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3.1 Argentina

3.1.3 Lei Superior de Educação, n.º 24.521, de 7 de agosto de 1995

De maneira geral, a Lei de Educação Superior n.º 24.521, de 7 de agosto de 1995, forjou-se nas circunstâncias do liberalismo dos anos 1990, um consenso acerca da necessidade de mudanças na educação superior com vistas à sua adequação à “[...] emergência de um novo paradigma produtivo baseado no poder do conhecimento e no manejo adequado da informação”.64 Coraggio (2001, p. 2) ressalta, a propósito do Banco Mundial, que a “[...] informação empírica e o conhecimento – para produzi-la, organizá-la, interpretá-la e gerar as aplicações à resolução de problemas complexos – são o principal meio de produção, insumo e produto de uma nova economia. Sobre isso há acordo generalizado na cultura ocidental”.

No âmbito dessas determinações promulgou-se, na Argentina, a Lei Superior de Educação (n.º 24.521, 7 de agosto de 1995), que ampliou e complementou a Lei Federal de Educação. Pela primeira vez se ditou uma lei especificamente voltada à regulamentação da Educação Superior – universidades públicas e privadas e institutos não universitários públicos e privados. Nosiglia (2000, p. 211) considera que a lei significou “[...] a consolidação de um conjunto de propostas para este nível de ensino que foram sendo instrumentalizadas progressivamente pelo Poder Executivo Nacional, baseado nos delineamentos do Banco Mundial sustentado em

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pressupostos político-ideológicos neoliberais”.65 A Lei encontrou importante resistência na comunidade acadêmica.

Almandoz (2000, p. 72-73) assinala que, embora a Lei tivesse o mérito de ordenar a Educação Superior em um mesmo sistema jurídico, ela feriu dois princípios fundamentais da educação universitária: a autonomia e a gratuidade, princípios sacramentados a partir da Reforma Universitária de 1918.66 A autonomia identificou-se com a possibilidade de as administrações universitárias procurarem recursos e financiamento por conta própria, vendendo ou comprando serviços, para assegurar sua sobrevivência dentro da lógica das relações mercantis.67

Apesar das resistências que se lhe opuseram e de sua implantação parcial, a Lei de Educação Superior significou uma importante mudança na relação entre Estado e universidade, sempre tendo presente os dois princípios assinalados: autonomia e gratuidade. Com a Lei de Educação Superior, o papel do Estado passou a ser de “avaliador”, tal como orientam os órgãos multilaterais (em especial o Banco Mundial) que diagnosticam a necessidade de mudar as “altas casas” de estudo para adaptá-las à lógica da eficiência e do lucro. Em seu título IV a Lei destaca que os cursos (carreiras) serão avaliados periodicamente pela Comissão Nacional de Avaliação e Credenciamento (Acreditação) Universitário68 ou por entidades

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Vale lembrar que a legislação educacional anterior não contemplava o sistema superior não universitário, nem regulava o subsistema privado.

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Os principais postulados da Reforma Universitária de 1918 eram: autonomia, co-governo, livre docência, revisão dos conteúdos e métodos, concurso público (reduzindo o “poder” das cátedras vitalícias), gratuidade e extensão. Esta reforma serviu de base para muitas reformas universitárias na América Latina, como as do Uruguai, do Peru e do Chile.

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O princípio da gratuidade fraturou-se diante do instrumento legal que introduz e permite cobrança de tarifas no sistema universitário – ou, como se preferiu chamar em algumas universidades, “contribuição voluntária”. Na Universidade Nacional de Córdoba, em algumas faculdades implantou-se a “contribuição voluntária”, uma “disfarçada” maneira de cobrar.

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“La Comisión Nacional de Evaluación y Acreditación Universitaria es un organismo descentralizado, que funciona en jurisdicción del Ministerio de Educación” (artículo 46). Esta Comisión tiene diversas funciones, coordina la evaluación, acredita carreras de grado y de postgrado, autoriza nuevas instituciones universitarias, se pronuncia sobre la consistencia y viabilidad del proyecto institucional, prepara los informes requeridos para las autorizaciones provisorias de funcionamiento de las instituciones privadas. Esta comisión está integrada por doce miembros designados por el Poder Ejecutivo Nacional a propuesta de diferentes organismos: Consejo Interuniversitario (3), Consejo de Rectores de universidades Privadas (1), Academia

privadas. Define-se, também, que as auto-avaliações das instituições universitárias devem ser complementadas por avaliações externas a cada seis anos, no mínimo.69

Na lógica da diversificação desse nível de ensino – como no Brasil – a Lei estabelece o sistema integrado de ensino superior incorporando os institutos superiores não universitários. Seu artigo quinto reza que:

A Educação Superior está constituída por instituições de educação superior não universitária, sejam de formação docente, humanística, social, técnico-profissional ou artística, ou por instituições de educação universitárias que compreendem as universidades e os institutos universitários (LSE, art.5)

Nesse contexto a questão do financiamento, em clima de prioridade para o equilíbrio fiscal e de escassez dos recursos públicos para a Educação, se torna central para redefinir as políticas da Educação Superior. Coraggio (2001, p. 5) alerta para o fato de que aqueles países que não articulassem a Educação Superior não universitária e multiplicassem as opções de aprendizagem formal e não formal teriam a demanda pela Educação Superior recaindo sobre as universidades. Esse prognóstico “[...] aplicado mecanicamente como exigência do crescimento quantitativo de um sistema universitário” leva à conclusão de que “[...] seria impossível atender satisfatoriamente a essa demanda com recursos públicos”. A Lei de Educação Superior na Argentina não fugiu a essa premissa.

