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3 O CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA

3.3 Formação do contrato

3.3.2 Autonomia privada

3.3.2.1 Liberdade de celebração

A liberdade de celebração traduz-se na liberdade dos contraentes de apresentarem propostas e de decidirem de forma livre sobre a adesão às propostas da contraparte176. Implica que não possam ser impostos contratos contra a vontade do contraente nem sanções pela recusa de contratar, bem como a impossibilidade de impedimentos à contratação e a recusa da punição por contratar177.

A existência de desigualdades de poder leva à restrição da liberdade de celebração178. Tanto o prestador de serviços como o utente veem a sua liberdade de celebração fortemente limitada pela existência de um dever de contratar. A recusa de celebração do contrato é um ilícito obrigacional suscetível de gerar direito à indemnização, tendo as partes o direito de exigir a celebração do contrato (arts. 817.º e 830.º CC)179.

3.3.2.1.1 Dos utentes

Quando exista uma rede disponível a uma distância igual ou inferior a 20 metros é obrigatória a ligação à rede (arts. 4.º/3, 59.º/1 e 69.º/1 DL 194/2009). De acordo com o art. 69.º/1, 2, 3 DL 194/2009 tal obrigação não existe se o prédio se localizar a mais de 20 metros da rede pública, a ligação, mesmo numa distância inferior

173

AMÉLIA MESQUITA [et al.], “Relação”, 40.

174 Idem, 41; Sentenças CICAP 20/2/2014 e 11/4/2014. 175J

OÃO ANTUNES VARELA, Das obrigações, I, 232.

176 Idem, 233. 177

MÁRIO ALMEIDA COSTA, Direito, 230.

178L

UÍS MENEZES LEITÃO, Direito, I, 21-26.

179 Idem, 25; J

a 20 metros, se apresentar demasiado onerosa do ponto de vista económico ou técnico ou o edifício disponha de sistema próprio de abastecimento devidamente licenciado180.

As soluções particulares de abastecimento de água para consumo humano só podem funcionar se não existir rede pública disponível e quando devidamente legalizadas (art. 42.º/3 DL 226-A/2007)181. Visa-se com este regime alcançar a racionalização da utilização dos recursos hídricos e garantir o controlo da qualidade da água consumida182. O utente que se recuse a efetuar a ligação à rede disponível incorre em contraordenação (art. 72.º/2- a,b DL 194/2009).

Quando a água não se destine a consumo humano, a ligação à rede pública não é obrigatória e o licenciamento não está impedido pela existência de rede pública disponível183.

Discute-se se a obrigatoriedade de ligação à rede pública implica ou não a contratação do serviço. Parte da jurisprudência considera que não implica a contratação do serviço, entendendo que apenas implica que estejam reunidas as condições para a prestação do serviço quando o consumidor o pretender184. Atendendo às razões da obrigatoriedade de ligação à rede pública (evitar o recurso a meios privados por razões de segurança), consideramos que esta obrigatoriedade tem de ser entendida como uma obrigatoriedade de celebração do contrato de fornecimento185.

A ligação à rede pública pode implicar a necessidade de construção de ramais de ligação. Questiona-se se cabe ao utente ou ao prestador de serviços suportar os encargos inerentes. De acordo com uma primeira orientação, razões de interesse público e de sustentabilidade do sistema levam a que incumba ao utente o pagamento dos custos da construção de um ramal de ligação entre o sistema municipal e o seu prédio, apesar

180

AMÉLIA MESQUITA [et al.], “Relação”, 30.

181

Idem, 28: Se o acesso à rede pública for posterior à construção dos edifícios devem ser abandonadas as soluções privativas de abastecimento de água para consumo humano utilizadas até aí.

182 Idem, 29 e PENSAAR 2020, I, 2014, 62: encontramo-nos num estado em que ainda existem carências

quanto às trocas de informação entre as entidades gestoras e as autoridades ambientais competentes para o licenciamento de forma a identificar os imóveis com acesso à rede que não se encontrem ligados e utilizem soluções privativas. Têm de ser tomadas medidas que assegurem a adesão e utilização dos sistemas públicos e desincentivem o recurso a fontes alternativas.

183

AMÉLIA MESQUITA [et al.], “Relação”, 31.

184 Ac. TCAN 22/02/2013; Sentença CICAP 20/2/2014. 185 Sentença CICAP 11/4/2014.

de, depois de construído, este pertencer ao domínio público (art. 282.º DR 23/95)186. A construção dos ramais não é encargo do prestador de serviços. Este apenas se encontra obrigado à sua substituição e renovação (art. 285.º DR 23/95). Uma segunda orientação defende caber ao prestador de serviços suportar tais encargos. São estes os argumentos apresentados187: a atual LFL não se refere a ramais de ligação, ao invés da sua antecessora; o art. 6.º RGTAL não prevê a cobrança de qualquer prestação pecuniária pela construção dos ramais; de acordo com o art. 282.º DR 23/95, os ramais integram a rede pública, logo deve incumbir à entidade gestora promover a sua instalação; a imposição de tal despesa ao utente seria exigir-lhe que financiasse de forma específica e individualizada um elemento da infraestrutura pública que serve toda a comunidade municipal; o utente já paga os gastos inerentes à instalação, reforço e conservação das infraestruturas de rede através das taxas de urbanização; a ligação à rede pública antes de ser um dever é um direito (art. 59.º/1 DL 194/2009) não dependente do pagamento dos ramais de ligação. Encontramos ainda uma terceira orientação, de acordo com a qual apenas cabe ao utente o pagamento do ramal quando se situe a mais de 20 metros188.

