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CAPÍTULO 3 O ARGUMENTO DE AUTORIDADE E LEGITIMIDADE: A AUTORIDADE NA

3.3 O USO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE COMO MECANISMO DE LEGITIMAÇÃO DE

3.3.2 Legitimação e desacordo

Jeremy Waldron, em sentido oposto, discorda de Raz quanto ao papel do direito como resultado de decisões majoritárias, apesar de ambos verem a necessidade de um critério para a identificação de qualquer norma como parte do ordenamento buscando sua aplicação na resolução de conflitos. O modelo de identificação de Waldron é diferente do de Raz por se basear na força do procedimento deliberativo realizado por uma assembleia de representantes que debatem a respeito de determinada temática e não somente na força autoritativa resultante da norma positivada (WALDRON, 1999, p.99).

Destarte, a visão waldroniana remete não só ao apoio da maioria a determinada causa com base na argumentação, mas ao próprio processo de adesão que afeta a legitimidade da norma a partir da sua validação. Dessa maneira, qualquer membro do grupo pode identificar o direito como resultante da decisão majoritária, seja ele favorável ou não ao conteúdo da norma. Mesmo que esse mecanismo de identificação seja considerado técnico por alguns, Waldron vê nele um método moralmente respeitável de um modo que outras convenções e decisões técnicas não conseguem ser (WALDRON, 1999, p.108).

Nesse sentido, embora se pense uma decisão da maioria como um princípio impessoal que não respeita a individualidade, Waldron defende a consideração dos indivíduos pelas decisões, de duas formas: 1) ao não estabelecer o consenso como necessário para a formação da norma, permitindo-se que cada um apresente suas razões e tente argumentar em sua defesa e 2) ao produzir o direito por meio de um processo legislativo previamente acordado, abraçando-se um princípio de respeito para cada participante do processo que ao final escolherá o que será seguido por todos, mesmo em caso de desacordo (WALDRON, 1999, p.108).

Destarte, responde-se a um suposto sentimento de descrença entre cidadãos que não teriam sua opinião considerada diante de milhões de pessoas envolvidas, especialmente considerando as falhas da democracia representativa. Afirma-se, também, que essa sensação pode ser real, mas a representação é apenas uma forma de respeitar cidadãos e por meio de procedimentos deliberativos é possível encontrar mecanismos produtores de resultados eficientes.

Essa importância dada ao procedimento se deve à rejeição por Waldron, assim como por Raz, de uma noção de verdade previamente estabelecida, devendo essa ser substituída pela visão de verdade construída procedimentalmente pautada pelo dever de respeito ao desacordo, diante de um consenso impossível em diversas situações. Respeito, nesse sentido, envolve a forma como se trata a crença alheia sobre o que seria justo em circunstâncias onde nenhuma posição política é autoverificável e o debate vai determinar qual crença suscetível à controvérsia se tornará o caminho a ser percorrido (WALDRON, 1999, p.111).

Remetendo a Rawls, o desacordo deve-se ao fato de muitas das decisões serem tomadas com base em questões e condições nas quais não é esperado que pessoas conscientes, e com total discernimento, cheguem a alguma conclusão (RAWLS, 1993, p.56). Partindo-se da ideia de que a vida humana envolve valores múltiplos, é natural que haja um desacordo sobre quais devem prevalecer sobre os demais, especialmente em sociedades que abrigam contextos diversos e nas quais a noção de mundo varia imensamente. Diante disso, Waldron defende o respeito ao desacordo como base dos procedimentos deliberativos (WALDRON, 1999, p.112).

Isso só seria possível se a decisão do problema fosse vista de modo diverso da escolha aleatória ou entrega da deliberação a um indivíduo segundo o modelo hobbesiano, no qual a autoridade suprema pode fazer o que bem entender. A visão majoritária seria fundada pela associação entre (1) escolha da maioria de participantes do debate político de quais valores seriam positivados e (2) respeito pelos indivíduos e suas opiniões pessoais. Desse modo, o próprio procedimento de escolha legitima a força da decisão final e não haveria, portanto, aleatoriedade na escolha das diretrizes políticas e nem muito menos uma carta em branco para a autoridade implementá-las da forma que bem entendesse.

O processo de escolha majoritária daria igual peso à visão de cada pessoa, escolhendo-se uma dessas opiniões para ser a do grupo. Isso remeteria, segundo Waldron, a uma tentativa de dar a cada um o maior peso possível no procedimento, assim como uma compatibilidade com a opinião de todos os demais. Não somente a visão individual pode ser, portanto, minimamente decisiva, mas esse método dota-a de um poder de decisão máximo que só poderia se restringido pela decisão igual dos demais participantes. Nesse sentido, a decisão majoritária coloca a si mesma como um método justo de decisão (WALDRON, 1999, p.114).

A preponderância da decisão majoritária só é possível devido ao surgimento de uma obrigação moral por parte da minoria de se submeter à decisão advinda da maioria, sendo essa uma demonstração de respeito e de justiça. Todavia, o argumento só ganhará força à medida que consiga convencer aqueles envolvidos e vença a disputa com os demais, muito embora os procedimentos que levem a essa vitória possam variar significativamente em cada caso. O ônus argumentativo, portanto, deve ser do indivíduo, mas o ordenamento deve garantir as condições necessárias para que os argumentos possam se opor do modo mais justo possível.

Nesse âmbito, Waldron afirma que apesar de a legislação parecer muitas vezes construída de forma arbitrária devido à possibilidade de um mero voto, por pouca ou nenhuma razão aparente, alterar a vida e os interesses de milhões, o processo de formação das maiorias não é meramente técnico e estatístico, mas comprometido com a realidade e materializado nas mais diversas condições políticas, o que torna a decisão majoritária ainda mais relevante diante de desacordos infindáveis que prejudicam a todos (WALDRON, 1999, p.117).

A autoridade da legislação, entretanto, não poderia ser explicada apenas na decisão majoritária, mas estaria também vinculada ao senso de urgência moral e à importância que é dada à solução de certos problemas; ou seja, Waldron defende a existência de uma vinculação moral entre as dificuldades e a necessidade que as sociedades têm de resolvê-las como formas de legitimação da autoridade da decisão positivada. Pode-se exemplificar a questão dizendo que um problema gravíssimo que precisa urgentemente de solução cria, na sua própria existência, a autoridade moral para que a decisão majoritária o resolva, dentro das circunstâncias da política específicas e do nível de desacordo existente27 (WALDRON, 1999, p.118).

Ao longo desse trecho, explicou-se porque a posição de Waldron sobre a autoridade e a decisão é baseada força da maioria. A partir daqui, todavia, far-se-á o contraponto dessas ideias com o intuito de mostrar que a visão de Raz sobre o tema não nega a legitimação pelo procedimento, seja ele legislativo ou judicial, mas amplia essa visão de forma construtivista, encampando a autoridade, e sua consequente remissão pelo argumento de autoridade. Desse modo, afirma-se que ambas estão baseadas na justificação independente do conteúdo associada à legitimação individual contínua do direito, sempre tendo em vista tratar-se de um contexto de razão prática.