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A leitura como prática soci@l

No documento Fabiana Komesu Luciani Tenani (páginas 49-53)

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Nos capítulos 10, “Des@fios do leitor”, e 11, “A boa leitur@ em tempos de internet”, discutimos o que seriam o “bom” leitor e a “boa” leitura num cenário caracterizado pelo uso cada vez mais frequente de tecnologias de informação e comunicação. Gostaríamos, ainda, neste capítulo, de refletir sobre o conceito de leitura como prática social, como um fazer condicionado historicamente por conhecimentos dos usos e costumes de grupos sociais nos quais se vive, dos grupos por meio dos quais nos tornamos sujeitos da linguagem.

Vejamos o caso de uma criança de 5 anos que, apesar de estar no período de pré- alfabetização na escola, ainda não é considerada alfabetizada (portanto, ainda não é uma leitora). Embora na escola ela seja estimulada a ler, há muito pode ter sido convidada a “ler” em contexto doméstico, com pessoas próximas, com as quais mantém vínculo de afeto. Podemos dizer que essa criança “lê” há mais tempo, seja a programação de eventos infantis em jornal e revistas, impulsionada por imagens de personagens de que gosta(va); seja a lista de compras do supermercado, motivada por interesses de criança (chocolate e bolinho... de chocolate); sejam os e-mails ou outras mensagens redigidas em dispositivos móveis, enviadas por familiares distantes. Levando-se em conta todas essas práticas, essa criança, aos 5 anos, é capaz de “ler” em voz alta, com alegria, passagens habituais dos livros infantis e gibis lidos em família no momento de dormir, pedindo ainda para “ler sozinha” o trecho de que mais gosta, passando o dedo indicador pelo texto escrito. Também pode demonstrar interesse pela leitura, com a ajuda de um adulto, de instruções de jogos eletrônicos, em língua portuguesa e língua estrangeira, não porque queira estudar essas línguas, mas por entender que é a maneira de continuar na brincadeira.

O leitor deste livro pode bem perguntar: mas para ler não é preciso conhecer formalmente as letras, ter sido alfabetizado na escola?

Ler decodificando cada uma das letras do sistema alfabético é apenas uma maneira de pensar o que é leitura. É sabido, no entanto, como discutido em capítulos anteriores, não apenas por pais e responsáveis, mas também por professores e diretores, profissionais responsáveis por políticas públicas que essa ideia de leitura como decodificação é insuficiente para refletir sobre o que é produzir sentido na linguagem, o que é “interpretar” o mundo e as relações entre as pessoas. Não se pode nem mesmo afirmar que exista relação direta entre tempo médio de estudos e qualidade da leitura (“como” a pessoa consegue ler, questionar o que está escrito e estabelecer relação com outros textos), uma vez que inúmeros exames nacionais e internacionais têm mostrado que o nível de proficiência dos alunos em leitura e escrita no Brasil fica aquém das expectativas tanto de gestores quanto da população em geral. Uma coisa é contabilizar o número de anos que uma pessoa passa na escola, outra é avaliar de que maneira a pessoa que diz saber ler e escrever (ou a quem são atribuídas essas

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qualidades) interage com o outro no dia a dia, segundo participação efetiva e competente em atividades diversas nas quais é solicitada a agir com esse outro. A consideração de que práticas sociais são o que realmente importa e podem dizer mais sobre o processo de leitura e de escrita do que a decodificação/codificação levou estudiosos a cunhar o conceito de “letramento”.

Para refletir de maneira mais atenta sobre leitura e práticas de leitores na atualidade, retomamos ainda o capítulo 10 em que dissemos que o processo de leitura envolve uma complexa rede de relações, definida pelo modo como o texto é escrito, mas também pelo modo como o leitor interage com o texto – se tem contato direto ou indireto com o assunto, com a obra, com o autor. Não estamos, com isso, negando a importância do ensino e da aprendizagem formais das relações entre sistema fonológico e sistema alfabético no processo de leitura/escrita, mas dizendo que essa autonomização não é suficiente para definir práticas sociais de leitura/escrita. Atualmente, a condição de analfabeto – aquele que não sabe ler e escrever mesmo depois de anos de escolarização – é atribuída com prejuízo a 8,7% da população adulta no Brasil (pessoas com 15 anos ou mais), o equivalente a 13,2 milhões de analfabetos no país, como mostrou recentemente o IBGE por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do ano de 2012, divulgado em 2013. Em relatório da Unesco divulgado no mês de janeiro de 2014, o Brasil aparece em 8o lugar entre os

países com maior número de analfabetos adultos, num estudo que avaliou a situação em 150 países.

Ocorre que ao mesmo tempo em que essas pessoas são classificadas como analfabetas, elas executam inúmeras atividades de interesse mais próximo ou mais distante que envolvem registro gráfico e raciocínio lógico frequentemente atribuídos à escrita (por extensão, à leitura). Uma parcela tem de se locomover por transporte público e, portanto, tem de tomar ônibus, “ler” o número do ônibus ou o destino final; ao pagar o bilhete, tem de saber o valor da moeda, se há ou não troco a ser recebido. Na condição de pedestre em circulação nas ruas, tem de saber as convenções que se encontram legisladas por escrito no Código de Trânsito Brasileiro. Para receber o pagamento mensal, muitas vezes, tem de lidar com caixas eletrônicos via sistema bancário. Mais recentemente, os tribunais regionais eleitorais solicitaram cadastramento biométrico dos eleitores, por meio do registro das impressões digitais, foto, atualização dos dados de filiação, endereço residencial, sexo, grau de instrução. Para se constituir “eleitor”, alfabetizados mas também analfabetos – a quem o voto não é obrigatório, numa associação entre “ser alfabetizado” e “ser crítico” e “ser analfabeto” e

talvez poder “ser crítico” – tiveram de se cadastrar em computadores portáteis, câmeras

fotográficas, scanner e cabines para foto, instrumentos que poderiam ser tomados como índices da modernidade. O contato direto ou indireto com ferramentas tecnológicas (caixas

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eletrônicos seriam outro bom exemplo) coloca em evidência práticas sociais letradas nas quais todas as pessoas são constituídas, ainda que formalmente algumas ainda sejam classificadas como analfabetas.

Voltamos, pois, à criança (e, semelhantemente, ao jovem ou ao adulto a quem é atribuída a condição de “não leitor”). Em atividades em que se faz necessário lançar mão de lista de compras, de leitura de gibis, de participação em games, a criança (considerada formalmente analfabeta), por exemplo, “sabe” o que fazer, como agir: no caso do game, clica no botão eletrônico correto, seja porque reconhece o desenho da letra, seja porque já se habituou com determinada cor ou som do aplicativo, para alcançar o objetivo (de se divertir). Não seriam essas algumas das tarefas do leitor no processo de leitura? Leitor que apenas decodifica um texto é considerado analfabeto funcional, isto é, não sabe o que leu e para que serve o texto lido.

Leitor é aquele que identifica o modo como o texto é definido não apenas por aquilo que está efetivamente escrito, mas por outras “pistas” distribuídas visualmente, como figuras (com ou sem movimento), estilo de fonte, tamanho da letra, cor, textura. Em suma, leitor é aquele que sabe priorizar interesses próprios e também os do grupo do qual participa por meio de “pistas” que “decifra” em atividades sociais das quais participa efetivamente.

No documento Fabiana Komesu Luciani Tenani (páginas 49-53)

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