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2 A ARTE DA VIVÊNCIA: UMA PERSPECTIVA PARA O

3.2 LIBERDADE MUSCULAR

Ao tratar da liberdade muscular Stanislávski lembra que a tensão impede a percepção das sensações sutis, propondo a auto-observação como meio de harmonizá-las. As operações sobre as tensões incluiriam a observação das tensões inerentes a cada postura e movimento, a liberação das tensões não necessárias, a identificação do centro de gravidade no corpo em determinada postura e, por fim, a justificação da postura em alguma imagem mental, ou outro impulso.

Na narrativa deste elemento em seu livro sobre os processos da vivência (1980) o personagem-aluno Nazvánov feriu a mão com um cinzeiro de vidro em um exercício de improvisação por descontrole das emoções e excesso de tensão. Impedido pelo ferimento de estar presente nas aulas exercita-se em casa a partir do relato das aulas que se seguiram pelo relato de um professor da escola. Experimenta as etapas do exercício, descritas acima, junto com seu gato de estimação. Stanislávski faz referência aos animais em sua narrativa como um exemplo da liberdade muscular que almejava aos artistas “[...] – Os hindus ensinam que se deve deitar como as crianças pequenas e os animais. Como os animais! – repetiu, para sublinhar sua observação. – Podem estar seguros!” (STANISLÁVSKI, 1980, p. 155).

Nazvánov observa o gato deitando-se e, a seguir, inventa diferentes posturas, larga- o ao chão de diferentes maneiras provocando seu desequilíbrio. Percebe, por essas brincadeiras, que o gato se adapta a qualquer postura e queda pela harmonização das tensões, utilizando, para isso, a força necessária, nem mais nem menos. O felino possui um senso de equilíbrio perfeito, caindo quando quer, pois tem claro instintivamente o centro de

gravidade do corpo em cada posição. A última observação faz com que o aluno verifique, acompanhando os movimentos ágeis, harmônicos e justificados do gato em caça, a prontidão e o foco com que pula agilmente em direção a uma possível presa em outra parte do recinto. O aluno, experimentando em si uma postura justificada, percebe que as tensões surgem quando ele direciona a atenção à execução e não ao objetivo real que se propunha com ela.

Stanislávski usa do detalhamento dessas narrativas para salientar o correlato da necessidade e do instinto dos animais com a criação de objetivo concreto para as ações. A justificação das posturas segue um processo que inicia na liberação das tensões impróprias e na formulação de um objetivo, por imaginação, para configurar uma ação. A precisão, a prontidão e a direção da atenção a um objetivo mobilizam natureza orgânica dos artistas. Por isso, Stanislávski, através da fala de seu personagem-aluno, apontava para a exemplaridade dos felinos, onde a natureza assume relação com os instintos:

A harmonia de movimentos e o desenvolvimento corporal dos animais são inacessíveis para o homem. Não há técnica que alcance tal perfeição no domínio dos músculos. Unicamente a natureza pode chegar a tais virtuosismos, facilidade, precisão e soltura das ações e das posturas, e a tal plasticidade. Quando meu belo gato salta, brinca ou se joga para agarrar meu dedo, passa imediatamente da quietude ao mais rápido dos movimentos, que é difícil seguir. Com quanta economia vai usando sua energia, e como sabe distribuí-la! Quando se prepara para a mobilidade ou o salto, não perde força em vão em tensões supérfluas. Estas não existem nele. Vai acumulando forças para dirigi-las de uma só vez ao centro motor que necessita na ocasião dada. Daí que suas ações sejam tão precisas, determinadas e poderosas. (1980, p. 163 -164).

Este elemento do sistema, segundo Tcherkásski (2016), tem a influência da lição de Ramacháraca, que no Hatha-Yoga, ou filosofia Yogue do bem-estar físico (s/data) aborda a ciência e as regras do relaxamento. Ali o yogue explicita a adaptação da filosofia oriental para as condições de vida ocidentais em seus ensinamentos, tratando do excesso de esforço na realização das ações por contração desnecessária. Os hábitos artificiais adquiridos ao longo da vida fazem, segundo o yogue, desaparecer os hábitos naturais, observáveis nas crianças, por exemplo. Na raiz deste problema Ramacháraca identifica o desconhecimento do estado de repouso e o exagero de esforço por tensão emocional e intelectual. Novamente o controle da mente sobre os impulsos para a ação é abordado, agora sob dupla influência: dos pensamentos e emoções sobre o corpo e, do corpo sobre o pensamento e estados mentais.