A obrigatoriedade de os professores e professoras das universidades (artigo 36) possuírem títulos de pós-graduação foi fruto também de um Estado avaliador que gerou novas regulamentações para o setor docente. Segundo Follari (2002, p. 338), a exigência de formação em nível de pós-graduação constituiu-se em um dos pontos significativos para o início da modernização universitária argentina, modernização já consolidada em países como México e Brasil. Em um lapso de

Nacional de Educación (1), cada una de las Cámaras del Congreso Nacional (3), por el Ministerio de Educación (1). Sus funciones durarán cuatro años, con sistema de renovación parcial (Art. 47).

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As universidades passaram por um processo de auto-avaliação, organizada por cada uma delas, solicitando, logo, a avaliação externa.

cinco anos, lembra o autor, a pós-graduação seria condição para aceder à categoria de professor/a universitária/o. Desse modo, o autor salienta que em

[...] dois ou três anos se instalou na Argentina um fluido mercado de ofertas (a maioria organizada em Buenos Aires para o interior do País, algumas no exterior) incentivando uma grande massa de profissionais da Universidade a realizarem estudos de pós-graduação, em especial os mestrados.70

Diante da “precária implementação” da Lei de Educação Superior, especialmente no que se refere à arti culação das instituições de Educação Superior – Universitárias e não universitárias –, o Plano Federal de Educação (2002-2003) procurou restabelecer a integração entre as duas modalidades. Esta problemática será retomada no próximo capítulo quando trataremos especificamente da questão da formação docente nos institutos terciários.

À guisa de síntese

Como vimos, as promulgações da Lei Federal de Educação e a da Lei Superior de Educação emergiram desse panorama de transferências dos serviços educacionais às Províncias, sendo referências fundamentais da chamada “transformação educativa”. A idéia “tempos de transformação” está presente no prólogo “La batalla de la Educación” do documento ministerial Bases para la

transformación educativa, de outubro de 1991:

La Argentina se está transformando y este desafío es tarea de todos los argentinos. El viejo país todavía está en vigencia, que no asegura el trabajo ni el bienestar de 30 millones de compatriotas, debe dar espacio a una esperanza que se va perfilando, en que la vocación democrática,

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É importante destacar que a Argentina não possui tradição institucional de pós-graduação como o Brasil. Os docentes interessados em estudos doutorais procuravam individualmente cursos relacionados com as teses a serem desenvolvidas nos mais diferentes países e instituições. O sistema de pós-graduação argentino, portanto, se expande no movimento de retração da universidade pública.

la estabilidad institucional y la posibilidad económica hagan posible una vida más digna para cada uno de nosotros. Para servir a esta esperanza estamos concentrados en la transformación educativa.

Não escapa ao discurso a “missão” transformadora atribuída à Educação, embora os anos transcorridos sejam testemunha de que ela esteve longe de se concretizar. A “batalha” pela Educação, lançada pelo governo no início dos anos 1990, buscou incluir a lógica do mercado na gestão educacional solapando a Educação Pública, fosse acusando-a de excessivamente “burocratizada” ou nela incluindo valores religiosos e princípios de uma moral cristã – como ocorreu na época da implementação da Lei de Educação n.º 1.420, de 1884.

Mas a política da “transformação” desconsiderou o contexto social e político. A “tempestade” de informações e propostas distribuídas ao longo destes anos às instituições e aos sujeitos envolvidos não resolveu – nem poderia – as fortes contradições postas pela política de ajuste na qual nasceu e se constituiu a atual política educacional argentina. A Educação, na Argentina, precisava de mudanças. Talvez esse seja um ponto em que coincidiram os diferentes grupos de poder, com suas diferentes perspectivas sobre a Educação. A divergência emana e, portanto, o conflito, quando se tratou de como realizá-la.

Puiggrós (1997, p. 33) destaca que com a última reforma a educação pública argentina perdeu conquistas fundamentais. Em suas palavras:

Durante casi cien años, la educación política argentina elevó el nivel educativo y cultural de los hijos de inmigrantes analfabetos y población nativa, alcanzando altos índices de escolarización y profesionalización. La des-responsabilización actual del Estado desencadenó el proceso inverso: el pueblo formado en el sistema de educación pública tendrá hijos y nietos analfabetos.

