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2 SIMBOLISMO DA LUZ

2.1 A leitura da luz

A leitura da luz possui características luminosas e sensuais, exalta a vida criando imagens destinadas a reduzir à visão, a inteligência e a imaginação. A luz permite anamorfose (flutuação do sentido), instabilidade, variações, movimentos, elementos evanescentes e efêmeros. É suporte criado para transmitir emoção, dramaticidade, ambiente etéreo, abstrato, prazer lúdico, não no sentido da inocência, mas sim do inesperado, do espontâneo.

A luz difere o espaço interno do externo, assim como o espaço sagrado do espaço profano, de Deus e do homem, da luz e das trevas, proporcionando o grau de cerramento. O grau de cerramento de um espaço tem notável papel na transcendência e na percepção que se faz do espaço (sua orientação e forma). Define seus limites e a percepção clara da forma, a vinculação com outros espaços contíguos, articulando a própria individualidade, aumentando e diminuindo o espaço.

“La arquitectura es um juego magistral, perfecto y admirable de masas que se reúnem bajo la luz. Nuestros ojos están hechos para ver las formas en la luz y la sombra revelam las formas.” (CORBUSIER, 1998)

46 Ao longo do dia variam características e qualidade da luz que ela transmite à arquitetura, superfícies e formas que ilumina, todas as mudanças de cor e texturas, podendo desta maneira classificar formas espaciais ou ao contrário deformá-las. Podem criar uma atmosfera agradável ou infundir um ambiente sombrio. Arquitetura é um sistema de transferência da informação, da capacidade de poder refletir ou transmitir em termos de massa, qualquer soma de informações.

A transitoriedade da vida repetindo a transitoriedade da luz durante o dia como no poema barroco de Gregório de Mattos Guerra:

Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda a ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh! Não aguardes que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza,

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. (GUERRA, Século XVII) O uso da luz pode dotar o espaço de diferentes níveis de iluminamento, pela clareza permitida na leitura de seus elementos composicionais, seja na arquitetura, pintura ou escultura. A luz permite que se estabeleçam relações visuais nos espaços. A luz cria modelos muito contrastantes de luz e sombra, e no espaço interior estabelece uma articulação formal muito pronunciada. A luz filtrada, por sua vez, vai evitar alguns inconvenientes como, por exemplo, o deslumbramento, ajuda suavizar a agressividade da luz direta e o equilíbrio do nível luminoso do interior do espaço; facilitará a perda da realidade e permitirá a individualização de certos planos do espaço.

Não existem contornos, as formas parecem diluir neste jogo de luzes e de sombras coloridas, tudo parece animado de um movimento quase imperceptível como a palpitação da vida, um instante que passa uma alucinante ilusão de vida, sensação de síntese, criando uma atmosfera quase palpável do ar onde lutam e se rivalizam os reflexos e as origens luminosas. Estabelece uma série de planos diferentes, cria desta forma um ilusionismo luminoso e atmosférico, uma visão revolucionária. (VELASQUEZ, SEC. XVI)

Em decorrência da ausência da luz, há a suspensão do tempo linear, a exaltação teatral e a exacerbação do exotismo. A operação que os olhos realizam assemelha-se à da mão que percorre um corpo, e a modulação, que reproduz a realidade na gradação de luz, também apela para as sensações de tato. O quadro táctil transforma-se em quadro visual. (HUYGHE, 1955).

47 Caravaggio, 1599 sentiu que a luz não é apenas um elemento complementar, mas adverso, e que pode ajudar a fazer ruir o primado das formas idealizadas. (FIG. 2.2)

FIGURA 2.2 Pintura de Caravaggio - Judith e a cabeça de Holofernes. Fonte: CARAVAGGIO, 2010.

A luz agora se embriagará de si mesma e da sua beleza. Com a luz denuncia-se uma nova inquietação, a consciência de outro domínio: o das forças da energia, da intensidade, do invisível, aquilo que escapa não apenas à matéria espaço, mas a medida à qual a intensidade devia vergar-se. Onde a natureza mostra uma curva, talvez se encontre agora um ângulo, e ao invés de redução e aumento de luz uniformemente progressivos, surgem agora o claro e o escuro em massas abruptas e sem gradação. Apenas a aparência da realidade é apreendida, algo bem diferente do que criara a arte linear com sua visão condicionada plasticamente. Um trunfo da aparência sobre a realidade.

