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3. A ILUSTRAÇÃO LITERÁRIA: UMA TRADUÇÃO

3.1. Ler é ver imagens

Designar e desenhar não se sobrepõem, mas sim se entrecruzam. É nas lacunas presentes dentro dessas duas linguagens autônomas e interdependentes que a leitura é concebida:

Sobre a página de um livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse pequeno espaço em branco que corre por cima das palavras e por cima dos desenhos, que lhes serve de fronteira comum para incessantes passagens: pois é ali, sobre esses poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam, entre as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de descrição, de classificação (FOUCAULT, 2014, p.33).

Ler implica ver imagens. O escritor italiano Ítalo Calvino (1990, p.108) sublinha que a visibilidade é a uma das faculdades humanas fundamentais e a define como “capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens”. Para ele, há dois tipos de processos imaginativos, um que parte da palavra para chegar à imagem visiva, e outro, da imagem visiva à expressão verbal. Geralmente, o que ocorre com a leitura é o primeiro processo, pois ao lermos um romance ou uma reportagem, conforme a eficácia do texto, é possível que sejamos levados a ver a cena ou fragmentos dela, até alguns detalhes, diante de nossos olhos.

Ao tratar a visibilidade a partir do verso de Dante no “Purgatório”, que diz chover dentro da alta fantasia, Calvino (1990, p.97) discorre que “a fantasia, o sonho, a imaginação é

um lugar dentro do qual chove”, ou seja, formam-se imagens dentro do “espírito”, da mente de quem vê. O escritor, além de ver, ainda intenta gerar a imagem visiva no leitor pela expressão verbal.

Calvino (1990) afirma que seu processo busca unir a formação espontânea das imagens e a intenção do pensamento discursivo. Ao idealizar um conto, ele descreve que as imagens são o primeiro elemento que se apresenta. Ricas em significados, suas potencialidades implícitas revelam o conto que trazem em si. “Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições.” (CALVINO, 1990, p.104). Ao se tornarem mais nítidas em sua mente, ele inicia a escrita, a “tradução em palavras”, e, neste instante, ao “pôr o preto no branco, é a palavra escrita que conta (...) Ela é que irá guiar a narrativa na direção em que a expressão verbal flui com mais felicidade, não restando à imaginação visual senão seguir atrás.” (CALVINO, 1990, p.105).

As soluções visuais são determinantes a ponto de ora decidirem situações que nem o pensamento nem a linguagem escrita resolveriam, porém, mesmo sendo da imaginação visiva o impulso inicial, o raciocínio verbal impõe sua lógica mais cedo ou mais tarde. Calvino (1990, p.114) observa:

(...) todas as “realidades” e as “ fantasias” só podem tomar forma através da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto.

No entanto, diante do que já chamamos de perfídia do objeto, ou seja, de suas resistências em ser transformado para um outro formato, podemos considerar que nesse processo de tradução de imagens visivas para expressão verbal permanece uma grande parcela dessas imagens dentro da mente. Douglas Hofstadter apud Calvino (1990, p.103) ressalta esse aspecto:

Admitamos, por exemplo, um escritor que esteja tentando transmitir certas idéias que para ele estão encerradas sob a forma de imagens mentais. Não estando totalmente seguro de como essas imagens se harmonizam em seu espírito, vai procedendo por tentativas, exprimindo-as ora de um modo ora de outro, para chegar finalmente a uma determinada versão. Mas sabe acaso de onde tudo isso provém? Apenas de maneira vaga. A maior parte da fonte permanece, como um iceberg, imersa profundamente em água, fora de vista, — e ele sabe disso.

Portanto, a escrita e o desenho podem ser percebidos como atos de escolha, em que é preciso fazê-los para transferir as imagens mentais à linguagem desejada. Flusser (2014)

considera que os gestos, em geral, são um ato de liberdade, uma vez que são escolhas, necessitam de intenção. Entre eles, o filósofo trabalha o gesto de fabricar, de ouvir, de escrever, dentre outros, mas não se pronuncia sobre ler, atenta-nos Gabriela Reinaldo, em seu ensaio Gesto e liberdade (2011). O silêncio do filósofo faz emergir de nós múltiplas leituras.

