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Transcrição da Carta de Magdalena Tagliaferro, enviada em abril de 1946 Meu querido filhote,

3.1.2 Lembranças de Oriano, imagens de Magdalena

D) Lembrança 1

Um dia a mestra escalou-me para seu partenaire a 2 pianos em São Paulo (Teatro Municipal), glorioso e apreensivo compareci e, salvo ajuste de andamentos, que ela indicava mais lentos, tudo parecia correr às mil maravilhas, eu porém ainda não estava bem certo disso e perguntei quando seria o segundo ensaio.

– Amanhã diante do público – respondeu-me. Não vamos cansar a inspiração... pelo amor de Deus! Isso é um perigo quando acontece... a nossa hoje está no ponto exato.

Não cansar a inspiração!... Conviver com dona Magdalena significava esse permanente aprender. É uma grande verdade: a inspiração cansa mais depressa do que o dorso do pianista após seis horas de treino. Aliás, para o ouvido musical atilado não é difícil distinguir quem toca treinado ou

inspirado – 'em estado de graça' como dizia a mestra Tagliaferro (ALMEIDA,

OR., 1993, p. 131, grifos do autor).

E) Lembrança 2

Magdalena sabia usufruir os seus momentos deliciosos na vida. Quando diminuía a distância, esquecendo a fantasia de fada ou de mestra, era um ser humano muito atraente: estava na sua hora do fair-play ou... do turismo, como ela dizia. Creio que era nesses momentos que os refratários caíam no laço, como o Nogueira França, que veio a se tornar um de seus mais atenciosos admiradores. Na verdade, levou tempo para isso: depois da morte de seu venerado mestre Tomás Teran. Era uma anfitriã agradável e elegante. Num jantar no grill do Cassino da Urca, tomou-me pelo braço para dançar. Já me levantei um tanto inseguro, dada a inversão do convite, mas é claro que se a iniciativa devesse partir de mim, não haveria esta página dançante para leitores. Eu era muito jovem, nesse tempo que jovem era jovem mesmo, não tendo nem o direito de sair do grill para dar uma olhada na sala de jogo do Cassino. Desde o primeiro minuto nossos passos não coincidiam, negando-se o meu ouvido a identificar se a orquestra tocava rumba, bolero ou conga, ritmos em voga trazidos pelos ases da música mexicana – Ortiz Tirado, Pedro Vargas, Tito Guisar, Augustin Lara. No segundo minuto nossos passos tornaram-se ainda mais... descompassados. Magdalena parou, rindo.

– Será que além de lhe ensinar a tocar piano, também vou ter de ensinar você a dançar? (ALMEIDA, OR., 1993, p. 96, grifos do autor).

F) Lembrança 3

Dona Magdalena era inflexível nesse ponto: acreditava piamente no método que dizia ter descoberto e que faria tocar bem qualquer um, tivesse ou não aptidão especial. Eu, porém, acreditava (e continuo acreditando) que se alguém é dotado para o piano, será porque já possui parte de seu próprio método, por assim dizer, nasceu com ele. Adotei como lema uma ideia – (que acho não ser minha, mas talvez do famoso compositor Grieg) – só há uma maneira de tocar bem: com naturalidade. Nos dias em que não sinto essa

naturalidade, tocar piano torna-se para mim desconforto total, como se por

exemplo andasse com sapatos apertados. Por isso tenho grande admiração por aqueles que, dominando suas dificuldades inatas, mesmo assim chegam a tocar razoavelmente, embora se perceba que estão sempre... claudicando. Quando dona Magdalena resolvia ouvir a aula, era simplesmente fascinante. Nada lhe escapava à sensibilidade e sapiência musical: o estilo, o compasso exato, os andamentos corretos, os legatos expressivos, o fraseado cantante, os staccatos nítidos, os contrastes sonoros, os mínimos detalhes da partitura, as mínimas intenções do autor, o charme, a poesia, a dramaticidade, a simplicidade, a fluidez da Música. Era fascinante. Em certos momentos parecia querer arrancar do aluno o talento ou mesmo a emoção que muitas vezes ele nem era possuidor. Difícil era definir sua musicalidade, em lampejos cintilantes de emoção e beleza, quando ela se decidia a mostrar a aula, exemplificando ao piano o seu pensamento interpretativo. […] É bem possível que a grande Arte de Magdalena Tagliaferro só tenha usufruído quem conviveu de perto e presenciou esses momentos raros de inspiração. Eram miraculosos. E daí provinha o natural fascínio quase fanatismo de seus alunos, aliado a um sutil processo de despersonalização, e pior... a um perigoso sentimento de descrença em atingir o inatingível. (ALMEIDA, OR., 1993, p. 67, grifos do autor).

