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LIAMES EDUCACIONAIS: ENTRE A CULTURA E O ORGANISMO

Vasculhando alguns pormenores da obra de Freud referente à época até aqui tratada, vemos sua preocupação educativa concernente aos complexos da vida mental realizar contornos menos apodícticos. Por exemplo, no Rascunho K: as neuroses de defesa (Um conto

de Fadas para o Natal) de Freud do ano de 1896 há um indício de que a convicção da moral sexual civilizada ser a causa principal das neuroses era só aparente na época, de modo que, ele

desconfiava que a etiologia das neuroses deveria recorrer a outros elementos ligados ao aparelho psíquico humano, portanto, a moral não seria causa, mas conseqüência das neuroses. Vejamos:

[...] A resposta mais plausível apontará o fato de que a vergonha e a moralidade são as forças repressoras e que a proximidade em que naturalmente estão situados os órgãos sexuais, inevitavelmente deve despertar aversão junto com as experiências sexuais. [...] Em minha opinião, a produção de desprazer na vida sexual deve ter uma fonte independente: uma vez que esteja presente essa fonte, ela pode despertar sensações de aversão, reforçar a moralidade, e assim por diante. [...] (FREUD, 1977a, p. 302.

Levando ao cabo seus estudos arqueológicos da psique humana, Freud lança mais conclusões sobre a superficialidade da moralidade moderna e religiosa referente aos processos de repressão sexual e constituição da neurose. Tal como é apresentado no Rascunho

K de 1896, citado anteriormente, a causa desta não estaria originalmente na moral que

perturba a vida sexual de homens e mulheres modernos: a moralidade tem a força demonstrada na neurose porque a sexualidade é essencialmente perturbadora.

A moralidade civilizada e socializada é apenas uma, entre outras, das armas de que os homens se servem para se defenderem da própria sexualidade (Cf. MILLOT, 1987, p.19). Freud aponta um recalque primário anterior à moralidade, “o qual marcaria, portanto, as zonas erógenas com essa interdição, associando a elas um desprazer originário” (KUPFER, 1995, p. 38). Nas palavras de Millot:

Em 1897, Freud comunica a Fliess a hipótese de um recalque orgânico primário, contemporâneo da aparição da posição vertical, ou seja, da humanidade mesma, que atingiria certas zonas sexuais, as zonas anal e bucal, assim como o prazer olfativo, vedando com isso o retorno ao estado

anterior de posição horizontal. Devido à vizinhança dos órgãos genitais com a zona anal, a sexualidade genital também teria sido parcialmente afetada pelo recalque inaugural. A conquista da posição vertical pelo animal humano seria assim contemporânea da danificação de sua sexualidade. Isto não equivale, ao menos metaforicamente, a vincular a disfunção da sexualidade no homem com a “desnaturalização” do animal humano? (MILLOT, 1987, p. 20).

Millot ainda diz que Freud tentou dar conta do recalque e das particularidades da sexualidade humana a partir da existência de uma bissexualidade – hipótese que lhe havia sido sugerida por Fliess. Passou a elaborar explicações sobre o recalque pelo rechaço, no contexto do sexo feminino e do masculino, do componente feminino da sexualidade. Esta referência ao rechaço do feminino em ambos os sexos é delineada na elaboração do conceito de castração. Sendo assim, o feminino – a mulher – carregaria, antagonicamente ao pai, a ausência do falo, portanto, o significante da castração, o que justificaria Freud dizer desse rechaço do feminino porque este diz respeito a uma ausência; uma falta, a qual os humanos – neuróticos, psicóticos e perversos – não suportam.

Porém, a origem do desprazer e do recalque originária não fora remetida por Freud, a simples hipótese da aurora da humanidade, mas necessariamente a formulação de uma hipótese sobre a origem da vida como um todo, levando-o à constatação da pulsão de

morte em Além do princípio do prazer, de 1920. Momento em que realiza profundas

alterações nos princípios psicanalíticos.

