• Nenhum resultado encontrado

2 CLASSES MULTISSERIADAS, DOCÊNCIA E IDENTIDADE

2.1 Condicionantes e interferências na formação de docentes

2.1.1 Licenciatura em Educação do Campo

Com efeito, algumas Instituições de Ensino Superior (IFES)21 oferecem hoje licenciatura em Educação do Campo, o que sugere que houve avanços nas políticas educacionais para a formação de professores. Uma formação tal — parece óbvio — supõe um processo marcado pela reflexão (filosófico-epistemológica) sobre as peculiaridades da realidade cultural, política, social e econômica do meio rural (ribeirinho) no país; isto é, sobre o que torna a vida no campo distinta do viver na cidade e sobre o papel da educação do campo quanto a suprir as necessidades de quem vive no meio rural.

Essa licenciatura pressupõe a vinculação da educação do campo com a vida de quem vai estudar na escola do campo: suas condições de trabalho e sua produção cultural, em que estão implícitas, por exemplo, estratégias de socialização e relações trabalhistas que compõem uma identidade, como elementos essenciais de seu processo formativo. Essa compreensão, portanto, articula a formação e a preparação para gestão dos processos educativos escolares e para gestão dos processos educativos comunitários: pretende-se formar educadores capazes de promover profunda articulação entre escola e comunidade.

Objetivamente, essa licenciatura busca habilitar professores e professoras para a educação fundamental e média que ainda não tenham titulação mínima que a legislação educacional prescreve. Mais que isso, constitui, sobretudo, uma formação que prepare docentes para articular processos educacionais escolares com processos educativos comunitários. Isso supõe uma atuação profissional que vá além da docência, isto é, que tenha impacto nos processos que circundam o espaço escolar. Para tanto, a habilitação é por área de conhecimento, de modo a contribuir para a construção de processos que possam desencadear “[...] mudanças na lógica de utilização e de produção de conhecimento no campo [...]” coerentes com a realidade socioeconômica do meio rural no presente (M O L I N A; S Á, 2010, p. 369).

Tal propósito se cumpre com o cultivo de princípios que orientam as práticas educacionais que permitam ligar a formação escolar com a formação para uma “[...] postura na vida, na comunidade, na promoção do desenvolvimento do território rural, compreendido este como espaço de vida dos sujeitos camponeses” (M O L I N A; S Á, 2010, p. 369). Tais processos educativos incluem o desenvolvimento de habilidades que possibilitem formar crianças e jovens do campo para ser não “[...] críticos consumidores de conhecimentos produzidos por outrem, mas, principalmente, tornem-se produtores de novos conhecimentos

21

[...]” (M O L I N A; S Á, 2010, p. 372) ao articularem os conhecimentos científicos com saberes adquiridos e produzidos pela vivência socio-histórica como sujeitos do campo.

Essa perspectiva deixa entrever, então, a valorização e o reconhecimento de saberes já construídos por quem vive no campo com base em sua história de vida, seus valores, sua cultura e nas formas variadas de se relacionarem com a natureza em suas experiências e práticas de trabalho, as quais constituem sua identidade socio-histórica. Nessa lógica, os processos formativos almejados têm de oportunizar a formandos e formandas a apropriação de métodos e estratégias de produção científica — com o rigor característico — sem reforçar preconceitos, recusa e desvalorização de outras formas de produzir conhecimento e saberes (M O L I N A; S Á, 2010). Assim, o saber a ser produzido nessa formação se associa com a construção de um conhecimento sobre a realidade vivenciada por alunos e alunas em seus locais de origem como substância central do trabalho a ser desenvolvido relativamente aos conteúdos a ser apreendidos por formandos e formandas. À parte essa produção de conhecimentos da realidade local, “[...] o mais relevante parece ser o desenvolvimento e internalização das habilidades necessárias para uma prática educativa que tenha como ponto de partida as condições reais onde se desenvolverão os processos formativos [...]” (M O L I N A; S Á, 2010, p. 386).

Essa compreensão de formação docente para educadores e educadoras do campo tem como algo central, para o desenvolvimento dos processos educacionais, os tempos e espaços da vida do campo e as lutas dos sujeitos que aí vivem, em especial sua organização para garantir a reprodução social nesse território. Noutros termos, a licenciatura aqui aludida supõe que o trabalho educacional tem de prever tais espaços e tempos segundo uma compreensão de educar como prática social que inter-relaciona escolarização com conhecimento e desenvolvimento como possibilidades de vida e permanência no campo. Nesse caso, quem educa no campo tem de tomar uma “[...] posição sobre o modelo de desenvolvimento para o qual se empenhariam os esforços formativos”; isso porque a proposta da licenciatura em Educação do Campo se vincula à construção de um modelo de desenvolvimento “[...] comprometido com a sustentabilidade econômica, social, política e cultural da terra e dos sujeitos que nela trabalham” (A N T U N E S-R O C H A, 2010a, p. 392).

Nessa ótica, as práticas docente-formativas para a educação do campo convergem para um perfil de educador e educadora. Marca esse perfil o compromisso — fundado em condições teóricas e técnicas — com a desconstrução de práticas e ideias que forjaram uma educação para povos campesinos cuja orientação se embasava na transposição, para a escola do campo, de modelos educacionais da escola urbana sem prever as idiossincrasias da vida no

meio rural. Assim, a educação do campo pede profissionais docentes com formação mais ampla e abrangente, pois terão de lidar com as especificidades desse meio; isto é, com uma formação que prepare educador e educadora para refletir sobre sua experiência numa realidade cujo modo de vida e de produção social é distinto. Mais que isso, a educação do campo requer uma formação que não se feche “[...] em torno de uma única proposta de atuação docente, uma vez que essa atuação deverá necessariamente se adequar às necessidades de promover rupturas, estranhar o que aparece como natural e legal, fazer perguntas, investigar, problematizar e propor” (A N T U N E S-R O C H A, 2010a, p. 395).

Se, como afirma Sonia Meire Jesus (2010), são históricas a ausência de docentes preparados e a formação precária na construção da escola para educar povos campesinos, o problema não é menor no tocante aos currículos oficiais das licenciaturas, que em geral não convergem para conhecimentos e práticas sociais do meio rural. De fato privilegiam conteúdos ricos na sua especificidade, mas que suprem pouco as reais necessidades “[...] de conhecimento e cultura dos diversos grupos étnicos como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e trabalhadores da agricultura, que historicamente foram excluídos como capazes de pensar e de agir” (J E S U S, 2010, p. 411). Além disso, se essa formação denota avanço nas políticas públicas para a educação do campo, não se pode esquecer que esta requer algo mais; por exemplo, a criação de mais escolas e o não fechamento das que existem, assim como a ampliação da oferta de níveis escolares.