Tudo se me escureceu em torno e pareceu-me que as sombras se agitavam, numa conspiração universal contra mim... Onde houver claridade, converta- se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo.(ANJOS, 2012)

Posta aos serviços das suas reivindicações, das suas agressividades, dura, implacável, esboça ela um universo de “choque” sobre ruínas da preguiça mental que todo o academismo representa. É um teatro de tensão. Pelo combate que instaura entre os elementos da visão, manifesta brutalidade poderosa, irresistível com seus apetites e sua vontade, veementemente apaixonada da alma. Converte a luz numa linguagem vinda da alma e que a alma se dirige.(HUYGHE, 1955)

48 Para uma análise de qualquer objeto deve-se considerar que o que constitui o núcleo de criação artística não é sua constituição técnica, mas a sua natureza expressiva. “A criação artística é um ato basicamente individual e subjetivo, de determinados aspectos da realidade constituindo apenas um meio para a elaboração de uma determinada experiência estética, que é intuitiva, emocional e sensível, ao mesmo tempo.” (SUBIRATS, 1988)

A fachada de San Carlindo(fig. 2.3) reage com a luz e a usa para aumentar o seu poder expressivo. As curvas, os ângulos vivos, as saliências, as bruscas interrupções, o jogo de côncavos e convexos imprimem em cada ponto um acento luminoso particular que o distingue dos demais. Para obter uma maior riqueza neste efeito, o arquiteto evita o ângulo frontal de insolação que tornaria homogênea a distribuição de luz na fachada. As estruturas são, então, dispostas obliquamente, de modo a favorecer a incidência rasante de raios luminosos e a produção de fortes contrastes de luz e sombra... (BRANDÃO, 1991)

FIGURA 2.3

Fonte: SAN CARLINDO, 2014

A celebração da luz tem como linguagem a espiritualização do espaço, a transcendência, o espaço da admiração. A utilização, voluntária ou involuntária, da luz como elemento de composição gera uma leitura do espaço com um dinamismo exarcebado, uma vez que proporcionará, a cada ponto de vista, uma leitura única e personalizada.

Seria, então, somente a luz responsável por divulgar a mensagem do edifício e seduzir o observador? Já é sabido que os fortes contrastes dramatizam o espaço e aumentam o poder expressivo da parede, contudo verifica-se também que a composição e distribuição dos elementos na fachada de San Carlino são unificados pelo tema que parece regê-la: a sensação de se olhar para cima, no centro do frontispício. Este é o espírito que sistematiza o jogo da luz e a relação entre os elementos que se interpenetram um nos outros de tal forma que não

49 podem ser decompostos em módulos como ocorria na composição renascentista. Sem perder esta unidade, a fachada progride e regride, através de nichos e elementos salientes, num equilíbrio dinâmico feito de tensões e contraposições. Como uma onda, as partes convexas induzem as partes côncavas e vice-versa, alterando-se numa cadeia de nexos que convergem no ponto central onde nada pode ser destacado sem que se perca esta justaposição pulsante que percorre o edifício.

“Assim, cada forma, espaço ou detalhe solicitam uma atenção específica e tem um conteúdo, uma personalidade e uma expressividade própria que mantém com o todo uma “harmonia dissonância”. Além disto, os côncavos e convexos da superfície, a composição e a inter- relação das formas fazem com que os nichos, reentrâncias e detalhes ocultem-se uns aos outros, não permitindo nunca que a obra se revele inteira de uma só visada, propondo-a mais como um mistério a ser investigado do que como algo acabado.

Em cada perspectiva algo se oferece, muda também o universo e o interesse visual. O espectador torna-se ativo, participante, e a obra não só favorece seu movimento, mas depende dele para revelar sua riqueza, a sua beleza – completamente diferente da beleza clássica ou do ideal formal de Bernini. O que interessa ao edifício borroniniano é oferecer-se à experiência, humana e limitada, do espaço vivido.

As variações de luz do claro ao escuro funcionam como um processo de estimulação, induzindo o surgimento do processo de significação do espaço arquitetônico, fazendo com que o aspecto comunicacional prevaleça sobre o aspecto funcional. As sombras projetadas são de uma negritude incrível perto da infinidade de cinzas. Estas sombras criam um contraste que faz com que se possa perceber todos os seus elementos. As saliências se deformam, crescem para o lado como se rebelando, anormais.