Daí é respeitável destacar que Freud não precisou esperar tais formulações de 1920 para beirar a confirmação da hipótese do recalque orgânico primário, e assim, um pessimismo para com a educação. Tal preposição o acompanha de modo incipiente, colocando desde sempre questionamentos sobre sua hipótese principal na época de A

sexualidade na etiologia das neuroses de 1898. Na Carta 18 de 21 de maio de 1894, dois anos

antes do Rascunho K apontado por Millot (1987, p. 20) como sendo a “experiência germinal” da psicanálise tal como a conhecemos na segunda tópica, Fliess é alertado de um novo conceito, o de Conflagração, como:

…o que se pode chamar de degeneração aguda (por exemplo, nas intoxicações graves, nas febres, no estádio inicial da paralisia geral) – ou seja, catástrofes em que há perturbações dos afetos sexuais sem causas

desencadeantes sexuais. Talvez as neuroses traumáticas pudessem ser abordadas sob esse enfoque11 (FREUD, 1977b, p. 260).

É curioso como nessa passagem Freud retira das perturbações sexuais uma causa sexual. Sinal de que há algo que precede o que se entendia e se entende por sexualidade – recalque originário? Embora o termo Conflagração não tenha sido mais exposto na obra freudiana, seu conceito é um índice de que primariamente Freud tinha dúvidas sobre a tese principal que envolvia principalmente a relação tensiva entre moral e sexualidade nas considerações etiológicas das neuroses. Não querendo trocar os pés pelas mãos, acredito ser interessante alertar o leitor de que este lado asilado em Freud se manifesta eminentemente na segunda tópica de maneira bem elaborada com o conceito de pulsão de morte, que como o leitor pode suspeitar, a carga sexual da primeira tópica sobre o termo pulsão é removida.

Importa notar essa duplicidade teórica em Freud no desenvolvimento da primeira tópica. Supostamente em 1894, Freud escreveu o Rascunho E: como se origina a

ansiedade onde trabalhava sua teoria “latente” sobre o recalque primário. Nele consta uma

declaração interessante para nós, sobre a “Ansiedade em virgens”. Freud diz:

Nesse caso, o conjunto de idéias que deve pôr-se em conexão com a tensão física, ainda não está presente, ou está presente apenas de maneira insuficiente; e, além disso, existe uma repulsa psíquica que é o resultado secundário da educação. Esse exemplo é muito adequado (FREUD, 1977c, p. 266).

Neste caso Freud considera e examina as excitações endógenas como causa da ansiedade, deslocando os fatores sociais da condição de causa psíquica dos estados neuróticos. A defesa ou recalque físico ou orgânico da sexualidade se transformaria em ansiedade em busca de representação. A moral seria uma possibilidade secundária de recusa das excitações endógenas perturbadoras, ligando-as a causas ideativas encontradas no mundo externo, portanto, sendo a repulsa psíquica da sexualidade sugerida pela educação uma representação secundária de excitações orgânicas e primárias. A idéia da educação como causa é desarticulada.

11 Sobre esse assunto, o editor comenta que o termo conflagração nunca mais viria a ser mencionado novamente, quiçá ignorando ou não percebendo mesmo o fato de que perceber que existem perturbações de afetos sexuais sem causa sexual é se aproximar da mudança da teoria do trauma para a das fantasias. Veremos essa mudança mais a frente.

No contexto das excitações endógenas podem ser incluídas: a fome, a sede, a vontade de defecar e urinar. Nesta perspectiva Freud coloca tais excitações como sendo espécies de raízes orgânicas onde se apoiariam as excitações exógenas de caráter secundário ou cultural: a educação, a moral, os valores, a ética, a lógica parental. O apreço é que as excitações endógenas não possuem representações em si para o aparelho psíquico, este deve produzi-las; o que ocorre por meio de vínculos com a realidade externa, com fantasias e/ou com patologias. Vamos ver um exemplo.