A autora tece considerações que contribuem para apreender as decorrências da “concentração na transformação” educacional:

1) redução da inversão estatal e conseqüente promoção da Educação privada;

2) quebra do sistema administrativo, do sistema de comunicação e dos canais de condução e intercâmbio pedagógico;

3) articulação entre a Lei de Transferência dos serviços educacionais (1992) e a Lei Federal de Educação (1993);

4) desarticulação do sistema da Educação pública e procura da

sociedade civil e de empresários para substituir o Estado educador;

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5) necessidade de um conhecimento efetivo da oferta existente e potencial do privado e do público que subsidia o privado, de maneira indireta ou direta, entre outros aspectos;

6) ambigüidade manifesta no artigo 39 da Lei Federal de Educação, que garante o “principio de gratuidade” e não “gratuidade” por parte do Estado Nacional, “[...] permitindo que a reforma educacional se faça reduzindo a oferta em vez de expandi-la de acordo com às necessidades”;

7) imprecisa e ambígua relação entre os princípios de “equidade e gratuidade”. Para a autora, a eqüidade reduziu-se a recomendações “[...] às Províncias de estabelecer um sistema de bolsas baseadas no rendimento acadêmico, quer dizer, favoreceu aos que mais receberam e aprenderam, em vez de promover aos que menos receberam”. São bolsas que aumentam as distâncias e não são complemento com caráter de estímulo;

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“Estado de la educación” o “Estado educador”, na Argentina, significa o Estado que tem a responsabilidade da Educação.

8) integração de parte da escola secundária ao nível primário, o que ocasionou o fechamento de escolas, fazendo com que várias zonas ficassem sem o Ensino Médio. O cancelamento de disciplinas no Ensino Médio provocou o desemprego de professores ou sua reciclagem em áreas alheias à sua formação. Foram fechadas creches maternais (0-3 anos) para cumprir o estabelecido pela Lei Federal: a obrigatoriedade do pré-escolar (último ano da pré- escola); e

9) a nova Lei de Educação retirou da estrutura do sistema o nível inicial (exceto a seção de cinco anos), as modalidades de Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial e a Educação Artística, que aparecem no capítulo de “regimes especiais”, sem indicações precisas sobre as instituições que seriam responsáveis por sua oferta. O fechamento da Direção de Adultos (Dinea) forçou o encerramento de muitos programas de Educação de Jovens e Adultos existentes, contradizendo o “sentido” da reforma (PUIGGRÓS, 1997, p. 46-47).

Poderíamos perguntar: o que teria acontecido com as promessas de melhoria da qualidade e da eqüidade da Educação argentina salientada na reforma? O Relatório do Banco Mundial sobre a pobreza “Um pueblo pobre en um país rico” enfatiza a “reaparição da crise econômica” entre os anos de 1995 e 1998 na Argentina. Reaparição ou confirmação de uma tendência já anunciada? Nas próprias palavras do Banco Mundial (2000, p. 4) encontramos a afirmação de que:

Desde 1991, el país ha pasado por un período de ajuste que ha conducido a una disminución notablemente marcada en la tasa de inflación, la privatización de las empresas estatales y la apertura de la economía al comercio extranjero. Todos estos ajustes han afectado a los pobres, en particular mediante sus efectos sobre la demanda de la fuerza laboral. A estos cimbronazos, se ha agregado la reaparición de

la crisis económica, en particular en 1995 y 1998, que también ha disminuido el ritmo del proceso de crecimiento.

O próprio governo difundiu estatísticas que anunciavam graves problemas com a aplicação da reforma. De acordo com Puiggrós (1997, p. 56),

En febrero de 1996 el gobierno anunció que casi el 18% de los estudiantes secundarios de la Capital repitieron. En abril publicitó los resultados del Tercer Operativo Nacional de Evaluación de la Calidad, que mostraron un significativo deterioro del rendimiento de los alumnos primarios y secundarios e informó sobre la alta de la repitencia y fracaso escolar. Cuando se acercaba el final del año 1996, nos anunciaba que la repitencia había aumentado dramáticamente – aún más – y que se habían profundizado las desigualdades educativas regionales.

Puiggrós (1997, p. 23) expõe outros indícios de fracasso de aspectos da reforma denunciando que a “[...] descentralização constituiu uma desestruturação do sistema [educacional] como parte da destruição do Estado/Nação argentino”, colocando à beira do colapso o sistema educativo nacional. A política neoliberal, continua a autora, alterou a função da Educação ao construir “[...] um discurso escolar, universitário, pedagógico governamental ou “massmidiático”, postulando o fim das dimensões histórica e ideológica (e portanto imaginária), aplicando diretamente a equação custo – benefício econômico”. No mesmo texto ela analisa como o esvaziamento do mercado de trabalho, produzido pelas políticas de ajuste, “[...] constituem uma dimensão que vai muito além da competitividade outorgada pela formação recebida” (PUIGGRÓS, 1997, p.114).

O diagnóstico de Puiggrós é francamente desfavorável também no que concerne ao alarmante déficit na transmissão da cultura. Romperam-se os laços e relações que propiciaram, por longo tempo, uma coesão entre diferentes linhas políticas – populistas, desenvolventistas, socialistas – que, em suas distintas perspectivas ideológicas, defenderam a Educação Pública e sustentaram a idéia de um Estado educador. Deixa de existir o Estado que apoiava e subsidiava os sistemas

mistos de Educação (privado/público) que, juntos, davam cobertura educacional à maioria da população.

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