Permite-nos considerar que ler, seja o traço da figura ou o desenho das palavras, também é ato de liberdade, por ser escolha. Em vista disso, o processo em que Poty apreende o texto rosiano para interpretá-lo em imagens, pode ser percebido como um ato de leitura.

De acordo com o escritor Valêncio Xavier (1994), esse gesto está implícito na tarefa do ilustrador, pois “é preciso que ele [o ilustrador] receba um recado do texto, é preciso que ele saiba ler” (XAVIER apud LOPES, 1988, p.2). Ele ressalta que a leitura é o suprassumo do ilustrador de livros.

Com Poty não poderia ser diferente, ele é um ilustrador-leitor. Conforme Carollo (1997, p.1-2), leitura e gravação marcam a carreira do artista, além de considerar natural o seu percurso “iluminando” obras dos principais escritores brasileiros, uma vez que era leitor ávido desde a adolescência.

Traços comuns, preferências, unem os escritores que ilustrou, permanecendo sempre a consciência diante da especificidade do texto, como fator que acaba determinando a ausência de uniformidade em sua tarefa de ilustrador. Ora o texto exige uma solução mais linear, ou então a narrativa solicita recursos que exploram procedimentos situados no interior da enunciação (foco narrativo, planos temporais, metalinguagem, funções e sequências decisivas). O ilustrador pesquisa, documenta. Porém o fundamental em seu trabalho, é o ato de filtrar. (...) Como dissemos, o fundamental é o elemento estranho que introduz na realidade, o ponto de vista que introduz um ritmo intruso no cotidiano, seja ele o mais sentimental, a exemplo de suas leituras curitibanas. Este direcionamento, que acaba penetrando em grande parte de seu trabalho, resulta de um interesse sempre presente: a sedução pelo fantástico.

Ao extrair o fantástico do ordinário, do cotidiano, Poty transfere seu olhar para suas ilustrações. A pesquisadora Paula Viviane Ramos (2007) descreve que o processo criativo de Poty se concretiza da seguinte maneira: ele inicia com uma leitura atenta que poderia se repetir quantas vezes necessário; em seguida, caso seja possível, o ilustrador visita a paisagem ao qual o texto se refere a fim de perceber as especificidades do lugar como os tipos humanos, o cheiro das flores, da terra, o sabor da comida. A partir de percepções não apenas literárias, mas humanas, ele cria suas imagens. O ilustrador conta que seus desenhos literários se concretizam a partir da leitura, a qual define como a primeira etapa. Caso se interesse pelo texto, imerge por meio da busca em reproduzir a atmosfera, as personagens descritas e as situações. “Às vezes até sem nenhum interesse, nenhuma intenção de publicação, mas pelo

prazer próprio. Tenho dezenas de livros que ilustrei para mim” (POTY apud LOPES, 1988, p.2).

Sobre suas ilustrações para textos longos, como para as obras de Guimarães Rosa, o ilustrador afirma o seguinte:

Eu leio e escolho um ou outro ponto que me pareça significativo uma tachação de tal e tal ponto, eu mesmo escolho. Guimarães Rosa, acho que se divertia tanto quanto eu! Em “Grande Sertão Veredas”, em que ele pediu aquela série de mapas, modificava no dia seguinte, queria um cavalo mais acima, um fuzil mais abaixo, esse não foi ilustrado, né? Não tem ilustração, o livro. Só tem esses mapas e a capa. Nos outros, ele me deixou inteiramente livre, foi ilustração à minha conta. (POTY

apud LOPES, 1988, p.4)

Sendo fruto de escolha ou de filtro, o papel do ilustrador é um ato de liberdade. Por meio dele, criam-se imagens visivas que guiam para a expressão verbal. Contribuição para o texto, um complemento, a ilustração de Poty leva “às últimas consequências a atividade literária através da sua projeção visual”, destaca o escritor Fernando Sabino (apud LOPES, 1988, p.3). Desse modo, Poty ilumina em flashes a língua imagética de Rosa ao leitor, apontando para mistérios sem os elucidar. Dentro do espaço de abstração e da rede aberta das similitudes, as relações de designação e representação se enlaçam por meio do texto de Rosa e da ilustração de Poty.