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2.4 REFLEXÕES SOBRE AS MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

2.4.3 Lembrar e degustar

Logo no início do meu exercício autobiográfico8, percebi como as memórias da infância tinham uma forma bastante peculiar de se manifestar. Muitas vezes, um simples cheiro, uma música, um pedaço de bolo faziam “brotar” histórias surpreendentes e que eram extremamente inspiradoras para a minha prática docente. No livro em

Busca do tempo perdido, de Proust, o narrador desperta para

recordações da sua infância saboreando um biscoito molhado no chá. Nos relatos mais formais, nos quais, de forma consciente, eu queria me lembrar da minha infância, eu percebia que as minhas histórias se

7 Ibid.

8 O exercício autobiográfico a que me refiro é o que mencionei na minha formação em

tornavam mais previsíveis correspondendo às histórias narradas pelos meus pais e pelos irmãos da criança que fui. No exercício da memória autobiográfica da infância, fui puxando e entrelaçando fios que me deram novos significados à vida, no agora, no presente. Ou quem sabe se é o meu presente que me dá uma nova possibilidade de olhar o passado.

Enveredando por caminhos pretensamente já conhecidos, somos surpreendidos pelas imagens que nos falam, agora, de diferentes maneiras, possibilitando-nos vê-las em suas diversificadas faces, ou seja, nos fazem aprender de novo [...]. (SANTOS, 2010, p.60)

Nesta perspectiva da mútua relação entre passado e presente, Bosi (1983) esclarece como sendo a possibilidade de um “deslocamento” da nossa representação atual de nós mesmos e da nossa infância. Referencio a frase de uma das professoras como um exemplo deste permanente movimento: “Minha ideia de que eu era uma criança que não brincava está mudando. Estou tendo um novo olhar para minha infância” (professora Canário). Para esta professora, as Narrativas Autobiográficas deram a possibilidade de movimentar as suas memórias, transformando a imagem que tinha de si.

Movimentar as representações fixas que construímos nas nossas histórias de vida é muito importante na formação do educador. Nesta perspectiva, a formação deixa de depender apenas de estímulos externos, como o uso de novas estratégias e técnicas pedagógicas, para fazer um caminho de autoeducação como proposto por Steiner9 ou também denominado de autoformativo pelo grupo Gepeis10.

Neste percurso percebemos a memória como (re)criadora e (re)significadora de vivências, capaz de transmutá-las em novas subjetividades e contribuindo para uma outra perspectiva de formação. (OLIVEIRA, 2009 p.179)

9 Capítulo sobre o exercício autobiográfico na Pedagogia Waldorf.

10 Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Imaginário Social da Universidade de Santa

Neste sentido, eu queria chegar o mais perto possível das memórias pouco previsíveis, pouco fixadas, que Bergson (apud BOSI, 1983) denomina de lembranças-imagens. Para isto, recorri a um mecanismo de provocação, que denominei nas Oficinas de Narrativas Autobiográficas de momentos de inspiração. Para cada encontro, eu tentava criar uma estratégia diferente. Na elaboração destas estratégias, usei duas fontes inspiradoras, as minhas próprias lembranças de infância e a observação dos meus alunos.

Aqui, gostaria de chamar a atenção para a diferença entre ser um observador ativo ou assumir o domínio da situação. Muitas vezes, após anos de prática, nós, professores (eu mesma já fiz isto muitas vezes), olhamos para a criança pela perspectiva de um professor que já sabe e que de certa maneira não consegue mais olhar como quem olha a primeira vez: a alegria de subir na árvore, deitar na grama, lamber o chocolate da forma de bolo, pegar a colher do amigo escondido.

