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Lendo e escrevendo: atando “nós”, construindo

3. Leitura e heterogeneidade enunciativa

Na história da análise do discurso, a consolidação da figura de Jaqueline Authier-Revuz é datada a partir da sua participação no colóquio “Materialidades Discursivas” em abril de 1980. Da lingüística, Authier-Revuz trazia elementos decisivos à problemática da heterogeneidade discursiva, colocando em evidência a presença do discurso outro no próprio discurso, isto é, as rupturas enunciativas no “fio discursivo” (cf. Maldidier, 2003). Essa problemática encontra-se no centro da questão do sujeito e da sua relação com a linguagem, pois, mostra como o dizer não é transparente. O dizer não é um reflexo direto do real do processo enunciativo, pois, em sua dupla determinação pelo inconsciente e pelo interdiscurso, ele escapa ao enunciador (Authier-Revuz, 1990; 1998; 2004). Sabemos que as reflexões da autora não estabeleceram o texto como objeto de estudo e tampouco se propuseram a refletir sobre a leitura. Entretanto, acreditamos que suas reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa podem no fornecer elementos interessantes para a discussão que buscamos neste capítulo.

Ao observar as “rupturas” enunciativas, Authier se interroga sob o modo como o outro se inscreve na seqüência do discurso sob a forma de “heterogeneidade mostrada”, compreendida na sua negociação com a “heterogeneidade constitutiva”. Nessa perspectiva, a lingüística precisa se constituir na sua relação com o seu exterior, recorrendo a abordagens que questionem o sujeito narcísico como fonte e senhor do seu dizer, ou seja, é preciso recorrer a um “exterior pertinente” para o campo lingüístico da enunciação, pois

quaisquer que sejam as precauções tomadas para delimitar um campo autonomamente lingüístico, num domínio como o da enunciação, o exterior inevitavelmente retorna implicitamente ao interior da descrição e isto sob a forma “natural” de reprodução, na análise, das evidências vivenciadas pelos sujeitos falantes quanto a sua atividade de linguagem (Authier- Revuz, 1990, p. 25).

É, então, em relação exterior à lingüística que Authier se propõe em descrever as formas lingüísticas mostradas que representam diferentes modos da negociação do sujeito com o a heterogeneidade constitutiva de seu discurso. Para investigar a relação entre esses dois planos (mostrado e constitutivo), a autora se filia aos trabalhos que questionam a unicidade discursiva: de um lado, a problemática dialógica do Círculo de Bakhtin e o interdiscurso de Pêcheux; do outro, a abordagem freud-lacaniana do sujeito e de sua relação com a linguagem.

Com relação ao dialogismo, a autora acentua a preocupação do Círculo em refletir sobre uma teoria da dialogização interna do discurso. Isso implica dizer que nenhuma palavra é neutra, mas “carregada”, “ocupada”, “habitada”, “atravessada” por um já dito, ou seja, as palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras dos outros”. É nesse sentido que se constitui, segundo Authier, a teoria bakhtiniana da produção do sentido e do discurso, colocando “os outros discursos não como ambiente que permite extrair halos conotativos a partir de um nó de sentido, mas como um centro exterior constitutivo, aquele do já dito, com o que se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso” (Authier-Revuz, 1990, p. 27).

Com relação ao discurso como produto do interdiscurso, Authier se filia à AD, cujas análises, para dar conta da produção do discurso (maquinaria estrutural ignorada pelo sujeito), se voltam para o interdiscurso, ou seja, para as marcas recuperáveis do interdiscurso no intradiscurso (noção de pré- construído). Nesse processo, o sujeito é visto não como um enunciador capaz de escolhas, intenções e decisões, mas como suporte e efeito do seu discurso, ou seja, o sujeito é na realidade um efeito-sujeito.

Partindo do princípio de que sempre sob as palavras, “outras palavras”

são ditas, a autora tem por objetivo observar na estrutura material da língua a

polifonia não intencional de todo discurso, ou seja, observar a dupla concepção de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um sujeito dividido/descentrado, efeito da linguagem. Isto é, um sujeito resultado de uma estrutura discursiva complexa atravessada pelo inconsciente. Essa divisão é, então, apagada e reconstrói-se a imagem (ilusão) do sujeito autônomo, por isso Freud coloca que não há centro para o sujeito fora da ilusão. Seguindo esse percurso teórico, Authier-Revuz ressalta como as teorias da enunciação

não podem esquecer de que o Outro é constitutivo do sujeito e do seu discurso. Diz a autora:

Em ruptura com o EU, fundamento da subjetividade clássica concebida como o interior diante da exterioridade do mundo, o fundamento do sujeito é aqui deslocado, desalojado, em um lugar múltiplo, fundamentalmente heterônimo, em que a exterioridade está no interior do sujeito. Nesta afirmação de que, constitutivamente, no sujeito e no seu discurso está o

Outro, reencontram-se as concepções do discurso, da

ideologia, e do inconsciente, que as teorias da enunciação não podem, sem riscos para a lingüística, esquecer. (Authier- Revuz, 1990, p. 29).

