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Capítulo 2 Poder Disciplinar e as Práticas Psicológicas

2.3 Lei e norma: apropriação das práticas psicológicas pelo judiciário

Para entendermos melhor a emergência do poder normalizador das ciências psis, é necessário reportar-se ao fim do século XVIII, onde encontramos o que Brunini (2016) considera ser o campo de influência sobre as teorias e práticas da psicologia a partir das transformações reformistas do direito penal, que, baseadas no contrato social – em que a punição decorre da desobediência à regra do contrato –, permitiram o surgimento ou apoio mútuo entre as disciplinas: psicologia e direito.

Para Brunini (2016), isso se deve à mudança de paradigma, em meados do século XVIII, na tipificação das penas, em que os crimes e condutas ditas delinquentes passam a configurar

crimes contra o patrimônio, afronta ao direito de propriedade e aos interesses da burguesia. Consequentemente, assinala Brunini, o sistema de punição é alterado, e os suplícios cedem lugar às prisões como espaço de castigo e regulação social. A autora aponta ainda que, em decorrência dessa transformação, progressivamente a punição deixa de ser sinal exclusivo de castigo para incorporar também a função pedagógica de ressocialização. A representação social dessa modalidade de punição traz consigo a preocupação em corrigir e garantir o bom andamento do ordenamento social.

No início do século XIX, as preocupações sobre o indivíduo criminoso e as razões dos seus delitos compunham os ideais dos argumentos moralistas (Coimbra, 2003). Com o direito positivo, a moralidade atinge o principal critério de verdade sobre os fatos e reveste-se de discursos “científicos” higienistas, com efeitos significativos na administração de problemas de ajustamentos no cenário jurídico.

A Psicologia Jurídica, hegemonicamente, tem-se constituído em ferramenta de adequação e ajustamento do homem. Reificam-se os conceitos morais considerados, por muitas teorias psicológicas utilizadas, como universais, naturais e ahistóricos, apoiados em critérios de “certo X errado”, “bem X mal” e instituindo modelos de ser e de estar no mundo segundo padrões de normalidade produzidos como únicos e verdadeiros (Coimbra, 2003, p. 8).

A objetividade e neutralidade requeridas pelo direito positivo fez com que o interesse pelo criminoso, “anormal”, ou seja, pelo perigoso fosse a prioridade no judiciário (Coimbra, 2003). Contrariamente à representação do direito clássico - pautado no livre arbítrio, em que todos deveriam ser responsabilizados pelos seus atos, à exceção daqueles com perturbações dos sentidos e da inteligência:

Seus interesses são a investigação da subjetividade, da interioridade dos criminosos, além de definir os meios adequados de tratamento para transformá-los em cidadãos disciplinados e obedientes, visto que os métodos anteriores, pretendendo somente punir o crime, não surtiam efeito educativo sobre o criminoso. A pena tem, pois, o caráter duplo de recuperação do indivíduo e de proteção social (Jacó-Vilela, Espírito Santo e Pereira, 2005, p. 21).

Os arranjos disciplinares decorrentes da necessidade de subsidiar os processos avaliativos realizados pela psiquiatria e dos interesses dos saberes criminológicos emergentes constituem um desenvolvimento importante na etapa de governamentalidade.

Com a aliança entre a psicologia e direito, e “a crescente importância da norma em relação ao sistema jurídico da lei nas sociedades disciplinares não significava um declínio do direito.” (Arantes, 2011, p. 2). Pois continuam agenciando-se, imbricando-se. Porém, isso não significa que não exista tensão e disputa entre as regras jurídicas e as normas psicológicas (2011).

No contemporâneo, para Arantes (2011), as práticas psicológicas que emergiram significam um rearranjo em termos de estratégias desse poder. Ao colocar inicialmente a pergunta:

Perguntamos: estariam estes “novos” rearranjos entre prática judiciária e prática psi, do qual o mal-estar entre os psicólogos jurídicos parecer ser sintoma, assinalando um novo regime de dominação no contemporâneo, em relação ao qual ainda não ganhamos clareza? Ou trata-se apenas da intensificação das disciplinas? Seria este rearranjo um contra-ataque da lei contra a sua colonização pela norma? Ou trata-se apenas de mais um episódio de rearrumação dos lugares?

Therense et al. (2017) também compartilham essa suspeita em relação às práticas não periciais e alertam para o risco de se aderir a programas que implicam o propósito da norma. Porém, Arantes (2011) afirma que

há quem comemore o advento de tais programas apontando o que eles supostamente significam em termos de benefícios para as vítimas, para a sociedade ou para os usuários de drogas, ou mesmo em termos do alargamento do mercado de trabalho para os psicólogos.

A autora lista uma série de práticas psicológicas contemporâneas e as analisa em termos de atualização da normalização: sobre a destituição do poder familiar; da guarda dos filhos; da imposição de tratamento; da internação de crianças e adolescentes; do depoimento sem danos; da justiça terapêutica etc. Não é o nosso objetivo descrevê-las nem analisá-las, mas para ilustrar situamos a discussão em relação ao depoimento sem dano.

Para Arantes (2011), o programa de depoimento sem dano, em que a criança vítima de violência é inquirida em audiência mediante a assistência de um(a) psicólogo(a) ou assistente social, porém em local reservado interligado a outra sala através de som e imagem, não identifica a prática como “psi”, pois nessa situação o técnico torna-se “‘instrumento’ ou ‘boca’ humanizada do juiz” (p. 12). As perguntas dirigidas à criança passam pelo crivo do técnico, que, através de sua aptidão científica específica converte a questão de acordo com a circunstância e capacidade da criança. Vê-se portanto uma nova tecnologia disciplinar que difere-se radicalmente das práticas clássicas de avaliação psicológica. O subsiste é a orientação para a necessidade do processo, para o subsídio ao magistrado.

Para Foucault (2012), o Estado incorpora os discursos científicos e opera uma recodificação desses saberes. Com efeito, de acordo com Casaleiro (2016), o confronto do direito com as novas disciplinas, exteriores ao direito, gerou a necessidade de controlá-las, num movimento simultâneo de incorporação e recodificação. Consequentemente, segundo a autora, o modelo punitivo do direito antigo dá lugar a uma forma mais sofisticada de controlar e corrigir desvios. “A normalização é, assim, contraposta a um modelo de proibição-punição do direito e visa criar corpos dóceis” (Casaleiro, 2016, p. 177)

Hur (2013b) ressalta que a prática do psicólogo que atua em repartições públicas está regida pela regra da instituição que o contrata; com isso, geralmente fica sua atuação em conformidade com os objetivos políticos da instituição que o emprega. O efeito imediato dessa condição de vínculo empregatício é a tendência de o profissional executar suas práticas conforme os interesses políticos da instituição, comprometendo uma criticidade ao próprio fazer.

CAPÍTULO 3

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