• Nenhum resultado encontrado

O conceito de liberdade é central para a filosofia de Epicteto (50 – 125 d.C.). Há um extenso ensaio especialmente sobre esse tópico116. Segundo Bobzien, parece haver pouca diferença entre o conceito de liberdade nesse filósofo e o estoico antigo117: assim como na antiga Estoa, também em Epicteto liberdade é uma qualidade moral que só pessoas sábias possuem, e é frequentemente oposta à escravidão118. Ela não está conectada primeiramente com as ações, mas ligada a pessoas e suas disposições de caráter ou estados mentais. O que interessa, aqui, é como Epicteto vê a relação entre liberdade e “o que depende de nós” (ta\ e)f) h(mi=n)119. O conceito de liberdade e o conceito de “o que depende de nós”

são, originalmente, totalmente distintos no Estoicismo e, como ressalta Inwood (2005), é somente após esse estoico que os encontramos ligados definitivamente120: quando fontes estoicas anteriores a este filósofo falam sobre “liberdade verdadeira” (e)leuqeri/a) no contexto de liberdade do sábio, o contraste não é com alguma “liberdade ilusória da vontade”, isto é, com “o que depende de nós”. O contraste é com a “liberdade ilusória” dos

114 Idem, ibidem.

115Cf. Bobzien, op. cit., p. 341. Cf., ainda, A. Bridoux, Le stoïcisme et son influence, p. 120: “A verdadeira

liberdade, ao menos para os estoicos, é a liberdade moral (...) e ninguém pode roubá-la”.

116 Cf. Épictète, Entretiens IV, 1 (Peri/ e)leuqeri/aj). 117 Op. cit., p. 342.

118

Cf. Entretiens II, 2, 13 (h\) e)leu/qeroj h\) dou=loj - “ou livre ou escravo”).

119Como ta\ e)f” h(min(“o que depende de nós”). Epicteto se serve, também, de

au)tecou/sion(literalmente, “se autorizando de si mesmo”) e de au)to/nomon(autônomo). Cf. Muller, op. cit., p. 257.

45 homens livres não-sábios, que se julgam livres, mas são, na realidade, escravos de suas paixões e desejos errôneos121.

Para ele, liberdade é um estado virtuoso da mente, desejável e que deve ser buscado. Um homem possui liberdade se, conhecendo o que depende de si, nunca deseja ou lamenta nada que não dependa dele próprio122. Romilly nos lembra que Epicteto, ao recomendar essa liberdade interior que consiste em não se comover com o que não depende de nós, dá como exemplo Diógenes e cita, longamente, um belo texto em que ele teria apresentado Antístenes como aquele que o “liberou”123

. Ele conta como Diógenes, capturado e vendido como escravo, manteve a alma serena, indiferente ao lugar aonde o levavam124. Muller afirma que, “se a liberdade do sábio consiste unicamente em dar sua adesão ao verdadeiro, deduz-se rapidamente que ela se confunde com a aceitação pura e simples das coisas tais como são”125

.

As lições de Epicteto são uma longa meditação sobre o pensamento dos mestres do antigo Pórtico e o ato de colocar seus princípios em prática através do exemplo oferecido aos discípulos. A noção de liberdade e os meios de adquiri-la são postos em evidência por pareceres diversos de uma maneira contínua no decorrer dos Discursos, e compõem quase

121 Bobzien, op. cit., p. 343. 122

A mesma linha de raciocínio é seguida por Sêneca, em seu tratado De uita beata: Quidquid ex uniuersi constitutione patiendum est, magno suscipiatur animo: ad hoc sacramentum adacti sumus, ferre mortalia nec perturbari iis quae uitare non est nostrae potestatis. In regno nati sumus: deo parere libertas est (“Aceitemos, com coragem, tudo aquilo que devemos suportar a partir da constituição do universo. A este juramento estamos ligados: tolerar o que é mortal e não se perturbar com o que não está em nosso poder evitar. Nascemos em um reinado, obedecer a Deus é liberdade” - § XV, 7; grifos nossos).

