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CAPÍTULO II – REFLEXÕES A PARTIR DO PATRIMÔNIO CULTURAL E A

CAPÍTULO 3 – A HISTORICIDADE DOS PATRIMÔNIOS CULTURAIS DO GRANDE

3.4. A construção de um guia didático a partir das experiências de um projeto de educação

3.4.1. Levantamento de patrimônios do território

O primeiro passo do projeto foi o levantamento de quais os patrimônios culturais existentes no Grande Bom Jardim, escrito pelos próprios alunos. Através de um questionário, os estudantes elencaram uma série de locais a serem analisados historicamente por considerarem que esses espaços poderiam ser considerados patrimônios do território.

Esse primeiro questionário foi baseado na proposta dos inventários participativos construída e divulgada pelo IPHAN, a partir dos quais se reconhece que as comunidades de moradores de determinados lugares podem, elas mesmas, organizarem os levantamentos e registros das suas referências culturais e históricas que tem relações com sua afetividade e memória (TOLENTINO, 2018). Assim, muitos lugares, objetos, manifestações culturais e práticas que normalmente são naturalizadas pelos estudantes e moradores do GBJ como sem muito significado histórico, podem, a partir do levantamento, ser estudados como importantes vestígios da história do lugar. Como está destacado no próprio manual de aplicação dos inventários:

O patrimônio cultural faz parte da vida das pessoas de maneira tão profunda que, algumas vezes, elas sequer conseguem dizer o quanto ele é importante e por quê. Mas, caso elas o perdessem, sentiriam sua falta. Como exemplo, citamos a paisagem do bairro; o jeito de preparar uma comida; uma dança; uma música; uma brincadeira. Fazendo o inventário, é possível descobrir e documentar o repertório de referências culturais que constituem o patrimônio da comunidade, do território em que ela se insere e dos grupos que fazem parte dela. (IPHAN, 2016, p. 8)

A partir dos questionários, diversos bens culturais, fossem materiais ou imateriais, foram apontados pelos estudantes, que também são moradores do bairro, como lugares importantes para a história local e que deveriam ser estudados, visitados e registrados. Foram citados50: O CCBJ (39), as escolas do bairro (20), a Praça de Santa Cecília (16), a Areninha (9), a Festa de Aniversário do Bom Jardim (5), o Desfile Cívico (5), as igrejas (4), os Rolezinhos (3), o Museu (3), moradores antigos do bairro (3), o Grito dos Excluídos (2), a Paixão de Cristo (1), a Casa Mãe África (1) e o CDVHS (1).

É importante destacar que esse reconhecimento de bens culturais na região pela sua juventude demonstra que os alunos possuem uma identidade com o bairro, a ponto de conhecer suas referências culturais e históricas. Essa é uma das dimensões da consciência histórica, se entendermos essa categoria como a consciência que todo sujeito tem de sua posição no fluxo temporal, que se forma a partir das experiências que o ser humano tem no concreto e não depende exclusivamente da escola, nem do estudo da História. O reconhecimento dos estudantes de que são moradores do Bom Jardim e que possuem referências culturais que devem ser estudadas na escola demonstra a sua identidade com o seu local de vida.

De acordo com Estevão Martins, a consciência histórica é constituída por dois elementos: “o da identidade pessoal e o da compreensão do conjunto social a que pertence, situados no tempo” (MARTINS, 2019, p. 55). Não por acaso, a maior parte dos bens indicados pelos estudantes são vestígios que guardam memórias suas e que, portanto, são formadores de sua identidade pessoal e social ao longo do tempo. Abaixo algumas respostas de estudantes para a pergunta: “Você tem boas lembranças e experiências de algum lugar, festa, evento ou manifestação cultural no Bom Jardim e com o qual você tem afetividade? Qual ou quais?”. Elas exemplificam essa relação entre o que consideram patrimônio e suas memórias:

Figura 6

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Sim, representação de arte no Centro Cultural do Bom Jardim onde nós aprendemos mais um pouco sobre arte e cultura do bairro. (OLIVEIRA, 2018)

Figura 7

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Sim, do aniversário da Pracinha de Santa Cecília que teve um show muito legal. (MIRANDA, 2018)

Figura 8

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: A igreja da Praça do Santa Cecília. Costumo ir às vezes no domingo. (RIBEIRO, 2018) Figura 9

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Sim, uma vez teve uma parada gay na praça que foi muito bom, apesar de eu ser hétero, eu tive muita afetividade. (CORDEIRO, 2018)

Figura 10

Transcrição: Eu participava de um projeto (Instituição). Eu gostava muito de lá porque trabalhava com a história do bairro. (Interagirmos). (ESTANISLAU, 2018)

O fato de estarem registrando elementos do seu cotidiano como bens patrimoniais que deveriam ser estudados nas aulas de História fez com que muitos estudantes estranhassem essa atividade, pois não concebiam a ideia de que o bairro onde moravam possuía memórias históricas. Apesar disso, demonstraram muito interesse em estudar a história dos lugares que registraram e do próprio GBJ. Dos 95 questionários aplicados, apenas 21 não apresentaram interesse de realizar itinerários educativos pelos patrimônios do bairro e, entre esses, há também a influência dos estigmas que se instalaram sobre o lugar. Uma justificativa apontada por um dos estudantes que não manIfestou interesse pelas aulas de educação patrimonial foi que:

Figura 11

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Não, pois não há muitos lugares a ser visitado. (Além de nosso bairro não ser muito valorizado). (SOUSA, 2018)

Há nessa fala não apenas a questão dos estigmas construídos acerca do Grande Bom Jardim como uma região que não possui espaços atrativos, mas também uma forma de dizer que o bairro, apesar dos bens culturais existentes, precisa de mais atenção e valorização por parte do poder público.