Na carta 79 a Fliess, datada de 22 de dezembro de 1897, Freud conta o caso de uma paciente que desenvolveu a seguinte idéia obsessiva quando estava perto da conclusão de um curso de corte e costura:

‘Não, você não deve ir embora, você ainda não terminou, você deve fazer [machen] mais alguma coisa, você deve aprender muito mais’. Por trás disso estava uma lembrança de cenas da infância nas quais ela estava sentada no urinol, mas queria ir embora e era sujeita à mesma compulsão: ‘Você não pode ir embora, você ainda não terminou, você deve fazer [machen] mais alguma coisa’ (FREUD, 1977d, p. 368).

Um mês antes da carta supracitada – em 12 de novembro de 1897, Carta 75 – Freud escreve algumas conclusões sobre o conceito de recalque retomando sua promessa realizada na carta a Fliess de número 64 de 31 de maio de 1897:

Muitas vezes suspeitei que alguma coisa orgânica desempenhava um papel na repressão; certa vez, antes disso, disse-lhe que se tratava do abandono de zonas sexuais precedentes12 [...] Se os genitais de uma criança foram excitados por alguém, a lembrança disso, anos depois, produzirá, por efeito retardado, uma liberação de sexualidade muito mais intensa do que na época da excitação, porque o aparelho efetor e a quantidade de secreção aumentaram nesse meio tempo. [...] A ação retardada dessa espécie ocorre também em conexão com as lembranças de excitações das zonas sexuais

abandonadas. O resultado, porém, é uma liberação não de libido, mas de

desprazer, uma situação interna análoga à aversão no caso de um objeto (FREUD, 1977e, p. 362-363).

Percebam nas palavras de Freud que a excitação retardada ocorre em conexão a zonas sexuais abandonadas na idade adulta enquanto tais. Portanto, trata-se de uma

12 Aqui Freud se referia à hipótese do ato inaugural da humanidade contido em sua retirada da posição quadrúpede para a bípede. Isso foi apresentado parágrafos atrás na voz de Millot (1987).

lembrança sexualizada conectada a um lugar atualmente (dessexualizado) não mais sexualizado como antes, por isso deslocado. O deslocamento no caso pode ter dois motivos: a) a educação que proíbe o prazer anal – no caso da paciente mencionada logo acima – o disfarça ou o recalca por meio de um sintoma atual; uma neurastenia, por exemplo, e b) a lembrança sexualizada não mais encontra seu órgão na mesma condição de sexualização, por conseguinte é forçada organicamente a um deslocamento ou recalcamento qualquer; já que a representação primária não teria mais sentido – idéia inconcebível ou insuportável à consciência –, sendo no caso a moral sexual civilizada uma boa referência externa de sentido para a excitação sexual antepassada se agarrar; dando-lhe o caráter de proibido.

Todavia, no caso da excitação endógena não encontrar alguma representação para se realizar, tem-se a ansiedade, que Freud traduz em seu Rascunho E como sendo uma tensão física aumentada até a estimulação do afeto psíquico, mas que, “por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida, permanece insuficiente [...] Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em – ansiedade” (FREUD, 1977c, p. 266).

Enfim, como venho apontando neste tópico, no primeiro tempo de sua teoria Freud parece desenvolver paralelamente duas teses contrapostas. A primeira, ou a oficial possibilita pensar em relações efetivas entre psicanálise e educação, enquanto que na segunda, considerada aqui como movimento camuflado ou latente por parte de Freud em comparação aos seus trabalhos oficialmente publicados, a educação leva indícios de uma tarefa impossível quando provinda da realidade externa, já que sua natureza seria orgânica. Entretanto, a acepção perplexa para a obra de Freud, mostra que os famosos textos que versam sobre a sexualidade infantil, permitem que o plano latente ou oculto de sua obra insurja brandamente ao nível de suas publicações. Tratemos então da sexualidade infantil na obra de Freud.