1.1 O voluntarismo e a definição de objeto
1.1.2 Leis psíquicas
A capacidade criadora da consciência humana e a consequente
incomparabilidade entre os fenômenos da experiência mediata e imediata são os fatores que levam Wundt a afirmar que, embora se trate de uma única experiência, a vida psíquica deve obedecer a uma regularidade própria. Para Wundt, tanto componentes quanto resultantes psíquicos devem fazer referência à experiência imediata, isto é, a valores qualitativos, sem contradizer as leis da causalidade física, que dizem respeito a valores quantitativos, ou admitir uma causalidade cruzada (Wundt, 1897).
Segundo ele, enquanto nas ciências naturais a maior estabilidade e a permanência do objeto permitem tratá-lo conforme leis mecânicas, como a da conservação de energia, e seus fenômenos sejam percebidos como experiências separadas que requerem a utilização de elementos conceituais para sua conexão, no caso da psicologia a natureza processual do fenômeno psíquico revela características distintas, como a percepção imediata da conexão causal entre seus processos e a presença de uma dimensão valorativa, orientada por uma noção de propósito.
Constatada a singularidade dos aspectos mediatos e imediatos da experiência e a impossibilidade de se aplicar os princípios que regem o mundo físico às expressões psíquicas, sem contradizer a autonomia lógica entre os dois domínios, a psicologia deve aceitar, segundo Wundt, o postulado de uma causalidade psíquica autônoma, compatível e complementar em relação à causalidade das ciências naturais. A partir desta noção de autonomia causal, Wundt organiza as regularidades dos fenômenos psíquicos encontradas nos estudos observacionais e experimentais sob a forma de leis que regem a experiência imediata. Entre elas, Wundt diferencia duas categorias, que compreendem leis de relação e leis de desenvolvimento. As primeiras englobam aquelas que se aplicam ao surgimento e interação imediata dos compostos psíquicos, tais como a lei dos resultantes, das relações e dos contrastes psíquicos. Já a classe das leis de desenvolvimento deriva da primeira e consiste nos efeitos complexos produzidos por combinações de leis de relação com séries mais extensas de fatos psíquicos. Elas compreendem as leis do crescimento mental, da heterogonia dos fins e da intensificação por contrastes (Wundt, 1897).
A lei dos resultantes psíquicos está relacionada ao caráter sintético e produtivo das interações de compostos psíquicos. Ela afirma que “cada composto apresenta atributos que podem ser entendidos a partir dos atributos dos seus elementos, embora de
modo algum eles devam ser vistos como a mera soma destes atributos” (Wundt, 1897, p. 321). Tal lei expressa o princípio da síntese criadora, que extrapola a equivalência entre causa e efeito das ciências da natureza ao informar que as combinações entre sentimentos e sensações não ocorre de modo passivo, mas envolve a criação de novos compostos e um sentimento de atividade e impõe à explicação psicológica um caráter retrospectivo, isto é, possível somente posteriormente à ocorrência dos fenômenos, e não a partir da simples observação de seus elementos constitutivos. Já a lei das relações psíquicas afirma que cada conteúdo singular adquire seu significado a partir das relações que mantém com outros processos psíquicos, permitindo identificar as funções de fundamento e conseqüência desempenhada por cada elemento (Wundt, 1897). De maneira complementar, a lei do contraste psíquico refere-se à constatação de que, ao longo do desenvolvimento mental, as sensações, representações e sentimentos contíguos são intensificados a partir de relações de oposição, conforme eles ou os processos que lhes acompanham sofram alguma variação quantitativa ou qualitativa.
Quanto às regularidades constatadas ao longo da complexificação destas interações, a lei de crescimento mental fundamenta-se no caráter produtivo da síntese dos compostos, que acrescenta novos elementos a cada interação e promove um desenvolvimento cumulativo da vida mental. Já a lei da heterogonia consiste na afirmação de que um motivo produz não somente seus fins latentes, mas tem sua configuração original alterada a partir da entrada desses resultantes na consciência e de sua combinação com os sentimentos e volições, dando origem a novos atos psíquicos. Por fim, a lei da intensificação amplia a dos contrastes psíquicos, tornando possível, por exemplo, que a teoria dos sentimentos proposta por Wundt seja organizada em torno de pólos de expressões afetivas contrastantes. Isso explica, segundo Wundt, que um sentimento de prazer seja mais intenso e sua qualidade específica mais claramente sentida se ele tiver sido precedido por um sentimento de desprazer (Wundt, 1912). Uma relação que também pode ser encontrada entre os sentimentos de excitação e depressão e de tensão e relaxamento.
Em decorrência dessa causalidade própria, o tipo de explicação oferecida pela psicologia também deve assumir um caráter específico, uma vez que, segundo ele, “existe apenas um tipo de explicação causal em psicologia, que é a derivação de processos psíquicos mais complexos daqueles mais simples” (Wundt, 1897, p. 24), e os elementos fisiológicos devem ser usados “apenas como ajudas complementares, em
função da relação entre a ciência natural e a psicologia” (p.24), mas nunca como uma substituição efetiva ou como termos equivalentes.
A recusa da causalidade psíquica, defendida pelas tendências de caráter materialista, extrapola, segundo Wundt, o auxílio legítimo que a fisiologia pode prestar à psicologia e apenas transfere o problema da explicação dos processos psíquicos à fisiologia cerebral. Segundo ele, a procura pela determinação da dependência da experiência imediata em relação ao corpo, pressuposta no recurso à fisiologia empreendido pela psicologia materialista, pode ser identificada com um materialismo psicofísico, é “epistemologicamente insustentável e psicologicamente improdutivo” (1897, p. 17), uma vez que extrapola os limites da ciência empírica em suas afirmações e, embora pretendendo retirar a psicologia do domínio das especulações metafísicas, subordina-a ao das ciências naturais, eliminando com isso sua autonomia explicativa. Para Wundt, embora a psicologia necessariamente considere a ligação constante dos fenômenos psíquicos com o corpo como forma de examinar a experiência imediata, a explicação do fenômeno psíquico deve permanecer restrita aos termos da sua própria série e, em momento algum, depende da determinação de sua dependência específica em relação às condições corporais.