Para a autora, “é a estrutura material da língua que permite que, através da linearidade de uma cadeia, se inscreva a polifonia de um discurso” (Authier- Revuz, 2004: 62). Nesse sentido, circunscrever um ponto de heterogeneidade é opô-lo à unicidade da língua, do discurso, do sentido e remetê-lo a um alhures, a um exterior explicitamente especificado ou dado a especificar. Através dessas marcas de heterogeneidade, o discurso constitui a sua identidade, demarcando de que outro é preciso se defender e a que outros é preciso recorrer para se constituir. Dito isso, uma dupla designação é operada pelas formas da heterogeneidade mostrada: “a de um lugar para um fragmento de estatuto diferente da linearidade da cadeia e de uma alteridade a que o fragmento remete” (Authier-Revuz, 1990, p. 30). No caso das redações, estamos tomando os percursos de leitura sob a forma de pontos de heterogeneidade. Ou seja, os percursos de leitura remetem a alhures, a um exterior explicitamente especificado ou dado a especificar.

Ademais, essas formas colocam um exterior em relação ao discurso que se constitui e remetem à figura do enunciador “observador” que “se coloca em qualquer momento distante da sua língua e de seu discurso, isto é, de se ocupar, diante deles, tomando-os localmente como objeto” (Authier-Revuz, 1990, p. 32). Vejamos, então, como a autora aborda a divisão da heterogeneidade mostrada em marcada (modo explícito) e não-marcada (modo interpretativo).

3.1. O mostrado explícito

As formas marcadas (explícitas) de heterogeneidade mostrada (formas desviantes do domínio do dito) representam as forças centrípetas da heterogeneidade constitutiva, construindo uma proteção necessária para que um discurso seja mantido, assegurando a identidade do “eu”, dando corpo ao discurso (pelos contornos, limites que traçam) e forma ao sujeito enunciador (pela atividade metalingüística que encenam). Em outras palavras, “é ao corpo do discurso e à identidade do sujeito que remetem as diversas formas da heterogeneidade mostrada em sua relação com a heterogeneidade constitutiva” (Authier-Revuz, 1990: 34). Para a autora, as formas marcadas correspondem a modos explícitos de representação do discurso outro. Por exemplo, o outro do discurso relatado – formas sintáticas que designam um outro ato de enunciação: o discurso direto e o discurso indireto.

No discurso direto, “são as próprias palavras do outro que ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado da citação na frase; o locutor se apresenta como simples porta-voz” (Authier-Revuz, 2004, p.12). Vejamos alguns enunciados extraídos do corpus:

(1) “Amigo é coisa pra se guardar, debaixo de sete chaves”. Esse trecho da música de Fernando Brant e Milton Nascimento fala sobre um assunto muito comum em trabalhos artísticos. A amizade. (Texto 287, §1º).

(2) Em sua obra, Cícero, importante pensador da antiguidade diz: “os que

suprimem a amizade da vida parecem-me privar o mundo do sol”, ou seja, assim

como o sol é um dos responsáveis pela vida em nosso planeta, a amizade é uma razão para viver. (Texto 140, §4º).

(3) “Tenho duas mãos e o sentimento do mundo” escreveu Carlos Drumond de

Andrade. O poeta expressa a necessidade que ele e todos possuem de partilhar seus

sentimentos (...). (Texto 340, §1º).

Linguisticamente falando, podemos ver que, nos enunciados acima, o

escrevente relata as falas aspeadas como realmente proferidas por Fernando

Brant e Milton Nascimento, Cícero e Drumond; o escrevente dramatiza um efeito de autenticidade. Esse é o efeito de sentido que o discurso direto constrói pelo fato de supostamente indicar as “próprias palavras” do enunciador citado. Um outro elemento característico do discurso direto é uso de verbos

introdutores. Nos enunciados acima, podemos observar o uso de verbos

dicendi (fala e diz) e uso de verbos scribendi (escreveu).

