• Nenhum resultado encontrado

2 O PAPEL DO DIREITO NA PROTEÇÃO DA MULHER E NA INDUÇÃO DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS

2.4 A LEI MARIA DA PENHA (LEI Nº 11.340/06) NO CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO

Conforme retratado, a proteção da mulher em face da violência vem ganhando espaço na agenda dos direitos humanos após várias discussões no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), estando o tema presente em diversos documentos jurídicos: na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; na Declaração sobre a eliminação da Discriminação contra a mulher de 1967; na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979, cuja ratificação do Brasil se deu em 1984; na Declaração de Direitos Humanos de Viena em 1993; na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos em 06 de junho de 1994, (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995.

Desde a década de 1970, a temática da violência contra mulheres é uma das prioridades dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil. No início dos anos 1990, estes movimentos de vários países da América Latina, incluindo o Brasil, lutavam pela adoção de leis específicas e abrangentes sobre a violência doméstica contra mulheres. Diversamente de dezessete países da América Latina, o Brasil, até 2006 não dispunha de legislação específica a respeito da violência contra a mulher. A maior parte dos países adotou uma lei sobre esta temática em meados dos anos 199076.

No âmbito nacional, o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) promoveu a incorporação das normas internacionais de direitos humanos ao sistema jurídico-normativo nacional, ratificando as convenções, protocolos e planos internacionais relativos aos direitos das mulheres, além de outros instrumentos internacionais de direitos humanos.

A adoção destes instrumentos internacionais de proteção dos “direitos humanos das mulheres” abriu caminho para mobilizações jurídicas por parte das organizações não governamentais de direitos humanos e de organizações feministas. No final do seu segundo mandato, Cardoso criou a Secretaria de Estado

dos Direitos da Mulher – SEDIM, através da Medida Provisória 37, de 8 de maio de 2002. O governo de Lula (2003-2010), por sua vez, criou as condições necessárias para que os movimentos feministas e de mulheres lograssem a aprovação de duas leis: uma sancionada em 2004 (Lei 10.886/2004), que alterou o Código Penal e introduziu o crime de “violência doméstica”77, com pena de detenção de seis meses

a um ano, e a Lei “Maria da Penha”, sancionada dois anos depois, que criou mecanismos amplos para coibir, punir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Pode-se identificar, portanto, três momentos distintos na evolução do aparato interno: Primeiro, com a criação das delegacias da mulher, em 1985; Segundo, com o surgimento dos Juizados Especiais Criminais, em meados dos anos 1990; Terceiro, com o advento da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, a chamada Lei “Maria da Penha”.

A Lei Maria da Penha veio se opor especialmente à Lei dos Juizados Especiais - Lei 9.099/95 que, ao tratar as agressões cujas penas não fossem superiores a um ano como infrações penais de menor potencial ofensivo, ensejava a transação penal, permitindo ao agressor eximir-se da pena pagando cesta básica, gerando banalização da violência e tornando crescente a impunidade e o risco às mulheres. Tal fato não resolvia o problema da violência, ao contrário, tornava ainda mais tensa a relação daquelas que decidiam denunciar e eram obrigadas a continuar convivendo com o agressor, retroalimentando – cada vez em maior gravidade – o ciclo de violência.

O que se percebia antes da entrada em vigor da lei era que as mulheres que procuravam os órgãos de proteção não buscavam lutar contra a violência sofrida, e sim recuperar a harmonia familiar e o retorno à casa. O movimento tinha pouca credibilidade principalmente em virtude do pensamento de que este tipo de violência só ocorria em famílias de classe baixa, repletas de problemas sócioeconômicos e com presença corriqueira do alcoolismo. Era preciso uma lei específica com inegável

77 Art. 129 [...]

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).

viés de gênero que passasse a reconhecer a violência como uma violação a direitos humanos.