Perante as diversas orientações acima apresentadas adotamos a segunda, tendo em conta os argumentos apresentados.

3.3.2.1.2 Dos prestadores de serviços

A ausência de concorrência no setor, a essencialidade do serviço e a sua sujeição aos princípios da universalidade e da igualdade conferem ao utente o direito subjetivo à prestação do serviço, impondo ao prestador de serviços o dever de contratar189.

186

Ac. TCAN 22/02/2013; Sentença JP Santa Maria da Feira 31/7/2013.

187

Sentença CICAP 20/2/2014.

188 Recomendação do IRAR 1/2009, ponto 3.2.1.1.4. 189 P

EDRO GONÇALVES e LICÍNIO LOPES MARTINS, “Os serviços”, 289 e 291ePEDRO GONÇALVES, A

concessão, 316: defende a existência de um direito subjetivo do utente; JORGE MORAIS CARVALHO,

Manual, 259 e 263; LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito, I, 25-26; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Serviços”, 129, 130 e 142; FERNANDO DIAS SIMÕES e MARIANA PINHEIRO ALMEIDA, Lei, 58; DALILA

ROMÃO, “A contrapartida pelo serviço de abastecimento de água”, 2013, 366; JOÃO CALVÃO DA SILVA

“Anotação”, 144; ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, “A proteção”, 343; FLÁVIA DA COSTA DE SÁ, Contratos, 30-31; JOÃO ANTUNES VARELA, Das obrigações, I, 236; RICARDO AMARAL DA COSTA, “Os serviços”, 60; ELIONORA CARDOSO, Os serviços, 54 e 63; MÁRIO ALMEIDA COSTA, Direito, 232 e 235.

Nesse sentido, o art. 59.º/1,2 DL 194/2009 consagra o direito à prestação do serviço desde que a rede se encontre disponível, ou seja a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade a servir190. Nessas circunstâncias, o prestador de serviços está obrigado à ligação e à prestação de serviço, constituindo a recusa contraordenação (art. 72.º/1-e DL 194/2009).

Quando o utente pretenda a ligação, mas a rede se encontre a mais de 20 metros e não esteja previsto o seu alargamento no plano de expansão da rede, a possibilidade de ligação será analisada no caso concreto, podendo caber ao utente o pagamento do prolongamento da rede191.

Questiona-se se quando o utente tem uma dívida ao prestador de serviços, este continua obrigado a contratar com o utente, mesmo nos casos em que mude de imóvel. Se a dívida se encontrar prescrita o prestador do serviço não pode recusar a prestação do serviço nem invocar a suspensão com vista a obter o cumprimento, já que se trata de uma obrigação natural192. Caso a dívida ainda não tenha prescrito, a questão é discutível. Se, por um lado, a prestação do serviço sem pagamento pelo utente é violadora do princípio da igualdade, face aos utentes cumpridores, pois é sobre estes que se repercutiram os custos dos consumos não pagos193. Por outro lado, a recusa da prestação do serviço traduz-se na recusa de um serviço público essencial com base num contrato independente do que se irá celebrar194. Entendemos que a boa-fé impõe que o dever de contratar exista apenas quanto a dívidas prescritas. Adotando-se entendimento diferente o utente poderia mudar de casa para evitar o pagamento das dívidas.

A existência de uma dívida referente ao mesmo imóvel, mas da titularidade de utente anterior não pode ser invocada como motivo para a recusa da prestação do serviço, salvo quando seja manifesto que a alteração do titular do contrato visa o não pagamento do débito (art. 63.º/7 DL 194/2009), sob pena de contraordenação (art.

190

PEDRO GONÇALVES, A concessão, 316: o direito do utente não é absoluto, podendo a lei exigir a verificação de condições ou requisitos para o acesso ao serviço.

191 A

MÉLIA MESQUITA [et al.], “Relação”, 27.

192 J

ORGE MORAIS CARVALHO, Manual, 267.

193

FRANCIELLY SCHMEISKE, “Serviço público essencial: possibilidade de interrupção?”, 2014, 2990; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da prescrição do pagamento”, 773 e “Da prescrição de créditos”, 294.

194 F

72.º/1-m DL 194/2009) e eventual responsabilidade contratual195. As dívidas impendem sobre os utentes e não sobre os imóveis servidos196.