Podemos dizer que, nos exemplos acima, o escrevente mostra um enunciador (que é outra pessoa) asseverando um certo posicionamento. O

escrevente introduz em seu discurso uma voz que não é a sua, mas que é

responsável pelo posicionamento que o escrevente atribui a si. Tudo isso que acabamos de dizer pode ser traduzida nas seguintes palavras de Ducrot:

Neste caso, X (que é, ao mesmo tempo falante e locutor) faz ouvir, numa enunciação que reivindica como sua, a voz de Y asseverando que ele sabe tudo. Exprimirei esse fato dizendo que o enunciado, embora dado a X como autor da enunciação (=locutor), atribui, no entanto, a Y (=enunciador da asserção de onisciência) uma asserção que X não assume como sua, mas que, contudo é dada como efetuada na própria enunciação pela qual X é responsável. (Ducrot, 1987, p. 141).

No discurso indireto, “o locutor se comporta como tradutor: fazendo uso de suas próprias palavras, ele remete a um outro como fonte do sentido dos propósitos que ele relata” (Authier-Revuz, 2004, p.12). Vejamos alguns enunciados extraídos do corpus:

(4) Todavia, tais relações não são exclusivas dos tempos atuais: pensadores como

Montaigne alertavam já que eram mais comuns as relações superficiais oferecidas

do que as amizades verdadeiras. (Texto 10, §3º).

(5) Já afirmava Cícero na antiguidade que suprimir as amizades da vida seria igual privar o mundo do sol. No entanto, na terra o sol é para todos, assim como as relações humanas. (Texto 65, §2º).

(6) Pessimistas afirmam que o capitalismo selvagem e a urbanização estão gradativamente esfriando os vínculos afetivos e desagregando a sociedade. (Texto 76, §3º).

Linguisticamente falando, o discurso indireto é marcado pelo uso de verbos introdutórios, porém as palavras do outro não são realmente citadas de modo aspeado; o escrevente relata o “conteúdo do pensamento” do outro. Isso mostra, brevemente, como o discurso indireto ouve de forma diferente o discurso outro; como a análise é alma do discurso indireto. Retomando as palavras de Bakhtin, o discurso indireto “integra ativamente e concretiza na sua

transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado” (Bakhtin, 1999, p. 159).

3.2. O mostrado interpretativo

As formas não marcadas (interpretativas) da heterogeneidade mostrada são mais arriscadas por jogarem com a diluição do outro no um; em outras palavras, as formas não marcadas constituem as forças centrifugas que diluem as fronteiras do outro no mesmo. Nesse sentido, o que está em jogo no campo da enunciação é a relação entre as condições reais de existência de um discurso e da representação que dele se dá. Por exemplo, no fragmento abaixo, é apenas em função do contexto (de uma exigência de coerência textual) que os enunciados em negrito podem ser caracterizados como discurso direto livre:

(7) Ora, mas será possivel “viver a vida sem conhecer a felicidade de encontrar num amigo os mesmos sentimentos?” Claro que não. A quebra dos vinculos sociais só podem trazer um profundo mal-estar individual e coletivo. (Texto 08, §4º).

Podemos observar que se instaura uma ambigüidade contextual. O

escrevente, ao dizer “claro que não”, fala tanto de sua perspectiva quanto da

perspectiva do enunciador de “viver a vida sem reconhecer a felicidade de encontra num amigo os mesmos sentimento?”. Há duas interpretações possíveis: (i) o escrevente toma para si o ponto de vista outro, interpreta-o e responde de sua própria perspectiva, ou seja, “claro que não” seria uma resposta dada pelo próprio escrevente à pergunta posta por Cícero; (ii) o

escrevente assume o ponto de vista outro e responde de seu próprio ponto de

vista, ou seja, “claro que não” seria uma possível resposta dada por Cícero. Em suma, mostramos como o enunciado “claro que não” expressa a fala do locutor de sua própria perspectiva, mas, de modo ambíguo, reflete também o posicionamento de Cícero. Tudo isso só pode ser observado por estar ancorado no contexto imediato.

Dando continuidade à discussão sobre formas mostradas não-marcadas, vale ressaltar exemplos de citação escondida ou alusão que, segundo Authier-

Revuz, derivam do reconhecimento pelo interlocutor de um “já-dito” em outro lugar. Eis os enunciados abaixo em que o escrevente textualiza trechos de “Canção da América” (um dos textos da coletânea):

(8) Também vale regar as sementes não tão próximas, para que virem as mais belas plantas da floresta que é nosso coração. Amizade pura é fundamental ontem, hoje e sempre para o lado esquerdo do peito. (Texto 68, §4º).

(9) Enfim, sem a amizade nada seríamos e não existe nada mais belo que aquela famosa frase: “suportaria, sem dor, que todos os meus amores tivessem partidos, porém, morreria se fossem embora todos os meus amigos” para nos convencermos de que não há valor no mundo que pague uma amizade guardada debaixo de sete

chaves, dentro do coração! (Texto 123, §6º).