123 Op. cit., p. 168. A passagem a que a estudiosa se refere é a seguinte: Ou(/twj e)leuqeri/a gi/netai. Di/a

tou=to e)/legen o(/ti " )Ec ou=) m ) )Antisqe/nhj h)leuqe/rwsen, ou)ke/ti e)dou/leusa ". Pw=j h)leuqe/rwsen; a)/koue ti/ le/gei. " )Edi/dacen me ta\ e)ma\ kai\ ta\ ou)k e)ma/. Kth=sij ou)k e)mh/. suggenei=j, oi)kei=oi, fi/loi, fh/mh, sunh/qeij to/poi, diatribh/, pa/nta tau=ta o(/ti a)llo/tria. " (“Eis como se adquire a liberdade. Ele – sc. Diógenes – também dizia: „Desde que Antístenes me libertou, nunca mais sofri escravidão‟. Como ele o libertou? Escuta o que ele diz: „Ele me ensinou o que é meu e o que não é meu. A propriedade não é minha; pais, parentes, amigos, reputação, lugares familiares, conversas com outros homens, tudo isso me é alheio‟” – Epicteto, Entretiens, III, 24, 67-69. Tradução de Joseph Souilhé).

124

Cf. Entretiens III, 24, 63- 66. Feito prisioneiro e vendido como escravo, Diógenes se considerava o senhor (DL 29-30). As respostas que ele dá a Filipe, Alexandre e Perdicas (§ 70) provam-lhes que estes não tinham poder algum sobre ele.

125 Op. cit., p. 257. De fato, a verdadeira responsabilidade no assentimento consiste somente no que depende

de nós (e)f (h(min - in nostra potestate); no uso racional e dialético, tematizado por Epicteto, das representações: aprender a distinguir na representação o que é conforme do que é julgamento acrescentado para ganhar a verdadeira liberdade: não se perturbar com o que não depende de nós (ou)k e)f@” h(min- non in nostra potestate), e entregar ao destino o poder de nos tornar felizes. Cf. V. Laurand, Le vocabulaire des stoïciens, pp. 15-16.

46 todo o assunto do quarto e do último livro126. A razão aconselha a aceitar as adversidades como provações, mas autoriza a dar um fim a elas através do suicídio se tais adversidades põem entraves ao exercício desta mesma razão. Nesse caso, a morte voluntária é o ato último da razão, a afirmação final de sua liberdade127.

2. A libertas republicana

De acordo com M. H. R. Pereira, termos-chave da tradição sócio-político-cultural de Roma foram se modificando dos tempos da República até a época imperial. As ideias morais e políticas dos romanos – algumas herdadas dos gregos, outras especificamente suas – formam uma parte extremamente significativa do seu legado cultural: “O mundo moderno, consciente ou inconscientemente, define seus próprios padrões de comportamento pela adesão ou rejeição daqueles valores então desenvolvidos”.128

Curiosamente, como observa Earl, “os romanos não distinguiam claramente moralidade de política (...), mas olhavam para as questões sob um ponto de vista que se pode chamar „social‟, que reflete a natureza pessoal e social da própria vida política”. 129

Política, sociedade e religião se exprimiam através de conceitos como pietas, fides, gloria e vários outros. Cogitore nos lembra que, já na época republicana,

“(...) a importância dos temas morais na reflexão romana, mesmo fora dos círculos filosóficos, foi desde muito tempo destacada, na medida em que intervinham como critérios tanto na avaliação social dos comportamentos quanto na política. O vocabulário político é também um vocabulário moral, organizado em redor de noções como uirtus, fides,

pietas e constitui a coluna vertebral da sociedade”130.

Tais conceitos não existiam isolados: muito próxima da noção de honor, por exemplo, estava a de dignitas que, por sua vez, relacionava-se com auctoritas, valores que,

126 Cf. F. R. Chaumartin, “La quête de la liberté intérieure devant l‟opression du pouvoir dans l‟Empire

romain: Sénèque et Epictète”, Vita latina, pp. 15-16.

127 A esse respeito, cf. infra, pp. 20-23. Cf. também Grimal, Les erreurs de la liberté, passim. 128 Cf. M. H. Pereira, Estudos de história da cultura clássica (vol. II), p. 321.

129 D. Earl, The moral and political tradition of Rome, p. 17. 130

I. Cogitore, Dulce nomen libertatis: expression littéraire d‟une idée politique (1er siècle av. J.-C – IIème siècle après J.-C), vol. I, p. 97.

Documentos relacionados