possibilitando cidadãos e grupos a exercerem pressão contra governantes locais que não consideram aspectos ecológicos nos projetos de trânsito, criação de empregos, etc. Ao mesmo tempo elas cumprem uma função simbólica: o poder político utiliza as normas sobre proteção ambiental para fins de legitimação, sendo que o texto da LOM finge que o poder público municipal está respondendo aos problemas da comunidade. 205

Releva observar, ademais, que o regramento normativo ambiental teve sua origem, segundo, Mirra,

[...] influenciada por documentos internacionais na matéria, especialmente as Declarações das Nações Unidas de Estocolmo sobre o Meio Ambiente

204 Idem. p.293.

205 KRELL, Andréas J. Autonomia Municipal e Proteção Ambiental: Critérios para Definição das Competêncais Legislativas e das Políticas Locais. In A Aplicação do Direito Ambiental no Estado Federativo. Org.: Andréas J Krell. Coord.: Alexandre da Maia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 177.

Humano, de 1972, e do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. 206

Conforme Ramos

[...] A evolução da legislação ambiental no Brasil se deu ‘de fora para dentro’, como reflexo da interferência da ordem jurídica internacional sobre a ordem jurídica interna, com a introdução de vários mecanismos de proteção jurídica do ambiente no ordenamento jurídico brasileiro a partir da preocupação crescente da sociedade internacional sobre as questões ambientais e a pressão sobre os Estados para a adaptação da legislação interna aos instrumentos internacionais de proteção ambiental [...]. 207

Em seu momento inicial, portanto, a proteção normativa ao meio ambiente reflete nítido caráter de legislação simbólica, posto que se destina a transmitir à sociedade internacional a impressão de estar tratando, em nível legal, dos problemas inerentes ao meio ambiente, relegando a momento futuro a instrumentalização dos preceptivos legislativo- constitucionais regentes da matéria.

De fato, assim sucedeu-se, tendo em vista que a proteção legal ao meio ambiente natural surge, em âmbito nacional, tal como relatado por Ramos:

Em resposta às pressões da sociedade internacional contra a política de governo brasileira, que não levava em consideração a proteção do ambiente no projeto de desenvolvimento nacional, foi criada, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), culminando, mais adiante, com a edição da Lei nº 6.938/81, que estabeleceu a Política Nacional de Meio

206 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. O Problema do Controle Judicial das Omissões Estatais Lesivas Ao Meio Ambiente. In Revista de Direito Ambiental nº 15, julho-setembro/1999, página 61. Acessível em http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/esgotamento/o_problema_do_controle_judicial_das_ omissoes_estatais_lesiva.pdf Acessado em 05. jan. 2011

207 RAMOS, Érika Pires. Direito Ambiental Sancionador: Conexões Entre as Responsabilidades Penal e Administrativa. In A Aplicação do Direito Ambiental no Estado Federativo. Org.: Andréas J Krell. Coord.: Alexandre da Maia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 96-97.

Ambiente, dando início ao tão esperado processo de sistematização e do tratamento global das questões ambientais pelo Direito brasileiro. 208

Seguramente, pois, a defesa da lei ao meio ambiente é internalizada refletindo, nesse momento, a função ideológica de promover a confiança no Estado ou no governo (em sentido amplo), servindo como fórmula de representação retórica e álibi e, assim, identificando-se com a concepção de legislação simbólica pautada por Neves. 209

Malgrado, a assimilação da política nacional de proteção ao meio ambiente pelo ordenamento jurídico nacional resulta na sistematização dos preceitos legais regentes da matéria e traz na bagagem, ao nível constitucional, o implemento de uma profícua política de educação ambiental que já em seu inicio traz resultados positivos concernentes na instrumentalização dos preceptivos da lei ambiental. Dessa ocasião, o efeito que se segue é a mitigação dos efeitos eminentemente simbólicos dos normativos que, embora ainda deficitários em sua execução, conforme já abordado em linhas antecedentes, obtêm considerável carga de efetividade normativa.