G) Lembrança 4

O cartaz no Teatro Copacabana anuncia “Un bouquet de compositeurs

français”. Jovens pianistas do Curso Tagliaferro (Lais Prado, Giuliano Montini,

Yvette Madaleno, Glória Maria, Daisy de Luca) participam do programa e recebem cálidos aplausos. A mestra e sua assistente Hermínia Roubaud, em traje soirée de gala, dão entrada triunfal no palco, para fechar com chave de ouro aquele jardim melodioso, tocando em 2 pianos a Suíte Scaramouche, de Darius Milhaud. Logo na segunda página da partitura, o piano da mestra se desentende com o piano da assistente, e emudece. Ouve-se um lento suspiro saudoso, enquanto ela vai docemente derreando a fronte sobre as teclas. Susto na plateia. Mas, rapidamente a mestra reanima e, depois do breve minuto em silêncio, os dois pianos voltam a entender-se maravilhosamente bem. Em meio ao entusiasmo final e delírio do público, cochicha um gaiato (pois jamais ousaria dizer em voz alta): “nunca vi um desmaio... que se diz ser mesmo um desmaio de verdade... passar assim tão depressa... só com um lencinho perfumado de água de Colônia no nariz...” E, de fato, na recepção que se seguiu, comemorando o sucesso da noite, causou surpresa a todos ver a mestra mais alegre e esfuziante do que nunca. (ALMEIDA, OR., 1993, p. 151, grifos do autor).

H) Lembrança 5

Sim, era uma casamata inexpugnável e uma usina em atividade permanente. Tinha senso de compromisso profissional aliado à vontade febril de tocar em público. Penso que nem mesmo um terremoto a impediria de comparecer na data marcada. Em Belém (Pará) anunciou que não haveria tempo para conceder um só bis, porque depois da última nota do programa iria diretamente ao aeroporto a fim de alcançar o horário do único avião que poderia deixá-la em Recife para o ensaio com orquestra na manhã seguinte. Em Salvador (Bahia) tocou com 38 graus de febre. Mas quando me alardeou essa bravata estava completamente esquecida que um dia me inoculara, graciosamente, o vírus telegráfico de 40 graus que me impediu de tocar o Concerto de Schumann sob regência de Francisco Mignone. Em Taormina (Sicília) entre as pedras do antigo anfiteatro romano e os fios da instalação elétrica, tropeçou e caiu. Logo de pé, dirigiu-se ao piano e continuou a exibição. Um mês com dores lombares em Paris, custou-lhe a brincadeira. No Rio, atropelada de manhã por uma bicicleta em Copacabana, à noite entrava no palco do Municipal com a perna enfaixada e gloriosamente amparada no braço do maestro Mignone, para solar o 5º Concerto, de Saint- Saëns.

– Ela talha-ferro! – Exclamavam os presentes, admirados (ALMEIDA, OR., 1993, p. 93, grifos do autor).

I) Lembrança 6

Quatro rituais eram obrigatórios no seu dia-a-dia: o treino ao piano, a massagem matinal, a sesta depois do almoço, o chá das 5. Era um pouco escrava do relógio e não admitia alguém chegar cinco minutos depois do encontro combinado. Tinha hora para tudo: até para emagrecer ou engordar, assim como para a obrigação e a devoção. Após o recital em Natal adorou a ceia de frutos do mar às margens do rio Potengi. Dali quis ver as praias onde o luar iluminando o areal dava a impressão de um campo de neve. Ela não resistiu. Tirou os sapatos e foi caminhar à borda do mar.

– Está na minha hora de turismo – justificou (ALMEIDA, OR., 1993, p. 95, grifos do autor).

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