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LER LEVANTANDO A CABEÇA – ou o elogio à leitura

Ler, ler sempre, melíflua paixão da anima. Gaston Bachelard

Como chegar ao título deste capítulo, cuja expressão tomei emprestada de Barthes (2004b, p.26), quando temos muitos cenários como este:

[...] o Andrey sempre diz que só descobriu o prazer de ler com a roda de leitura, ele que chegou na roda cheio de medo, todo encolhido, achando que seria obrigado a ler, até hoje ele lembra disso e ri. (grifos meus).

Telma Não tenho uma resposta, muito menos uma receita. Posso apenas escrever como leitora indisciplinada, visto que a alquimia do prazer é individual e muitas vezes inexplicável. Contudo, aqui, neste breve passeio, que só existe pela força que essa pergunta barthesiana me provocou, gostaria de ser otimista. Ou, para ser repetitiva, é meu ato de pausa para devaneios sérios causados por essa leitura que me fizera levantar a cabeça e, vou mais adiante, parar para escrever toda essa dissertação.

A literatura que envolveu os leitores, não tenho números precisos de quantos foram, mas acredito que foram centenas de cabeças diferentes (re)lendo algumas vezes o mesmo texto. Cabeças em movimento. Essa arte literária e universal tirou das casas as pessoas, retirou-as do mundo cronológico e apressado. Colocou-as dentro de uma biblioteca pública, cheia de livros, de pessoas vivas e mortas. Usurpou dessas criaturas quase duas horas de um dia, toda semana – para aqueles que eram teimosos e persistiam nesse jogo infindável e inesgotável da leitura. Tudo isso sem oferecer nada em troca, de antemão. Esses seres, os leitores, às vezes parecem voluntários de um mundo utópico. Mas para que serve a utopia senão para caminhar, como disse Fernando Birri, diretor argentino e amigo de Eduardo Galeano, em uma das entrevistas deste.

No caminho errante da linguagem nos reconhecemos e nos constituímos. Nela, nossas vozes se agitam, se encontram, se entrelaçam. Compartilhamos as mesmas inquietações e o abismo da incessante busca por sentidos. Quase os

extremos se tocavam, jovens ainda envolvidos com a vida escolar ou universitária (antes de iniciá-la, na maioria dos casos) e os aposentados nós encontrávamos.

[...] eu me dei conta de como nossos encontros semanais, além de gratificantes, estimularam em mim o gosto pela literatura e filosofia, desejos guardados desde há muito tempo e que pude realizar após minha "carta de alforria", a aposentadoria.

Carmen Alforriar-se para ler. Para realizar(-se) no desejo da leitura e do que ela pode proporcionar. A literatura se realiza na linguagem que, por sua vez, é vivenciada na leitura, neste ato particular que a Carmen e os demais leitores realizam ao percorrer as páginas de um livro. Nas rodas, a leitura de cada um poderia formar uma leitura coletiva, mas dificilmente fechada em si mesma. Os pontos discordantes de um texto oscilavam em prol do que constitui a própria linguagem literária: a ambiguidade do sentido, a pluralidade de discursos.

Apropriar-se de uma leitura também significava abrir mão de outra ou, contraditoriamente, chamá-la de volta com outros sentidos. O jogo que o leitor joga é criado por ele mesmo e pelo texto que o perpassa. Na leitura, as regras são intercambiáveis de acordo com a invenção com a qual o leitor trabalha. O jogo é jogado, o saber vivenciado, suscitando um conhecimento que diz ao leitor o que ele – na travessia da leitura – vai reconhecendo e criando para si e para o outro.

Contudo, retornando às cabeças que se levantam, aos “breves silêncios pós-leitura” (Samuel), em que o leitor fica “um bocado de tempo quebrando a cabeça até formular aquelas ideias” (Katia), percebo o quanto escrevemos em silêncio. Seria, então, o que Barthes (2004b, p.27) chama de texto-leitura? O texto que escrevemos quando lemos. Ou, melhor, seriam vários textos se escrevendo em nós na leitura? Difícil saber. Mas, ainda, posso concordar que

“ler é fazer o nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases.” (Ibid., p.29).

Eu já estava há algum tempo procurando pessoas que gostassem de ler para trocar ideias, mas nunca havia passado pela minha cabeça que pudéssemos reunir um grupo para ler contos, poesias.

Passar pela cabeça não somente ideias prontas, adquiridas antes mesmo do nascimento. A possibilidade de a leitura ser compartilhada, sendo a literatura a anfitriã das leituras particulares, se funda também no desejo humano de estar junto. Afinal, quando lemos sozinhos, estamos de fato sozinhos?

Lemos com o corpo. Entramos em contato com algo desconhecido, que fala diretamente a nós, sem mediação, “toca ou não toca”, disse Clarice Lispector. Na leitura, somos também personagens de uma ficção. Porque antecipando ações, diálogos, reações, conflitos, estamos narrando e sendo narrados. O espaço das rodas, assim, configura um coro de personagens, com seus olhares perspectivísticos, múltiplos, dentro de uma grande obra aberta. Ao leitor, produzindo sentidos, subvertendo diversas vezes uma lógica interna do texto, atribuía-se um valor de escritor. Seu texto lia-se, inclusive, pela negação que ele(s) produzia(m) em relação aos sentidos do(s) outro(s).

Ao levantar a cabeça, num ímpeto irrepreensível, o olhar ainda continua vinculado ao que se acabou de ler, ao que foi tocado e por ele transformado. Buscamos um entendimento de algo que o corpo já o sabe, tentamos iluminar o sentido pelo viés do imaginário, ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Para Proust (2011, p.39), a leitura é um ato psicológico original, cuja força “é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar”.

Pela leitura teríamos acesso direto a uma pluralidade de relações humanas, ao que fica e ao que passa de nossas experiências. Pela inteireza da linguagem literária, “o que hoje descobrem as ciências humanas, seja qual for a ordem, sociológica, psicológica, psiquiátrica etc., a literatura sempre soube; a única diferença é que ela não o disse, escreveu.” (BARTHES, 2004b, p.12).

A leitura seria o gesto corpóreo desse desejo de desconhecido, de multiplicidade. O protagonismo do leitor está nesta performance da leitura durante as rodas, cujo próprio trabalho (o levantar a cabeça) de elaboração tece o entendimento ou a tentativa de entenderem. Assim, a leitura se distancia da distração, cujo alheamento difere daquele trabalho complexo de sentidos. Pois o leitor não é apenas um consumidor de palavras, a cada página lida, mas também seu produtor, ou poderia sê-lo, artesão de um texto-leitura que representasse o seu trabalho de linguagem co-participativo na trajetória da leitura. Pois “ler não é,

portanto, obter comunicação da obra, é “fazer” com que a obra se comunique [...]” (BLANCHOT, 2011, p. 216).

Como comecei afirmando que não tinha resposta, apenas posso dizer que, ao levantar a cabeça durante minhas leituras, solitárias ou não, preciso me levantar também, inteira, caminhar, ir para longe do livro, reorganizar o rumor que foi gerado e gerido. Dar forma ao informe, como disse Todorov. Provavelmente, o prazer sentido se refere a essa possibilidade que a leitura oferece: de movimento, de mudança, que é o ritmo da vida.