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Uma Leitura Hermenêutica de Lachmann

Revimos até agora grande parte da obra de Lachmann, que é dispersa entre alguns livros e vários pequenos artigos, e cujas idéias surgem em comentários à história do pensamento econômico. Resta-nos agora fornecer uma interpretação – hermenêutica – deste calêidico conjunto de idéias. Qual é o significado da obra do autor, o que ele intencionava e planejava mostrar?

A resposta não é trivial. A incompreensão do significado da obra do autor é parcialmente responsável pelo debate travado sobre tendências (des)equilibradoras no processo de mercado que analisaremos no quarto capítulo. Parte do problema surge porque as idéias de Lachmann são expressas em termos gerais, raramente seguidas de exemplos e de forma nem sempre clara. Isso leva a uma série de ambigüidades sobre o que o autor realmente quis dizer com certas idéias. Lewin (1996), por exemplo, acha que Lachmann soa mais radical do que o necessário: quando este afirma que previsão em economia é impossível, na verdade quis dizer que previsão perfeita é impossível, concordando que possa existir tipos de previsão menos rigorosos. Para Rizzo (1996), a obra de Lachmann trata do balanço entre forças equilibradoras e desequilibradoras. Ele considera que a ênfase posterior em tendências desequilibradoras sobre as equilibradoras reflete o público para o qual o autor se dirigia: ao se dirigir a uma platéia neoclássica, deve-se enfatizar as forças desequilibradoras. Isso é uma explicação possível da transformação de Lachmann, diferente da nossa.

Diante disso, procuraremos agora entender a mensagem do autor. Tal mensagem pode ser resumida pelo título do apêndice do seu livro de 1986 – “The Market is not a Clockwork”. Nesse apêndice, Lachmann afirma:

The neoclassical paradigm, in part, rests on an astonishing lack of ability on the part of many of its adherents to realize the limits of determinist as a form of economic thought. (Lachmann, 1986:159)

A teoria econômica deveria tratar da ação humana, não da reação humana. A obra de Lachmann pode ser vista como um combate ao determinismo e mecanicismo da teoria econômica, tanto no seu formato clássico quanto neoclássico e que o autor agrega sob o rótulo de plutologia ou neo-ricardianismo. Nesse combate, as armas utilizadas foram duas,

disponíveis no núcleo do programa de pesquisa austríaco: enfatizar a complexidade da economia e o subjetivismo por detrás de todo fenômeno econômico.

Enfatizar a estrutura complexa do capital, suas relações e mudanças; apontar para a complexidade do processo de mercado, com suas cadeias de ações e interações que geram fenômenos de path dependence, e, finalmente, notar a necessidade de encarar o agente econômico como um cientista, que formula hipóteses sobre tais complexidades, prometem constituir os elementos mais importantes no legado deixado por Lachmann.

Enfatizar a importância do subjetivismo é tarefa muito importante para corrigir grande parte das deficiências encontradas nas teorias modernas. A ênfase exagerada nesta tarefa – o subjetivismo radical – apresenta, no entanto, conseqüências não intencionais indesejadas. Ao enfatizar o subjetivismo, corre-se o perigo de negar as “realidades subjacentes” ao processo de mercado. Lachmann não tem a intenção de negar tais realidades, mas a direção que toma o seu pensamento (objetivo) conduz na prática a tal negação. Essa negação toma a forma, por exemplo, na desconsideração do erro em economia:

For the new view the objects of action lie in the future. ‘Choice is made amongst the invented, subjective creations of thought’ and thus provides no criteria of error or truth. In the older view men, impelled by tastes and constrained by obstacles, make choices which are the outcome of the interaction of these forces. Choice is the result of the impact of constraints on human dispositions. In the new view, choice is not a result of anything, but a creative act. (Lachmann, 1986:55)

A teoria do equilíbrio é vista, desta maneira, como ameaça à autonomia da mente humana. Isso só ocorre, porém, quando interpretamos tal teoria sob a ótica metodológica que não permite a possibilidade de previsão de padrões. Nesse caso, a ação é simultaneamente criativa e limitada. Lachmann II, como vimos, não aceita essa possibilidade. Isso levou o autor a considerar essa teoria apenas de forma positiva – prever quantidades e preços de equilíbrio – desconsiderando a forma negativa – mostrar as limitações a ação humana impostas, por exemplo, pela escassez. Segue-se disso que a ciência econômica deveria progredir no sentido de descrever o que de fato os agentes fazem e pensam. Temos, assim, o historicismo que marca a obra de Lachmann II, que resulta na visão do autor sobre o processo de mercado.

Embora já tenhamos feito algumas críticas ao longo da exposição da obra de Lachmann, uma avaliação mais detalhada da concepção do autor especificamente sobre o processo de

mercado não será realizada neste capítulo, pois tal avaliação é parte do debate sobre tendências equilibradoras que trataremos no capítulo quatro.