Essa percepção mudou, quando Marcon Antonio Herredia Viveiros, colombiano, naturalizado no Brasil, professor universitário de economia, classe média alta, branco e bastante conceituado nos meios intelectuais tentou matar a sua esposa duas vezes. Neste momento, Maria da Penha Maia Fernandes (farmacêutica, pós-graduada) denuncia o crime praticado contra ela, mas espera 19 anos e meio para ver seu agressor condenado. A morosidade e a impunidade da justiça brasileira fizeram com que Maria da Penha ajuizasse ação contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, acarretando na decisão final que declarou o Estado Brasileiro omisso e negligente em relação ao combate da violência doméstica. A CIDH publicou o Relatório 54/2001, caso 12051, condenando o Brasil por “dilação injustificada” e “tramitação negligente”.

A promulgação da Lei Maria da Penha gerou, a princípio, discussões acerca da sua constitucionalidade por afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres, gerando decisões judiciais excêntricas, como esta de 2007, da comarca de 7 Lagoas/MG:

Se, segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus por isto — Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez brasileiros o têm como Filho Daquele que nos rege. Se isto é verdade, o Evangelho Dele também o é. E se Seu Evangelho — que por via de consequência também nos rege — está inserido num Livro que lhe ratifica a autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilidade — filosófica, religiosa, ética e hoje inclusive histórica. Esta “Lei Maria da Penha” — como posta ou editada — é portanto de uma heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta.

Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem78.

O STF, pacificando a questão, julgou, em 2012, a Ação Direta de Constitucionalidade – ADC n. 19, concluindo pela constitucionalidade da lei, e a exclusividade de sua destinação à proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. O relator, Min. Marco Aurélio sustenta, em suma, que, se por

78 Processo nº 222.942-8/06, sentença proferida em 12 de fevereiro de 2007 pelo juiz Edilson Rodrigues. Por esta decisão o magistrado respondeu a processo administrativo disciplinar, que determinou o seu afastamento pelo período de dois anos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

um lado, a intimidade favorece a ocorrência de delitos domésticos e familiares para todas as pessoas, por outro, há um componente histórico de desigualdade de gênero que implica na maior vulnerabilidade social feminina demonstrada estatisticamente, o que justifica constitucionalmente, portanto, a celebração de compromissos legislativos e ações públicas de combate à violência doméstica e familiar peculiares às mulheres.

Frisa ainda que, sob o enfoque constitucional, consignou-se que a norma seria corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais. Sublinhou-se que a lei em comento representaria movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à justiça.

Discorreu-se que, com o objetivo de proteger direitos fundamentais, à luz do princípio da igualdade, o legislador editara microssistemas próprios, a fim de conferir tratamento distinto e proteção especial a outros sujeitos de direito em situação de hipossuficiência, como o Estatuto do Idoso e o da Criança e do Adolescente – ECA.

A Lei Maria da Penha trata da criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, altera o Código Penal, de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Em seu Capítulo II, art. 9º, dispõe sobre a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, que deve ser prestada de forma articulada, conforme os princípios e as diretrizes previstas da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), no Sistema Único de Saúde e no Sistema Único de Segurança Pública.

O acesso à Justiça permitido pela Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a Violência doméstica, tendo criminalizado as agressões sofridas sejam elas físicas, psicológicas, sexuais ou patrimoniais, praticadas por questões de gênero. Trata-se de um avanço na atividade legislativa – na verdade, registre-se, sem o caráter de espontaneidade da Casa, visto que decorreu de uma pressão internacional da OEA – que se configura em verdadeira ação afirmativa, uma vez que busca compensar um passado discriminatório para alcançar um futuro de igualdade substantiva/material por parte de um grupo vulnerável de mulheres79.

79 PIOVESAN, Flávia; PIOVESAN, Luciana; SATO, Priscila Kei. Implementação do direito à

igualdade. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 199.

2.5 O ESTADO MODERNO E A SEGURIDADE SOCIAL: A PROTEÇÃO À MULHER