É interessante também enxergar que essa visão negativa sobre o bairro que esse aluno e outros também apresentaram tem relação com a escassez de aulas dentro do ensino básico que partam da história local. Dos 95 estudantes que responderam ao questionário, apenas uma mencionou já ter estudado algo da história do bairro e não foi na escola. A maior parte dos discentes já se acostumaram com a chamada história geral ou nacional, que obviamente não devem ser desconsideradas, mas que se forem ensinadas sem fazer nenhum sentido para a realidade material e presente dos alunos, não irá produzir um conhecimento histórico em sala de aula e poderá, inclusive, fomentar uma visão dos estudantes de que eles são invisíveis, de que seu lugar de vida não possui história e que, portanto, eles não são sujeitos históricos. Conforme escreveu Costa (2019) no Dicionário de Ensino de História:

portanto, universal. Como se valesse de igual medida para todos os recortes geográficos ou para todos os grupos sociais, presumindo ser capaz de explicá-los. No nível da história geral, isso é chamado por um termo já bastante conhecido: eurocentrismo. A mesma lógica (de uma parte se fazer passar pelo todo), porém, também ocorre na história nacional. Isso acontece, por exemplo, quando no nosso dia a dia acreditamos que somente uma cidade como o Rio de Janeiro é “histórica”. Por causa do patrimônio preservado, também outras cidades como Minas Gerais ou Salvador, por exemplo, são lembradas. Mas quando olhamos ao nosso redor, nos nossos bairros, associações, para as pessoas com quem convivemos, não enxergamos história neles e tampouco em nós mesmos. E por vezes, por isso, até (n)os desvalorizamos. Por raramente vermos “gente como a gente” como objetos das histórias que estudamos, também não aprendemos a nos vermos a nós próprios como objetos de história no próprio presente. Muito menos, então, como sujeitos. (COSTA, 2019, p. 133)

Nas próprias narrativas da história local, os vícios de representar uma parte como o todo acontecem. É comum, por exemplo, a prática de aulas de educação patrimonial sobre a história de Fortaleza, mas que ocorrem com maior frequência no quadrilátero do centro histórico da capital cearense. Assim, as aulas de História local restringem-se ao lugar das ditas origens ou do passado histórico de Fortaleza. Os outros espaços geográficos e grupos sociais históricos mais ligados às regiões periféricas da cidade são ignorados e normalmente não são incluídos nas práticas de educação patrimonial, reforçando um ensino de História que liga a disciplina ao estudo apenas do passado e da trajetória de grupos pertencentes aos períodos coloniais, imperiais ou do começo da república. Ignora-se, por exemplo, a história presente e do passado recente que gerou uma expansão da malha urbana de Fortaleza, que agrupou novos sujeitos históricos que se formaram sobre o signo da migração, ocasionando um aumento exorbitante da população e da segregação socioespacial da cidade, que passou a se dividir em lugares denominados bairros nobres e outros chamados de bairros da periferia, trazendo diversos problemas para a atualidade dessa capital, como os estigmas formados sobre alguns bairros ou até mesmo a escalada da violência urbana.

Dessa forma, alguns dos estudantes que concordaram que as visitações aos bens patrimoniais deveriam ser realizadas nas aulas de História apresentaram também suas justificativas, apontando sugestões que foram desde a história do bairro até os primeiros moradores. Também houve referência a uma possível contribuição das aulas para a formação identitária dos estudantes com o território:

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Sim, tipo quem fez a praça do Santa Cecília, quem foi os primeiros moradores do Bom Jardim. (CORDEIRO, 2018)

Figura 13

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018. Transcrição: Sim, algum lugar que tenha um passado histórico. (SAMPAIO, 2018)

Figura 14

Fotografia autoral, por Littbarski de Castro Almeida. Fortaleza, 2018.

Transcrição: Sim, seria interessante conhecer mais a história do bairro. Ajudaria a criar mais afetividade ao lugar. (ALVES, 2018)

Assim, entre os patrimônios elencados pelos estudantes foi decidido em conjunto com as turmas que os dois mais citados, o Centro Cultural do Bom Jardim e a Praça de Santa Cecília, deveriam ser os focos da investigação histórica, em busca do passado histórico ou das identidades das pessoas com os lugares que os próprios alunos sugeriram. Além desses dois espaços, também foi decidido que o Ponto de Memória do bairro poderia ser estudado, visto que é um lugar de memória e que traz muitos elementos para pensar a história local. As escolas também foram muito citadas, mas pelo fato de existirem muitas, não foram selecionadas para esse projeto.51

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As escolas seriam também um interessante espaço para se realizar um projeto de educação patrimonial, pois ensejam diversos usos, identidades, sentidos e relações entre passado, presente e futuro nas comunidades onde estão inseridas. Entretanto, pelo fato de os alunos não especificarem nos questionários a qual escola se referiam (na verdade apontaram escolas, no sentido geral, institucional), esse lugar não foi selecionado como objeto de estudo do presente trabalho. Há também nessa pesquisa um objetivo de construir o ensino de História para além do espaço físico da escola e a pretensão de trabalhar os mecanismos de pensar historicamente no cotidiano e em outros locais, que acabaram por concentrar os objetos de análise em outros bens culturais.

3.4.2. Mas o que é patrimônio e como conhecer a história desses patrimônios locais? É