A minha pesquisa renovou o meu olhar para o cotidiano escolar, e assim procurei identificar no convívio com meus alunos momentos de inspiração para as oficinas. Queria saber das lembranças que tivessem sabores, texturas, cheiros, emoções, ludicidade, aventura. Por isto, não me satisfazia em perguntar sobre a infância das professoras, era necessário provocar a memória. Em um dos encontros, por exemplo, utilizei como momento de inspiração o Jogo do Kim11: aquela brincadeira de abre-a-boca-e-fecha-os-olhos que as crianças tanto brincam! Após a brincadeira, a professora Curreca narrou:

Que legal vendar os olhos! Experimentar gostos e sensações sem poder enxergar, apenas imaginar e transportar-me para meu tempo de criança. Gostos, aromas, cheiros... Lembrei de quando a minha mãe preparava uma caneca com Nescau quentinho e dava para meu irmão e eu. O Nescau foi lançado naquela época! Era a bebida sensação da criançada! Nós degustávamos aquela bebida passeando pelo jardim e no pequeno pomar da nossa casa.

Os sabores desta brincadeira provocaram lembranças. O que eu observava durante as oficinas é que as memórias da infância respondiam

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com maior intensidade e espontaneidade através de experiências sensoriais, emotivas e até espaciais (lugares). E um dos fatores que interferem nesta especificidade da memória de infância é o próprio desenvolvimento da memória na criança pequena. Existem muitos estudos que classificam em estágios o desenvolvimento da memória na criança pequena. Neste momento, citarei as etapas deste desenvolvimento referentes na Pedagogia Waldorf, que é o referencial teórico na minha prática pedagógica.

Lievegoed considera que a memória compreende três etapas a serem conquistadas pela criança de primeira infância. “A função recordativa mais primitiva é algo que se poderia chamar de memória local. Este é um fenômeno que surge na criança até aproximadamente 3 anos” (LIEVEGOED, 1994, p. 115).

Em um dos encontros, a professora Bem Te Vi nos contou que, quando foi visitar a casa em que viveu durante a sua infância, encontrou o berço que usou até aproximadamente dois anos de idade. Ficou muito emocionada com suas lembranças de uma idade tão longínqua: “Já estava no berço deitada, quando vi meu pai chegando feliz, tentando contar mais uma das suas histórias fantásticas...”. De todas as memórias compartilhadas, esta foi a mais antiga e que foi lembrada a partir da casa e, especificamente, do berço desta professora.

As outras professoras tinham mais facilidade em lembrar-se de fatos a partir dos cinco anos, quando já se pode observar um segundo estágio da memória:

Depois da memória local desenvolve-se a memória rítmica. Graças a ela a criança pode guardar certas coisas antes de poder lembrá-las abstratamente. É com a maior alegria que ela repete rimas infantis, versinhos rítmicos e numéricos e canções de roda. (LIEVEGOED, 1994, p.116)

Um exemplo deste tipo de memória são as lembranças da professora Beija-Flor ao cantarolar para o grupo: “mal-me-quer, bem- me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer”, repetia várias vezes até deixar a flor sem pétalas...

Neste contexto, são inúmeros os exemplos de brincadeiras de roda, de palmas, que fazem parte das lembranças de infância das

professoras que participaram da pesquisa: “dentre tantas brincadeiras, escolho as cantigas de roda que com muita alegria guardo na minha memória...” (professora Bem-te-vi).

E a roda rodava:

Se esta rua, se esta rua fosse minha... Eu mandava, eu mandava ladrilhar... Com pedrinhas, com pedrinhas de sabão... Para o meu, para o meu amor passar...

A transição para uma memória com conteúdos mais abstratos e de forma mais consciente é uma aquisição que vai se construindo e que não substitui a memória local e rítmica. Observar nos meus alunos a infância e as fases da memória infantil me ajudou na elaboração dos momentos de inspiração das Oficinas de Narrativas Autobiográficas sobre a infância. As memórias de infância não parecem obedecer as regras da nossa memória cotidiana. Elas nos surpreendem, às vezes, com um local que eu visito, um cheiro que sinto, um sabor que me preenche, um ritmo que me faz citar versos de que há muito não me lembrava. Esta forma de lembrar a infância me possibilita narrar experiências significativas, profundas e que comovem. Memórias de infância pedem a possibilidade de lembrarmos com o corpo, os sentidos, com movimentos, com música e muita brincadeira.

2.5 NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS COMO PROCESSOS