Tomando as reflexões de Maingueneau (2006b; 2011) sobre o discurso relatado, poderíamos dizer que as duas formulações acima correspondem a exemplo de particitação – palavra-valise que funde “participação” e “citação”. Essa noção difere da citação prototípica por não marcar em nenhum momento o discurso outro. Retomando as palavras de Authier-Revuz, a particitação pode ser compreendida como um caso em que o outro é integrado à cadeia discursiva sem ruptura sintática. Nos dois exemplos acima, vê-se que o

escrevente, em nenhum dos dois exemplos, não faz uso de marcas tipológicas

(as aspas), nem explicita a fonte. Esse fenômeno é uma forma particular de co- enunciação, pois:

Ao recorrer à particitação, o escrevente não diz com precisão que se trata de uma citação, nem quem é o autor citado. O escrevente conta com o conhecimento prévio do corretor. Essa citação deve ser reconhecida como um trecho de “Canção da América” pelo

corretor, sem que o escrevente diga explicitamente que está

citando. Isto é, cabe ao corretor perceber que há aí uma citação escondida ou alusão à “Canção da América”.

Ao enunciar “para o lado esquerdo do peito” ou “uma amizade guardada debaixo de sete chaves, dentro do coração, o

comunidade discursiva que partilha dos mesmos saberes e das mesmas condições imediatas de produção.

Como se vê, o reconhecimento de uma particitação depende ao mesmo tempo de fatores lingüísticos e extralingüísticos. Os exemplos destacados nas formulações (8) e (9) correspondem a particitações em contato direto com as condições imediatas de produção. Vejamos, portanto, um exemplo em que o

escrevente recorre a uma citação reconhecida de Fernando Pessoa sem deixar

qualquer marca explícita de uma citação prototípica. Diante de uma reminiscência à conhecida frase de Fernando Pessoa “tudo vale a pela se a alma não é pequena”, o escrevente põe o corretor na posição de um membro da comunidade que partilha uma certa memória discursiva literária. Eis o enunciado:

(10) Encontros, reencontros, sorrisos, risadas, verdades, segredos, muitos amigos para todos nós. Assim mais uma vez, tudo valerá a pena se a minha alma e a de

todo mundo não for pequena. (Texto 72, §4º).

Conforme pudemos observar, a atenção dada às formas de heterogeneidade mostrada (marcada e não-marcada) “pode contribuir, no âmbito do discurso, para manter a distinção entre o eu pleno e o sujeito que, ele, atropela e para evitar de denunciar o domínio como ilusão do sujeito, para recolocar tal distinção no nível dos mecanismos produtores dessa ilusão” (Authier-Revuz, 1990, p. 36). Ademais,

as formas de heterogeneidade mostrada, no discurso, não são um reflexo fiel, uma manifestação direta – mesmo parcial – da realidade incontornável que é a heterogeneidade constitutiva do discurso; elas são elementos da representação – fantasmática – que o locutor (se) dá de sua enunciação. (Authier-Revuz, 2004, p. 70).

Com base nas reflexões da autora, as formas marcadas atribuem ao outro um lugar lingüisticamente descritível, mas é preciso, assim como a consideração da heterogeneidade constitutiva, uma ancoragem no exterior do lingüístico. Em suma, a hipótese da autora é a seguinte:

A heterogeneidade mostrada não é um espelho, no discurso, da heterogeneidade constitutiva do discurso; ela também não é “independente”: ela corresponde a uma forma de negociação com essa heterogeneidade constitutiva – inelutável mas que

lhe é necessário desconhecer; assim, a forma “normal” dessa

negociação se assemelha ao mecanismo da denegação. (Authier-Revuz, 2004, p. 72).

É nessa negociação que os percursos de leitura se instituem e que os “nós” entre heterogeneidade mostrada e constitutiva vão se constituindo, dando sentido ao projeto discursivo do escrevente. Esses “nós” nos permitem mostrar como o EU não está só, há um Outro que o persegue; mas, ao mesmo tempo, esses “nós” nos permitem mostrar discursos outros (percursos de leituras), eles nos permitem mostrar um trabalho do EU. Em suma, a identidade segue em direção à alteridade; ao circunscrever essa alteridade, a identidade se afirma e delimita até onde esse outro pode penetrá-la. É nesse delimitar que se dá o trabalho visível do escrevente. Quando dizemos que o trabalho é visível, não estamos dizendo que este trabalho é consciente. Visível não é sinônimo de

consciência.