Veremos no capítulo cinco que o estudo do conhecimento dos agentes no mercado, para o qual Lachmann realizou interessantes contribuições, quando interpretado sob a ótica popperiana, gera uma concepção do processo de mercado que não nega a autonomia da mente humana e ao mesmo tempo leva em conta o impacto das realidades subjacentes ao processo de mercado, que limitam de certa forma a liberdade e a criatividade humana37. A contribuição de Lachmann consiste em enfatizar este aspecto criativo. No próximo capítulo veremos a obra de Kirzner contribuir na outra direção, enfatizando os limites impostos pela realidade. Essas duas ênfases, concluiremos no final do trabalho, podem ser vistas como complementares. A união dos dois aspectos sob a forma de uma teoria evolucionária de processo permitirá avanços progressivos no programa de pesquisa austríaco.

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A retomada da comparação entre o crescimento do conhecimento e a sua teoria do capital no final de sua carreira, incompatível com a visão hermenêutica adotada pelo autor nessa fase, atesta o fato de que a principal intenção de Lachmann é negar o mecanicismo da teoria da escolha.

Pure profit is the link between imperfect and perfect knowledge: on one hand, it is generated by ignorance; on the other, it provides the incentive for realizing the truth. (Kirzner, 1979:156)

3.1. Introdução

Israel Mayer Kirzner nasceu em 1930 na Inglaterra. Mudou para a África do Sul dez anos depois, onde mais tarde iniciou seus estudos universitários, na cidade do Cabo, vindo a terminar a graduação no Brooklin College, já em Nova York. Em 1957 terminou o Ph.D. em economia sob a orientação de Ludwig von Mises na New York University, onde é professor desde então.

Kirzner foi uma das peças centrais no ressurgimento da Escola Austríaca de Economia a partir da década de setenta, não só pelas suas contribuições teóricas, que incluem escritos de metodologia, teoria do capital e processo de mercado, mas também pelos seus esforços organizacionais, promovendo conferências, cursos e editando livros (Boettke,1987; Vaughn,1994).

A principal contribuição de Kirzner à análise do processo de mercado foi sua teoria da atividade empresarial. A coordenação das atividades econômicas não pode ser tomada como certa ou dada, requerendo de forma fundamental a atividade empresarial, embebida em um ambiente competitivo, como elemento explicador dessa coordenação. A ação do empresário será responsável na obra do autor pela natureza equilibradora do processo de mercado. A introdução na análise da atividade empresarial trará consigo uma interpretação sobre o significado da competição diversa da análise tradicional sobre competição.

Kirzner tem como pontos de partida as obras de Mises e Hayek. Podemos encontrar na obra de Mises a centralidade do conceito da atividade empresarial, derivada da sua definição ampla de ação humana. Hayek reformula a teoria de Mises sobre o funcionamento do processo de mercado através da incorporação do estudo do aprendizado dos agentes no processo equilibrador de mercado. Além de avançar a compreensão austríaca do mercado através de sua teoria da atividade empresarial, Kirzner ofereceu uma teoria que procura unir contribuições de Mises e Hayek. Conforme percebe Binenbaum (1995):

Kirzner’s work on entrepreneurship can essentially be described as an attempt to merge Misesian entrepreneurship and Hayekian learning.

A obra de Kirzner, desta maneira, faz progredir o programa de pesquisa austríaco na direção de desenvolver as implicações das proposições nucleares do subjetivismo e processo no estudo do mercado. O nosso objetivo neste capítulo é estudar esse desenvolvimento. A teoria da atividade empresarial de Kirzner mudará a ênfase da teoria de processo de mercado. Enquanto Lachmann enfatiza o indeterminismo e a criatividade, Kirzner estudará a relação entre a ação humana e a descoberta das realidades com as quais os agentes têm de lidar.

Procuraremos identificar as contribuições do autor à teoria do processo de mercado, fazendo referência às suas outras contribuições apenas na medida em que isto ajude a compreender alguns aspectos da primeira teoria, que é o objeto deste trabalho. As idéias de Kirzner serão introduzidas na ordem cronológica de publicação de seus livros, a fim de observarmos a evolução da teoria partindo de fundamentos misesianos para uma progressiva incorporação de temas hayekianos à análise. Na próxima seção estudaremos as origens das idéias do autor em seus dois primeiros livros. Essas idéias, embrionárias nessas primeiras contribuições, tomarão corpo na sua teoria da atividade empresarial, da qual iremos nos ocupar na seção 3.3. O desenvolvimento da teoria da atividade empresarial de Kirzner o levou a incorporar as idéias hayekianas sobre aprendizado na sua teoria. Este desenvolvimento será visto na seção 3.4. No final do capítulo compararemos as teorias do empresário de Kirzner e de Schumpeter e reveremos as críticas feitas na literatura à teoria de Kirzner, além de oferecer a nossa própria crítica a partir das bases popperianas que colocamos no primeiro capítulo.