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Liberdade transcendental e liberdade prática

CAPÍTULO I O PROBLEMA DA TERCEIRA ANTINOMIA E A SOLUÇÃO

1.5. Liberdade transcendental e liberdade prática

A liberdade no sentido prático é definida por Kant como independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade (A 534/B 562). Para confirmar que esse sentido da liberdade é diferente daquele da liberdade transcendental, é preciso notar que ―a liberdade prática pode ser demonstrada por experiência‖ (A 802/B 830). Assim, ressalta Kant:

Conhecemos, pois, por experiência, a liberdade prática como uma das causas naturais, a saber, como uma causalidade da razão na determinação da vontade, enquanto a liberdade transcendental exige uma independência dessa mesma razão (do ponto de vista da sua causalidade a iniciar uma série de fenômenos) relativamente a todas as causas determinantes ao mundo sensível e, assim, parece ser contrária à lei da natureza, portanto a toda a experiência possível e, por isso, mantém-se em estado de problema (A 803/B 831).

Sobre a dependência da noção de liberdade prática em relação à liberdade transcendental, Kant reitera: ―É sobretudo notável que sobre essa ideia transcendental da liberdade se fundamente o conceito prático da mesma e que seja essa ideia que constitui, nessa liberdade, o ponto preciso das dificuldades que, desde sempre, rodearam o problema da sua possibilidade‖ (A 534/B 562).

Estas duas afirmações – ―a liberdade prática pode ser provada por experiência‖ (A 534/B 562) e ―conhecemos a liberdade prática pela experiência como sendo uma causalidade da razão na determinação da vontade‖ (A 803/B 831) – parecem descompassar com as afirmações anteriores – ―o conceito prático de liberdade se fundamenta na ideia transcendental de liberdade‖ (A 533/B 561) e ―a supressão da liberdade transcendental anularia simultaneamente toda a liberdade prática‖ (A 534/B 562). Paulo Cesar Nodari defende a tese de que a divergência é aparente e que existe compatibilidade entre as afirmações da dialética transcendental e do cânon da razão pura. Mais ainda, o correto entendimento dessa compatibilidade permite uma compreensão do projeto kantiano em seu sentido amplo.

Nodari apresenta três argumentos para desfazer o aparente descompasso. Primeiro, no contexto da terceira antinomia, é admitida uma espontaneidade absoluta como início primeiro não quanto ao tempo, mas quanto à causalidade. Segundo, a liberdade transcendental, espontaneidade absoluta, pode ser considerada o fundamento transcendental da liberdade prática, ou seja, permanece totalmente independente da natureza. 20 Kant declara:

A ideia transcendental da liberdade está, na verdade, longe de formar todo o conteúdo do conceito psicológico deste nome, conceito que é, em

20 NODARI, P.C. A teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do Sul: EDUCS,

grande parte, empírico; apenas constitui o conceito da absoluta espontaneidade da ação, como fundamento autêntico da imputabilidade dessa ação. É, no entanto, verdadeira pedra de escândalo para a filosofia, que encontra insuperáveis dificuldades para aceitar tal espécie de causalidade incondicionada (A 448/B 476).

Para Nodari, não há incompatibilidade entre a liberdade transcendental e a liberdade prática, pois ―Kant, na dialética transcendental, não teve a pretensão de provar a realidade da liberdade, mas tão-somente a possibilidade de pensar uma causalidade a partir da liberdade sem contradizer-se com a causalidade a partir da natureza, deixando, assim, aberta a possibilidade do uso prático da razão pura‖.21 Por fim, o último

argumento contra a incompatibilidade entre a liberdade transcendental e a liberdade prática é um alerta de que o cânon da razão pura não esgota as questões morais. Ainda que sejam mencionados alguns fundamentos da filosofia moral, Kant afirma que ―o proveito maior e talvez único de toda a filosofia da razão pura é, por isso, certamente apenas negativo‖ (A 796/B 823). Cabe à Fundamentação da metafísica dos costumes e à Crítica da razão prática dar continuidade ao projeto e aprofundar a filosofia moral.

Kant menciona poucas vezes o conceito de livre arbítrio na primeira Crítica, talvez porque este esteja relacionado diretamente ao âmbito sensível de nossas ações e não a seu âmbito inteligível (B 548/B 576). Sobre o arbítrio, que é de caráter fenomenal, Kant escreve:

Um arbítrio é sensível, na medida em que é patologicamente afetado (pelos móbiles da sensibilidade); e chama-se animal (arbitrium brutum) quando pode ser patologicamente necessitado. O arbítrio humano é, sem dúvida, um arbitrium sensitivum, mas não arbitrium brutum; é um arbitrium liberum porque a sensibilidade não torna necessária a sua ação e o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis (A 534/B 562).

É preciso distinguir entre arbítrio animal (arbitrium brutum) e livre-arbítrio (arbitrium

liberum). Enquanto o primeiro é determinado apenas por impulsos sensíveis, o segundo

é determinado independentemente deles. O ser humano não é condicionado a agir mediante seus impulsos sensíveis. Suas ações são representações da razão e tudo que se

encontra em ligação com ela, seja como princípio ou como consequência, é chamado

prático (A 802/B 830). O arbítrio humano não é arbitrium brutum, arbítrio animal, pois

ainda que sejamos afetados por impulsos sensíveis, não somos determinados por eles. O arbítrio humano é, antes, arbitrium liberum, pois ainda que sejamos afetados por impulsos sensíveis, podemos agir por representações da razão.

Nos Trabalhos preparatórios à Doutrina do direito, o termo arbítrio designa a faculdade prática do ser humano considerado não como númeno, mas como fenômeno.22 O arbítrio do ser humano reporta-se a certa causalidade da razão na medida

em que esta mostra, em seus efeitos no fenômeno, uma regra segundo a qual se podem inferir os motivos racionais das ações (A 549/B 577). Porém, o arbítrio não pode ser confundido com o fundamento livre da ação humana, pois ―os fenômenos supõem sempre uma coisa em si e a anunciam, quer se possa ou não conhecer de modo mais preciso‖ (Prol. § 57, A 171). Visto que tem caráter fenomenal, o livre arbítrio é incapaz de ―iniciar completamente por si mesmo uma série de acontecimentos‖ (A 534/B 562).

22 Cf. TREVISAN, Diego Kosbiau. A metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano .