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PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 2 – A EMERGÊNCIA DO ACTO DE LER

2.9 Ler em voz alta ler para e com os filhos

A leitura em voz alta que a mãe ou o pai fazem ao seu filho antes de adormecer, faz com que se substitua a canção de embalar na criança que cresce, fenómeno que Jean (2000, p. 114), chama de:

"espécie de linguagem transicional, que vem do outro lado, e da qual a criança se apropria". O mesmo autor, dá-nos conta da importância que reveste o acto de ouvir, de ver e de compreender o livro por parte da criança, permitindo a percepção (...) "que a voz do pai, da mãe, do irmão, etc. "sai" dos pequenos signos do livro".

Neste âmbito, Daniel Pennac cita Hlaus Mann (1992, p.77), para expressar o essencial poder das leituras da infância, feitas por familiares:

"A voz dos poetas confunde-se na minha memória com a voz daqueles que nos deram a conhecer, pela primeira vez: existem certas obras-primas da escola romântica alemã que não consigo reler sem voltar a ouvir a entoação da voz enternecida de Mielen...".

Nesta medida, a voz é um intermediário entre a criança e o livro, que lhe parece falar com uma voz conhecida, tendo o poder de se transformar.

Ainda segundo Gean (2000, p.115):

"A voz materna, a voz espelho torna-se espelho duplo, espelho do livro que existe enquanto objecto, que não se manipula de qualquer forma (o leitor vira as páginas, o papel faz barulho quando se a "vira") e espelho daquilo que os olhos do leitor seguem. Espelho, enfim, da criança que, através da mediação reconhecida da voz materna, recria para si própria e apenas para si, interioriza esta história que vem do outro lado e que lhe pertence. Ela interioriza-se de tal modo que, com muita frequência, a criança pede que lhe releiam todas as noites o mesmo livro, a mesma narrativa, que é a sua carne, o seu imaginário formalizados numa linguagem, e que deve ter a mesma voz com as mesmas modelações e deter-se nos mesmos pormenores".

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São momentos de intensa relação com os filhos, os passados a ler uma história antes de dormir. As histórias queridas, vivenciadas em conjunto apresentam personagens que constituem perfeitas referências a uma cultura comum. Todos os adultos se podem divertir com os seus filhos, ora lendo histórias, ora reproduzindo episódios do dia através da forma de contar como num livro. Depreendemos e compreendemos, ser, no seio desta dualidade, que poderá começar o desejo de ler para a criança.

Estudos efectuados demonstram, que o gosto pela leitura nasce em famílias, nas quais se experimenta o falar, contar histórias ou eventos de todos os dias, em contextos onde as crianças são reconhecidas nos seus sentimentos. Também o psicanalista René Diatkine, citado por Geneviève Patte (2002, p.10), apresenta a este propósito a ideia, que na vida são utilizados dois tipos de linguagem, a linguagem utilitária e a linguagem do relato, sendo que esta se circunscreve a um acto de contar eventos, com um início, um desenvolvimento e um final, que permite a construção de sentidos. Esta, denominada linguagem da literatura, desempenha um papel fundamental na dinâmica da relação e integração social.

Reconhecemos aqui, e segundo a nossa experiência profissional, a existência de desigualdades de oportunidades, dado que muitas crianças não vivem nestes contextos de interacção, porque os pais não sabem ou não querem ler em voz alta, porque não há livros em casa, porque não tem tempo, porque pensam que o local para isso é na escola, etc.

Consideramos que, o Jardim-de-infância pode intervir positivamente na melhoria de algumas práticas de valorização do livro em casa. António Torrado no ensaio ”Da escola sem sentido à escola dos sentidos” (2002, p. 26) refere um episódio que por si deve ser o preterido por todas as famílias e o mais ambicionado pelos filhos:

“Eu era o cicerone e os livros, os álbuns da vida, a seguir dentro de momentos. O André familiarizou-se com os animais e aprendeu-lhes depressa os nomes. Identificava- os nas gravuras e nutria uma especial predilecção pelos elefantes. Quando pela primeira vez, enfrentou as três corpulentas dimensões do elefante no jardim zoológico, ficou atónito. “Tá grande!”, exclamou o pequeno polegar de dois anos, olhos redondos de pavor inimaginável.”

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Efectivamente parece-nos poder apontar que uma pedagogia de leitura requer uma pedagogia de afectos. Reafirmamos a afirmação de Veloso e Riscado (2002, p. 26),"(...) amar ler é a primeira condição para formar crianças leitoras, emocionalmente inteligentes e imaginativamente interventivas". Ler em voz alta significa então estabelecer vínculo afectivo, que diverte e fomenta o desejo da leitura, favorecendo o processo escolar da criança.

Importa-nos pois, demonstrar a importância de ler em voz alta. Dados científicos confirmam que existe causa efeito, entre a convivência do ler por parte dos adultos, e a vontade de mais tarde as crianças terem fascinação pela leitura. Um estudo realizado no México evidenciado por Marina e Válgoma (2006,pp.97-98), demonstrou que ler contos diariamente durante seis semanas a crianças de dois anos melhora a habilidade para usar a linguagem e o vocabulário. Ainda mais curioso, um outro estudo realizado em Israel evidencia que as escolas que evidenciam um alto nível de leitura, cerca de 96% dos pais lêem diariamente aos filhos. Um outro predicado de ouvir ler, é que a leitura pode ser um grande nivelador social; nas palavras de Marina e Válgoma (2006, p.98), tomam o seguinte significado: “una actividade tan revolucionaria como la redistribución de la riqueza, permite la redistribución de la cultura”. Por conseguinte a tarefa de persuadir os pais com baixo nível económico a ler poderá ser difícil mas vale a pena, pois os filhos beneficiam enormemente.

Depreendemos que quanto mais cedo se começar a ler às crianças melhor. Existem já livros, que permitem o seu manuseamento sem que se rompam. Trata-se pois, de introduzir o livro num ambiente cordial e amistoso. Existe um momento especial em que a magia de ler, pode fazer-se com mais facilidade e é o momento de ir para a cama. Para as crianças este momento não é agradável e é precisamente quando o pai e a mãe estão mais cansados. No entanto,

“…es un momento en que, a cambio de un pequeño esfuerzo, el placer que podemos darle – porque se trata de eso, y no de se instruya com la lectura. De facto os pais podem experimentar o prazer de sentir um vínculo intenso e terno, “…un recuerdo a atesorar a lo longo de la vida…”.(Idem)

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Entendemos como Pennac (1993), quando sustenta que a necessidade de ensinar tudo acerca do livro quando não se sabe ler abre a infinita diversidade das coisas imaginárias, que permite a abstracção do mundo para encontrar -lhe um sentido. É um duplo consolo para os pais e para os filhos. É o modo de acompanhar um momento de algum medo da noite, de deixar o mundo luminoso do dia e entregar-se ao escuro mundo dos sonhos.

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