Nesse sentido, Ramacháraca coloca que “[...] muitas das práticas néscias, prejudiciais e hábitos de contração muscular são causados pelos estados mentais que

tomam forma de ação física” (s/data, p. 144, grifo nosso). A chave da prática de relaxação

“[...] consiste em duas palavras: “DEIXAI CORRER” (s/data, p. 146). O que está em jogo são o fluxo e a economia da energia prana, desperdiçada na contração muscular excessiva e causa da tensão mental. Ramacháraca sugere vários exercícios, cujo objetivo é deixar fluir a energia por atenção ao corpo e percepção das tensões e relaxamento. A relaxação física descansa a mente, o inverso também é verdadeiro para o yogue. A energia vital ou

prana nesta filosofia é parte da grande energia universal que penetra tudo em toda parte. A

matéria se entremeia a esta força, sendo parte dela. A força e energia não é outra coisa do que movimento, assim “[...] o Universo em movimento perpétuo – tudo está em movimento – toda matéria se move e muda as formas, manifestando a energia que está nela.” (RAMACHÁRACA, s/ data, p. 53).

A energia prana segundo Tcherkásski, sendo “alma” da energia foi relacionada em Stanislávski com a psicologia de Théodule Ribot, que “[...] „doou‟ ao sistema não só a noção de „memória afetiva‟, mas também os termos „emanação‟ e „imanação‟, bem como „radiação‟ e „irradiação‟, primordiais para a descrição do processo comunicativo de acordo com Stanislávski” (2016). Além da comunhão com o público a energia prana constitui também a plasticidade do movimento, atribuindo-lhe o sentido do movimento pelo sentir a linha de energia do mercúrio imaginário. Tema desenvolvido adiante.

Para Tcherkásski “[...] esta parte da obra de Stanislávski continua a ser uma das mais inacabadas, abertas, pedindo por desenvolvimento e hospitaleiramente permitindo a adição dos métodos mais diversos – os provenientes do yoga e os totalmente diferentes.” (2016, s/p.). A Educação Somática poderia ser associada à prática do sistema e relacionada à liberdade muscular. Abrangendo diferentes técnicas em distintas práticas, a somática é um campo “[...] que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento” (BOLSANELLO, 2005, p. 100). Segundo Débora Bolsanello, entre estas abordagens, há um conceito comum na Educação Somática, o de “corpo enquanto experiência”, do qual deriva suas pedagogias. O corpo é soma, pois inseparável da consciência é abordado pela percepção que o indivíduo mesmo faz dele. Por isso a atividade pedagógica da Educação Somática envolve os alunos no processo de percepção de hábitos costumeiros que provocam desequilíbrios e patologias. Aprende-se por vivência outras organizações corpóreas, sentindo e percebendo “[...] o que o corpo faz enquanto realiza os exercícios” (BOLSANELLO, 2005, p. 102), o aprendizado se dá pela experiência do corpo e inclui entre vários fatores o relaxamento do excesso de tensão, em uma abordagem integral dos indivíduos.

No entanto, a justificação dos movimentos que compõem as ações pela corporificação dos impulsos dados pela imaginação, é um passo eficaz para a liberdade muscular, que tem influência direta sobre as disposições das tensões. Esta ação da imaginação pressupõe algum grau de consciência dos artistas de seu corpo, o que significa dizer que este adquire o hábito de perceber e liberar as tensões desnecessárias a ação que realiza. Para Stanislávski “[...] não se pode liberar totalmente o corpo de todas as tensões supérfluas” (1980, p. 153), a questão é não bloquear a vivência. A relevância da liberdade muscular se confirma na seguinte indicação de Stanislávski

–Verifiquem como vocês estão – dizia em suas aulas, franzindo as sobrancelhas grossas e grisalhas –, lembrem-se de que antes de começar é preciso soltar os músculos, para que a natureza de vocês comece a falar. O que significa se concentrar? Muitos pensam que significa se fechar em si mesmo. Isso só traz tensão. (in KNEBEL, 2016, p. 267).

As tensões excessivas para Stanislávski impedem a liberdade de ação enquanto “[...] o movimento seguro e fácil, a mobilidade e a liberdade dos músculos criam a plasticidade excepcional em todo sentido que, com toda razão, se atribui aos felinos” (1980, p. 164). A plasticidade do movimento, por esta conexão é consequência natural do fluxo de energia, possível pela liberação das tensões dissonantes ao que está se realizando. A plasticidade, a partir da energia motriz do movimento, é fluxo que consigo carrega relações.